ILUSTRAÇÕES RAFAEL OLINTO
01 de Agosto de 2022
Ilustração Rafael Olinto
[conteúdo na íntegra | ed. 260 | agosto de 2022]
Os dedos avançam rápido sobre a tela do celular, em intervalos de 30 segundos, um minuto, não muito mais do que isso, vídeos gravados na posição vertical – algo típico dos dispositivos móveis – se alternam. Dancinhas, receitas, humor, jogos digitais, desafios e mais uma infinidade de conteúdos se intercalam rapidamente sob os olhos atentos (ou não) do usuário. Parece um mundo novo, especialmente para os mais velhos ou mais avessos às redes sociais, mas, para a escala de tempo da internet, a plataforma já está absolutamente consolidada e, à sua maneira, foi capaz de impactar a forma como consumimos informação nas redes e fora delas. Estamos falando do TikTok.
O TikTok é cria do modelo capitalista chinês, ou, antes, da fase atual deste modelo na qual o país, mirando em inovação após anos produzindo cópias, avança com tudo sobre a indústria de Tecnologia da Informação, e coexiste com outras empresas gigantes do setor como a Alibaba, uma plataforma de comércio eletrônico e pagamentos, e a Huawei, fabricante de celulares e outros equipamentos de tecnologia móvel.
O que hoje conhecemos como TikTok nasceu, basicamente, da junção de dois aplicativos, o Musical.ly, lançado em Xangai em 2014, que já contava com certo público no mercado norte-americano, e o Douyin, lançado em 2016 pela gigante de software chinesa ByteDance. Este, em cerca de um ano, foi capaz de atrair mais de 100 milhões de usuários na China e Tailândia. Os aplicativos tinham alguns pontos em comum que permitiram sua fusão: uma arquitetura baseada na postagem de vídeos, possibilidade de uso de músicas e temas musicais e curta duração dos conteúdos postados. Percebendo o potencial de expansão do Douyin para o Ocidente, a ByteDance comprou a Musical.ly em 2018, modernizou e ocidentalizou o Douyin, lançando-o globalmente com o nome de TikTok.
Ao chegar ao Ocidente, o TikTok encontra o ecossistema das redes sociais já bastante maduro, com o Facebook, com mais de 10 anos, dominando o mercado após a compra do Instagram em 2012, de um lado, e, de outro, com um letramento para o uso de vídeos estabelecido pelo Snapchat – aplicativo de mensagens multimídia estadunidense lançado em 2011, cuja premissa principal era o compartilhamento de vídeos rápidos que, inicialmente, desapareciam da rede em 24h. Em termos de letramento digital, cabe ressaltar que Snapchat e Instagram são plataformas que desde o início de suas operações são baseadas no modelo mobile, isto é, foram desenvolvidas para o uso em dispositivos móveis, sendo suas funções e design completamente orientados para celulares e congêneres, prevendo-se inclusive o uso com uma mão só.
É muito importante falarmos do contexto em que o TikTok aparece no Ocidente antes mesmo de tratarmos melhor da plataforma em si, pois muito se fala do TikTok enquanto “novidade” sem que se perceba que já havia um campo fértil para o seu desenvolvimento. Na verdade, uma conjunção de fatores é responsável pelo sucesso quase imediato desta plataforma: a maturidade das redes sociais; o letramento para seu uso; foco no modelo mobile – em 2018, quando o TikTok chega ao Ocidente, os aplicativos móveis já somavam no mundo cerca de 200 bilhões de downloads por ano (segundo dados da Agência Brasil de Comunicação); e internet em alta velocidade amplamente disponível – as bandas 3G e 4G, além de sinal de wi-fi em alta qualidade, já estavam disponíveis na maioria dos centros urbanos europeus, norte-americanos e sul-americanos, quando o TikTok chega, viabilizando o tráfego de vídeos em alta velocidade.
Há, além desses, outro fator fundamental que determina o sucesso do aplicativo: o público ou, antes, a emergência de um novo público. O ano de 2018 marca não só o lançamento do TikTok, mas a maioridade da geração nascida em 2000. Não que seja necessário ser maior de idade para baixar e utilizar o app. Nos termos de uso em português brasileiro, consta como idade mínima 13 anos para utilizar legalmente a plataforma, embora não haja nenhum controle de idade efetivo, mas os anos 2000 servem como referencial para situar a geração Z, principal usuária da plataforma.
Formalmente, a geração Z é aquela dos nascidos a partir de 1995. O que a distingue é o acesso precoce às ferramentas e redes digitais. Muitos dos que a integram, especialmente de 2000 para frente (daí termos estabelecido esse marco), majoritariamente aqueles oriundos de grandes centros, são nativos digitais, isto é, nasceram, foram educados e tiveram sua sociabilidade marcada pela internet desde sempre, de modo que as suas relações culturais, sociais e laborais são perpassadas pelo digital. Isso obviamente não é ruim, é apenas “novo”.
Há um senso comum, por assim dizer, elaborado pelas gerações anteriores à geração Z (pela geração silenciosa, pelos boomers e mesmo pelos millennials) de que há um antagonismo entre “real” e “virtual”, como se o virtual não pudesse integrar de forma orgânica a vida cotidiana. Isso é algo que aparece em alguns “profetas da internet”, estudiosos e mesmo na cultura pop.
Em diversos livros, filmes e músicas do final do século XX e início do século XXI, essa temática aparece, como em Matrix. Lançado em 1999, o filme trata as máquinas com desconfiança, para dizer o mínimo. Há, sobretudo, uma nostalgia de um tempo pré-digital que tende a desqualificar não só as mediações que se dão exclusivamente através do digital, mas também a geração Z, única até agora a conhecer um mundo no qual essas interações sempre estiveram presentes.
Esse embate que leva a minimizar o papel do TikTok, reduzindo-o a dancinhas e tendências, é muito mais cultural do que de ordem prática. De fato, qualquer indivíduo que esteja vivendo hoje num grande centro urbano terá, independentemente da geração à qual pertença, boa parte de suas experiências mediadas pelo digital. Mesmo que haja resistência à tecnologia, basicamente todas as relações produtivas e de consumo dependem do digital atualmente. Recusar as mídias digitais nestas décadas iniciais do século XXI seria tão inócuo quanto recusar o uso doméstico da energia elétrica nos anos iniciais do século XX. Do mesmo modo, considerar a cultura digital como inapropriada ou decadente em relação à cultura analógica seria tão oblíquo quanto alguém de modos vitorianos escandalizar-se com a vida no século XIX. Em suma, resistir à pervasividade do digital é obsoleto e sem sentido.
VIRTUAL + REAL
E o TikTok só pode ser entendido a partir do digital como sendo algo pervasivo, isto é, como algo que se infiltra, que perpassa diferentes aspectos e esferas do cotidiano. Desse modo, não há, como se pensava no final do século XX, qualquer antagonismo entre real e virtual, mas uma relação de continuidade e complementaridade. O que acontece no virtual é parte da rotina, sem rupturas, e a vida se estende para o virtual em múltiplas práticas. É aí que entram as dancinhas.
De um modo geral, todas as redes sociais digitais partem de uma premissa de construção de comunidades. Até aí nada de novo, a noção de comunidade pertence à sociologia clássica e é discutida há mais de 100 anos. Comunidade implica, entre outras coisas, em semelhança, identidade e compartilhamento de ideias, valores e códigos culturais. A noção de compartilhamento é, então, fundante para o estabelecimento de redes – que são em si também anteriores ao digital, pois implicam em relações comunitárias. O que muda, porém, é a forma do compartilhamento. De conhecimentos que passavam anos, até mesmo uma vida inteira para serem construídos e repassados, da transmissão física tête-à-tête ou através de artefatos (livros, cartas, ondas de radiodifusão), o que demandava tempo para a recepção e registro, a circulação de conteúdos torna-se imediata no digital, de modo que o compartilhamento (de qualquer coisa, conhecimento, ideias, valores etc.) torna-se imediato também.
Se, até a primeira metade do século XX, aprender uma dança – ou dancinha, que seja – demandava a presença de um interlocutor que pudesse ensinar passos ou da circulação de manuais, agora bastam alguns minutos (ou menos, bem menos) para que as pessoas conheçam através das redes os movimentos da moda. Um leitor mais atento pode reparar que “pulamos” aqui a segunda metade do século XX e mesmo a primeira década do século XXI, império e ocaso das mídias de radiodifusão. Os mais velhos lembrarão que, embora a recepção fosse rápida através da rádio e do cinema, a circulação dos conteúdos era bastante limitada, por terem as mídias de radiodifusão caráter exclusivamente vertical, isto é, iam de um para muitos. Além disso, reter conteúdos exigia artefatos adicionais – gravadores de áudio e vídeo –, o que tornava aprender qualquer dancinha uma pequena odisseia, que implicava em tempo de espera diante da TV e do rádio para esperar a execução da coreografia desejada.
PERVASIVIDADE
Obviamente, a dancinha é só uma metáfora, por ser a parte mais visível e mais conhecida do TikTok que se tornou popular no Ocidente a partir dos vídeos de dança, música e dublagem (lip sync). Contudo, o que essa plataforma evidencia é a própria velocidade do capitalismo tardio ou da pós-modernidade, termo que se tornou popular através de autores como Beck e Giddens. A pós-modernidade é líquida, como Bauman aponta e, neste sentido, fluida, não linear e horizontalizada, termos que poderiam facilmente definir a própria condição do digital e sua pervasividade. É natural, então, que essas características integrem as relações e a cultura da primeira metade do século XXI.
Não se trata de insistir nos modelos totalizantes do século anterior, mas olhar para as fraturas e fluxos, para o que é pervasivo. Por isso, talvez haja certa dificuldade em compreender o modelo do TikTok. A velocidade de disseminação das informações e sua capacidade de impor tendências são fruto das idiossincrasias do século XXI. O aplicativo é disruptivo, termo que se tornou comum no jargão de quem trabalha com Tecnologia da Informação, é líquido, como lembram os leitores de Bauman, que, aliás, foi resgatado por um público mais jovem e mais pop em função do seu conceito de amor líquido (mas isso seria tema para outra conversa…).
O fato é que, justamente por ser líquido, o TikTok e seus usuários são capazes de catalisar práticas de consumo e produção da informação muito recentes. Se tomarmos apenas as dancinhas como referência, elas têm, pelo menos nos últimos dois anos, pautado a indústria da música. Geram receita não apenas os charts de execuções no YouTube ou em plataformas de streaming, como o Spotify e o Deezer, mas o chart do TikTok. Para estarem no topo de execuções nesta rede, as melodias devem ser atrativas o suficiente para que os usuários as adicionem espontaneamente aos vídeos. Mesmo sucessos antigos voltaram a se rentabilizar na internet ao viralizarem no TikTok. Em 2021, o single Dreams, da banda Fleetwood Mac, alcançou a 21ª posição da Billboard Hot 100 após um skatista e criador de conteúdo ter publicado no TikTok um vídeo cômico dublando a música lançada há 40 anos.
Mas isso é um acaso, provocado pelo fenômeno da viralização, no qual um vídeo que contém este ou aquele conteúdo se torna popular e outros criadores de conteúdo começam a replicá-lo, fazerem remixes ou suas próprias versões (e esta é basicamente a definição de meme).
Hoje, o TikTok é capaz de pautar a indústria musical de modo que as composições são elaboradas pensando em batidas e refrões que sejam passíveis de utilização na plataforma e são lançadas já com suas respectivas dancinhas. Recentemente, a cantora norte-americana Halsey, que conta com bilhões de streamings no Youtube e cujo público é a geração Z (ela mesma tem 27 anos), acusou a gravadora com a qual tem contrato de segurar o lançamento oficial de uma de suas músicas até que ela se torne viral no TikTok. A acusação foi postada em um vídeo no próprio TikTok, que já consta com quase um milhão e meio de curtidas. Em um único movimento, ao fazer a denúncia, a cantora, que tem mais de 29 milhões de seguidores na rede, conseguiu revelar e propor um debate sobre as novas práticas do mercado de música, agora arquitetadas também em torno do TikTok, forçar o lançamento da música em si e torná-la viral.
Ciente desse movimento, o grupo gestor do aplicativo lançou, em março de 2022, a SoundOn, plataforma de marketing, promoção e distribuição que pode dar ao artista ainda mais caminhos para fazer uma música bombar no aplicativo. Com isso, o TikTok deixa de ser uma apenas rede social que trabalha com a inserção de músicas, para se tornar uma concorrente direta no ascendente ramo da música digital.
O slogan da plataforma – em português “milhões de vídeos e contando” – indica a quantidade de conteúdos que a integram. Uma pesquisa rápida aponta para uma diversidade de gêneros que vai muito além das dancinhas. Pensando em termos dos vídeos mais comuns, alguns gêneros seriam: vídeos musicais, cômicos, efeitos visuais e sonoros, desafios, educativos, tutoriais, dublagens, imitações e piadas, perguntas e respostas, entre outros.
Para além dessas categorias, há vídeos de cobertura esportiva e jornalística no TikTok. A plataforma fechou, ainda em 2021, uma parceria com o grupo Warner Media para a veiculação oficial de jogos de futebol e conteúdos correlatos através dos perfis oficiais da Warner na plataforma, como o do canal TNT. O Kwai, aplicativo que é concorrente direto do TikTok, foi, também no ano passado, um dos patrocinadores da Copa América e estabeleceu uma parceria com a TV Band no Brasil para produção e divulgação do reality show Microfone Aberto, que propunha a escolha de um novo comentarista esportivo entre os usuários da plataforma.
No campo do jornalismo, veículos como o Le Monde (França) e o La Nación (Espanha), assim como o Jornal da Band (Brasil), têm feito experiências com o TikTok. Além disso, há diversos perfis de jornalistas, não só nesta plataforma, mas nas redes sociais como um todo, que apontam para formatos mais curtos de apresentação de conteúdos noticiosos.
Além de abrir espaço para inovação nos mercados de música, entretenimento e jornalismo, é inegável que o TikTok já impôs sua marca ao universo das redes sociais. O formato de vídeos curtos, antes uma exclusividade do Snapchat, é incorporado ao Instagram em 2019 com a ferramenta Cenas, depois modernizada e rebatizada como Reels em 2020. Através dos Reels é possível enviar e aplicar filtros, realizar cortes, inserir músicas de fundo, entre outras possibilidades de edição de vídeo também presentes no TikTok.
Em 2021, o YouTube passa a incluir uma funcionalidade para upload e edição de vídeos curtos, os YouTube Shorts, presente na versão web e na versão mobile da plataforma. Cabe lembrar também que 2019 foi o ano da chegada do Kwai ao Brasil. Conhecido como Kuaishou na China, o Kwai é outra referência no mercado de redes sociais de compartilhamento de vídeos. Sua interface é relativamente mais simples do que a do TikTok e a empresa tem feito um marketing agressivo nas mídias tradicionais e digitais para aumentar sua base de usuários (cerca de 45 milhões contra 74 milhões do TikTok), contando ainda com a realização de contratos com influenciadores e com a oferta de valores em dinheiro para quem convidar amigos ou postar conteúdos nas redes sociais rivais marcando o Kwai como origem do vídeo.
MERCADO
O que está em jogo, obviamente, é um mercado bilionário. A previsão de receita do TikTok para o ano de 2022 é de 11 bilhões, valor que supera, por exemplo, o faturamento de Twitter e Snapchat juntos. Mundialmente, o TikTok conta com cerca de um bilhão de usuários. A sua popularização se deu, sobretudo, durante a pandemia da Covid-19, o que gerou demanda por novas formas de interação social e conteúdos. Junto com um aumento orgânico da base de usuários, vem o investimento do mercado publicitário.
Através da ferramenta TikTok Ads Manager, disponível no serviço TikTok Business, é possível montar campanhas orientadas para a plataforma, assim como estabelecer recortes e segmentação de público de acordo com os interesses do anunciante e verba disponível. A proposta contida na página oficial do TikTok Business é oferecer soluções “orientadas para performance com o objetivo de ajudar o seu negócio a crescer” e apresenta controle de custos flexível, monitoramento em tempo real, segmentação inteligente de audiência e suporte ao cliente como vantagens para seus possíveis contratantes.
Os valores que circulam na plataforma, no entanto, suplantam seu faturamento direto. Além das empresas e prestadores de serviço que conseguem visibilidade espontaneamente na plataforma por meio da viralização dos conteúdos que produzem, milhares de influenciadores – e evidentemente esse fenômeno acontece também em outras redes sociais – faturam produzindo conteúdos no TikTok relacionados a marcas, os chamados publiposts. Criar conteúdos promovendo marcas no aplicativo é fonte de renda para diversos indivíduos e coletivos de criação. Os valores envolvidos podem ser impressionantes. Estima-se que a tiktoker estadunidense Addison Rae tenha faturado, em 2021, cerca de US$ 8,5 milhões com vídeos postados na plataforma, além de ter conseguido, por conta da sua visibilidade nesta rede, um contrato com a Netflix para a produção de audiovisual tradicional. Microinfluenciadores – aqueles que possuem entre 10 e 100 mil seguidores em uma rede ou mais – também são bastante visados pelos anunciantes que desejam utilizar a plataforma por sua penetração em nichos específicos.
DEMOCRACIA
Todo esse movimento em torno do TikTok não se dá sem riscos, a própria duração curta – ou, antes, curtíssima dos vídeos – aponta para uma possível superficialidade. Músicas parcialmente executadas, tutoriais tão sucintos que dificilmente podem ser replicados, piadas rápidas demais para serem elaboradas e temas parcialmente explorados vão se sucedendo aos milhares, em uma velocidade incrível, sem que o público consiga se aprofundar ou mesmo compreender integralmente aquilo que consome.
Troca-se profundidade por volume e há sempre a possibilidade do usuário se perder em meio a tanto conteúdo. Outro risco inerente a essa e outras redes é que o uso recorrente de hashtags e do dispositivo de curtir, assim como a busca por perfis semelhantes entre si, crie bolhas de conteúdos das quais o usuário não é capaz de sair, simplesmente porque a operação dos algoritmos faz com que os sujeitos recebam apenas os conteúdos indicados pelas plataformas. Este tema em particular é bastante polêmico, já que as empresas de tecnologia provedora dessas aplicações podem orientar os algoritmos conforme seus interesses.
Em 2020, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, chegou a assinar uma decisão para banir o TikTok e o WeChat, ambos de origem chinesa, do país alegando riscos à segurança nacional por conta da coleta e do uso de dados dos usuários feitos por esses aplicativos. A ByteDance, mantenedora do TikTok, nega que quaisquer informações extraídas através da plataforma sejam utilizadas para fins políticos e insiste no compromisso com seus termos de uso e política de privacidade. Contudo, cabe lembrar que a neutralidade das plataformas é muitas vezes um mero construto retórico.
O próprio Trump se utilizou de dados dos usuários do Facebook, através da empresa de assessoria política britânica Cambridge Analytica, na ocasião da sua campanha eleitoral de 2016. Após ser pressionado, o Facebook admitiu que a Cambridge Analytica utilizou um aplicativo para coletar informações confidenciais de cerca de 87 milhões de usuários sem qualquer autorização. A empresa depois utilizou esses dados para mandar aos usuários publicidade política desenvolvida conforme nichos e perfis individuais e elaborar informes detalhados para ajudar Trump a ganhar a eleição contra Hillary Clinton, candidata do Partido Democrata.
O Facebook foi processado em 2020, nos Estados Unidos, por permitir o vazamento de dados privados dos seus clientes. Em maio deste ano, o fundador da rede, Mark Zukemberg, foi diretamente implicado no caso, tendo sido aberto um processo contra ele. Mesmo sendo posteriormente banido do Facebook por más práticas e disseminação de fake news (em tese, o banimento segue até 2025), não é improvável que Trump tenha se baseado na própria experiência de uso indevido de dados de usuários para acusar o TikTok.
Assim, há de se considerar que não só os conteúdos pouco aprofundados, mas a possibilidade de controle dos dados e daquilo que a audiência recebe, além do potencial de disseminação de desinformação, podem tornar o TikTok e outras plataformas ameaças às democracias contemporâneas. Nas redes sociais digitais, de um modo geral, rompe-se a noção habermasiana de esfera pública, que trata do espaço social de representação pública e implica em debate e consenso. Com isso, abre-se campo para a polarização radical, com fossos, posicionamentos e antagonismos extremos – o que é amplificado pela formação de bolhas e pela cultura de ódio nas redes – que fragilizam os processos democráticos.
Mas as redes sociais também cumprem funções que sustentam a democracia. Além de o Facebook ter sido fundamental na Primavera Árabe que irrompeu no final de 2010, mobilizando pessoas e burlando a censura à mídia tradicional feita em diversos países árabes, o TikTok teve um papel fundamental em divulgar a hashtag Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), em 2020. Mesmo tendo sido acusada de ocultar conteúdos que usavam esta hashtag (acusações semelhantes pairam sobre praticamente todas as redes sociais), vídeos indexados com o termo #blacklivesmatter chegaram a alcançar 31.3 bilhões de visualizações na plataforma. Em nota divulgada na época, o TikTok confirmou que houve um problema com a hashtag que provocou a redução do seu alcance, mas alegou que o mesmo aconteceu com outras hashtags populares (e sem caráter político) como #cat (gato) e #dad (pai). É difícil saber o que acontece internamente nas plataformas, pois a regulação ainda é bastante frágil. Assim, não se pode mensurar até que ponto a visibilidade e ocultação de conteúdos realmente acontecem, assim como não sabemos se a manipulação de informações a partir de dados dos usuários é real, como possivelmente foi evidenciado pelo escândalo da Cambridge Analytica.
Outra questão que deve ser levantada é a própria rapidez com que os conteúdos se sucedem enquanto risco. Para além da capacidade de decodificação do público das mensagens e textos postados e do contentamento, ou não, provocado por sua recepção, há importantes mecanismos de satisfação implicados no consumo de conteúdos nas redes no modelo de scrolling.
Scrolling é o consumo de conteúdos que se sucedem e podem ser alternados através de um sistema de rolagem com o uso dos dedos. O modelo permite a sucessão simples e rápida de vídeos, imagens e textos. Essa rapidez, somada ao sistema de curtidas (likes) e interação nas redes, libera dopamina no cérebro, uma das substâncias responsáveis pela sensação de prazer. Esse neurotransmissor, produzido pelo cérebro no sistema mesolímbico, age sobre o humor, o prazer, o aprendizado, a motivação e a coordenação motora, entre outras, através de um mecanismo de recompensa. Isto é, sempre que um estímulo externo é interpretado pelo cérebro como algo prazeroso, a dopamina é liberada, de modo que o comportamento que provocou esse efeito é reforçado. Daí que buscamos repetir continuamente experiências que liberam dopamina, motivo pelo qual passamos tanto tempo nas redes e que as torna tão atrativas e, em certa medida, perigosas.
Centrar no perigo ou na superficialidade do TikTok ou afirmar que ele é feito só de dancinhas é minimizar a relevância cultural e econômica das redes. Mais do que isso, é insistir – como afirmado anteriormente – na falsa dicotomia entre virtual e real e ignorar a pervasividade do digital na vida cotidiana. As redes sociais são um dado da contemporaneidade com o qual temos que lidar. Elas não vão desaparecer, mas estabelecer novos arranjos tecnológicos, produtivos e sociais. Cabe lembrar ainda que, em si, o TikTok não é necessariamente mau nem bom, mas é fruto de uma empresa capitalista – assim como quase todas as aplicações e dispositivos tecnológicos o são – e que, em função disso, pode estabelecer uma agenda econômica e política própria, daí os riscos que potencialmente oferece.
A grande questão que se apresenta é: como ir além das dancinhas? Isso, se as tomarmos num sentido metafórico e incorporarmos quaisquer conteúdos que circulam nessa e em outras redes. Para encontrar uma resposta (ou múltiplas) deve-se ir além da superficialidade daquilo que a plataforma aparenta ser num primeiro olhar, lembrando que a superficialidade pode ser cobertura para esconder uma agenda muito mais ampla, ameaçadora ou promissora, conforme ela seja percebida, regulada e utilizada.
CAROLINA DANTAS, jornalista, mestre em Sociologia e doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco. Realiza pesquisas sobre redes sociais digitais e internet.
RAFAEL OLINTO, estudante de Design e estagiário da Continente.