Curtas

O acontecimento

Annie Ernaux nos conta sobre o trauma e o alívio do aborto

TEXTO Adriana Dória Matos

01 de Agosto de 2022

A autora tem sua obra considerada um clássico moderno na França

A autora tem sua obra considerada um clássico moderno na França

Foto Catherine Hélie/Gallimard/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 260 | agosto de 2022]

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Enquanto escrevo este texto, repercutem em mim acontecimentos recentes no Brasil relativos ao aborto e à violência contra a mulher. E vocês vão lembrar bem deles: a gravidez por estupro de uma menina de 11 anos, que foi coagida por uma magistrada catarinense a não realizar o aborto garantido por lei em casos como o dela (felizmente, o procedimento foi realizado); e a violação da privacidade de uma jovem atriz de 21 anos que teve exposta a sua experiência dolorosa de estupro seguido de gravidez e entrega do bebê para adoção, que a levou a escrever uma carta pública sobre a agressão sofrida.

Para piorar, nesse mesmo período, recebemos a péssima notícia de que a Suprema Corte americana derrubou a decisão conhecida como “Roe contra Wade”, estabelecida desde 1973 nos EUA, que dava às mulheres o direito ao aborto em todo o país. Acontecimentos significativos sobre como nossas vidas vêm sendo controladas e legisladas a partir de critérios morais que resultam em toda espécie de tortura – física, psicológica e outras –, sobretudo quando o assunto é sexualidade e reprodução.

A realidade desse controle que o Estado e as instituições mantêm sobre o corpo e a autonomia das mulheres é palpável no livro O acontecimento, de Annie Ernaux, que foi lançado no Brasil no começo deste ano pela editora Fósforo (tradução de Isadora de Araújo Pontes). Assim como havia realizado em O lugar (1983) e Os anos (2008), a escritora francesa cria uma narrativa, muito próxima do ensaio pessoal, que nos coloca diante de sua história de vida, ativada pela memória, pelo que ela é capaz de lembrar e escrever sobre si.

Em precisas 74 páginas, Annie Ernaux nos conta como enfrentou um aborto quando tinha 23 anos, em 1964, período em que o procedimento era considerado crime em seu país, assim como continua a ser no Brasil. Ela articula com maestria o relato autobiográfico ao contexto social, tornando indissociável o pessoal e o coletivo. Por conta disso – e do que significa o aborto para as mulheres – não somos apenas leitoras deste acontecimento, nós o experimentamos junto com a autora.

A empatia estabelecida com o livro se deve muito ao fato de se tratar de uma situação grave com uma “personagem real”. Decorre também da forma como a escritora estrutura a narrativa: com linguagem simples e precisa, e um desenrolar cronológico da situação que torna tudo gradualmente mais dramático e sofrido, pois acompanhamos a experiência vivida desde quando a menstruação não desce até a interrupção da gravidez, já avançada em três meses. Nossa cumplicidade se estabelece com ela ainda mais num plano emocional porque, com este livro, Ernaux quebra um silêncio a que todas as mulheres são submetidas quando decidem que não querem se tornar mães e optam pelo aborto clandestino.

Se, em Os anos, ela usa como fio que puxa a memória olhar fotografias suas que contam histórias de quatro décadas vividas, em O acontecimento, o auxílio são anotações suas em agenda e num diário. “Há muitos anos estou às voltas com esse acontecimento da minha vida. Ler o relato de um aborto em um romance me arrebata, num sobressalto sem imagens nem pensamentos, como se as palavras se transformassem instantaneamente em sensação violenta. Da mesma forma, quando ouço por acaso La javanaise, J’ai la mémoire qui flanche, ou qualquer outra música que me acompanhou nesse período, fico perturbada”, escreve ela logo no início, quando comenta ainda estar num processo de escrita exploratória, para na sequência dizer: “Sei agora que estou decidida a ir até o fim, aconteça o que acontecer, como estava quando, aos 23 anos, rasguei o atestado de gravidez”.


Escritora narra sua jornada para realizar um aborto
aos 23 anos. Imagem: Reprodução

Escrito ao longo de 1999, ou seja, 35 anos depois, o relato desse acontecimento inesquecível, como sublinha a autora, é um ato deliberado de revelação, tanto para si mesma quanto para a sociedade. Ao narrar em primeira pessoa e sem pretensão ao estudo ou exemplaridade, Annie Ernaux mergulha nos pormenores da situação que é enfrentada em segredo, angústia e solidão por ela.

“Eu passava da incredulidade de que aquilo estivesse acontecendo comigo, justo comigo, à certeza de que tinha necessariamente de acontecer comigo desde a primeira vez que tinha gozado embaixo dos lençóis, aos 14 anos, e a partir daquele momento – apesar das preces à Virgem e a diferentes santas – nunca mais me furtei à experiência, sonhando persistentemente que eu era uma puta. Chegava a ser um milagre que não tivesse passado por isso antes”, escreve. E logo adiante: “Eu estabelecia confusamente uma ligação entre minha classe social de origem e o que estava acontecendo comigo. A primeira a fazer um curso superior numa família operária e de pequenos comerciantes, eu tinha escapado da fábrica e do balcão. Mas nem o vestibular nem a graduação em letras puderam alterar a fatalidade da transmissão de uma pobreza da qual a filha grávida era, da mesma forma que o alcoólatra, o emblema. Eu estava ferrada, e o que crescia em mim era, de certa maneira, o fracasso social”.

Contando a experiência da sexualidade, da gravidez indesejada e do aborto nesse nível de subjetividade, Annie Ernaux também faz sociologia, ao expor distinções de classe e de gênero que a condicionam. Porque, afinal, engravidar e abortar acontece às mulheres e, a depender de que lugar essas pessoas ocupam na sociedade, suas decisões e consequências em relação a este fato serão bastante diferentes, física, psicológica e financeiramente. Como os homens se comportam, como o Estado atua, como a sociedade julga, como o corpo recebe, tudo isso perpassa O acontecimento. Um livro significativo para um debate necessário, que precisa sair do campo criminal e moral para entrar no da saúde pública, sobretudo no Brasil de hoje, em vias de realizar um decisivo processo eleitoral.

ADRIANA DÓRIA é editora da revista Continente e professora de Jornalismo da Unicap.

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