Escrito ao longo de 1999, ou seja, 35 anos depois, o relato desse acontecimento inesquecível, como sublinha a autora, é um ato deliberado de revelação, tanto para si mesma quanto para a sociedade. Ao narrar em primeira pessoa e sem pretensão ao estudo ou exemplaridade, Annie Ernaux mergulha nos pormenores da situação que é enfrentada em segredo, angústia e solidão por ela.
“Eu passava da incredulidade de que aquilo estivesse acontecendo comigo, justo comigo, à certeza de que tinha necessariamente de acontecer comigo desde a primeira vez que tinha gozado embaixo dos lençóis, aos 14 anos, e a partir daquele momento – apesar das preces à Virgem e a diferentes santas – nunca mais me furtei à experiência, sonhando persistentemente que eu era uma puta. Chegava a ser um milagre que não tivesse passado por isso antes”, escreve. E logo adiante: “Eu estabelecia confusamente uma ligação entre minha classe social de origem e o que estava acontecendo comigo. A primeira a fazer um curso superior numa família operária e de pequenos comerciantes, eu tinha escapado da fábrica e do balcão. Mas nem o vestibular nem a graduação em letras puderam alterar a fatalidade da transmissão de uma pobreza da qual a filha grávida era, da mesma forma que o alcoólatra, o emblema. Eu estava ferrada, e o que crescia em mim era, de certa maneira, o fracasso social”.
Contando a experiência da sexualidade, da gravidez indesejada e do aborto nesse nível de subjetividade, Annie Ernaux também faz sociologia, ao expor distinções de classe e de gênero que a condicionam. Porque, afinal, engravidar e abortar acontece às mulheres e, a depender de que lugar essas pessoas ocupam na sociedade, suas decisões e consequências em relação a este fato serão bastante diferentes, física, psicológica e financeiramente. Como os homens se comportam, como o Estado atua, como a sociedade julga, como o corpo recebe, tudo isso perpassa O acontecimento. Um livro significativo para um debate necessário, que precisa sair do campo criminal e moral para entrar no da saúde pública, sobretudo no Brasil de hoje, em vias de realizar um decisivo processo eleitoral.
ADRIANA DÓRIA é editora da revista Continente e professora de Jornalismo da Unicap.