Portfólio

Lucas Simões

Uma fissura na arte contemporânea

TEXTO Felipe Cordeiro

01 de Agosto de 2022

'Corpo de prova #35', 2019. Concreto, papel e folha dourada, 70 x 91 x 18 cm

'Corpo de prova #35', 2019. Concreto, papel e folha dourada, 70 x 91 x 18 cm

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 260 | agosto de 2022]

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Lucas Simões nasceu em Catanduva, interior de São Paulo, mas foi criado em Itatiba. Desta segunda, ele traz uma cicatriz na cabeça, de um acidente de bicicleta aos oito anos que quase lhe custou a vida, e seus primeiros passos no universo artístico. No início dos anos 2000, estudou Arquitetura no Politécnico de Milão e na PUC-Campinas, mas foram as artes visuais que tiveram um apelo mais contundente na sua trajetória. “Na infância, eram dois interesses muito meus. Sempre me interessei por artes e pelo fazer artístico, mas de um jeito lúdico, como o da criança ao lidar com materiais de arte. Meu pai é engenheiro construtor, então, as memórias de visitar construções com ele são muito interessantes: como se concretava a laje de um prédio, como o edifício começava a existir. Há um gosto pessoal pela construção e pelo fazer manual e isso se reflete no meu trabalho”, conta Simões, em entrevista à Continente.

Apesar de ter optado pela graduação em Arquitetura, Lucas explica que manteve a relação com a arte iniciada na infância. “Quando fui fazer faculdade, eu já tinha uma prática, ‘uma prática’ (ri). Tive um miniateliê no porão de casa dos meus 13 aos 18 anos, onde fazia experimentos, especialmente pinturas. Era um escape do lugar onde vivi.”

Já radicado em São Paulo, conciliou as artes com um trabalho convencional nos primeiros anos da vida adulta. Depois de se tornar arquiteto, e mantendo um escritório, continuou sua prática de arte de forma paralela, até que começaram a surgir incompatibilidades de tempo e agenda. Foi quando sentiu a inevitabilidade de ter que decidir a qual desses ofícios poderia direcionar seus esforços. Em 2010, vendo-se diante da complexidade que envolvia ter um trabalho realmente autoral na arquitetura, Simões se decidiu pela arte, por sentir que ali havia mais liberdade para sua expressão.

Curiosamente, o momento em que deixa a arquitetura coincide com o período em que essa linguagem irrompe em seu universo artístico. “Na época, meu trabalho com arte era muito mais ligado a experimentos com imagens impressas. Logo que deixei de praticar arquitetura, essa vontade se misturou na prática artística. Então os meios e os materiais se misturaram”, assinala.

ALEGORIAS E ESPAÇOS DA ARTE
Apesar da intensa modificação nas diretrizes de seu trabalho ao longo dos anos, para o artista, ainda há um mesmo centro de gravidade por onde orbitam seus desejos e disso não há como ou por que fugir. Por mais que algumas ideias do passado sejam retomadas no presente, formalmente, elas surgem de modos diferentes, a partir de outras técnicas e elementos. “Eu me canso do meu trabalho se não houver um mistério nesse novo modo de fazer. Sinto que tento fugir de mim mesmo, evito me encaixar numa estética. Não quero ser facilmente reconhecível por uma única obra. Isso é uma inquietação minha, não tem problema nenhum que alguém seja reconhecido por algo, mas não me sinto confortável com a ideia de que o meu trabalho tem que ter a cara do meu trabalho”, afirma Lucas.



Imagens de instalação Recalque diferencial (2015). Imagens: Paulo Peixoto/Brutal Studio/Divulgação

Para atingir essa versatilidade, a experimentação com materiais e espacialidades é uma constante no trabalho do artista visual. Atualmente, são recorrentes concreto, aço e papel, enquanto nas primeiras obras se via muito a intervenção em livros e fotografias. No encontro com essas matérias-primas, são descobertas novas mensagens que aquelas formas podem transmitir. Ou o contrário também acontece: “Quero conseguir resolver determinada questão de comunicação em um objeto e vou atrás da técnica para fazer. É uma via de mão dupla e que tem muito do acaso”.

O espaço é outro definidor de muitas das empreitadas de Simões. “Meu estúdio fica no centro, perto do Theatro Municipal, onde realidades múltiplas convivem naquela situação e eu me interesso por estar ali no dia a dia”, situa. O artista explica que se relaciona com seu fazer de acordo com a situação onde se encontra e com o que lhe é proposto: “Se tenho um espaço para trabalhar, numa galeria ou numa instituição, algo que é novo para mim, minha primeira vontade é usar o espaço como a matéria a ser trabalhada. No ateliê acontece outro tipo de experimentação, bastante voltada para esculturas e objetos. É muito sobre uma especificidade. Não querer me impor sobre aquele lugar, mas me relacionar com o espaço no qual estou trabalhando”.

Sobre sua lida com espacialidades, podemos destacar as obras Recalque diferencial (2015), Deserto (2014) e Caixão perdido (2012). Recalque diferencial teve a origem de sua pesquisa em Londres, depois foi apresentada em São Paulo em duas ocasiões, na Cidade do México e, hoje, está instalada definitivamente na Fundación Otazu, na Espanha. Trata-se do reassoalhamento do chão sobre um “colchão” de espuma. Portanto, o chão de concreto, que costumamos associar a algo estável e sólido, surpreende o visitante ao se desfazer sob os seus pés e cria uma espécie de fetiche pela destruição.


Deserto, site specific realizado para o Mamam no Pátio, Recife, 2014. Imagem: Divulgação

Deserto foi um site specific proposto para o Mamam no Pátio, no Recife. O trabalho propunha uma reflexão sobre as políticas públicas culturais e urbanísticas da área do entorno do Pátio São Pedro. Pensando em potenciar aquele espaço como um equipamento social, Lucas relata que “o título Deserto faz referência ao nome de um bar existente no centro do Recife nos anos 1960, descrito pelo dramaturgo Tulio Carella em seu diário, lugar onde convivia com bêbados, prostitutas e homossexuais. A intenção foi a de chamar a atenção do público sobre a situação de emergência desse conjunto de instituições, mesmo nos horários em que o museu se encontra fechado, através do uso de sirenes luminosas e letreiros eletrônicos acesos 24 horas por dia na fachada do museu”. Esses letreiros são compostos por trechos de autores descrevendo seus tempos no Recife, como: Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Osman Lins e Carella.

“Emergência”, continua o artista, “no sentido de deterioração patrimonial e institucional, mas também do que pode emergir dali, da potência que o entorno e sua carga histórica carregam. Dentro do espaço do museu, me apropriei das lonas usadas pelos camelôs que circundam o Pátio e cobri toda sua superfície (piso e painéis expositivos) com a mesma lona azul, como se ali dentro houvesse uma exposição, mas que a mesma está inacessível, não pode ser vista, e está em estado de alarme”.

Para Caixão perdido, o arquiteto que vive no artista percebeu que a área ocupada pela plataforma artística Pivô, no edifício Copan, projeto de Oscar Niemeyer, era uma sobra de espaço, de 3.500 metros, produzida pelo desnível do terreno, situada entre o térreo e o primeiro andar dos apartamentos. Para Agnaldo Farias, curador e professor da FAU-USP, trata-se de “uma problemática solução espacial oculta no ventre do prédio, esse ‘caixão perdido’, segundo jargão arquitetônico”, um espaço residual da construção. Graças a sua sólida experiência, Simões construiu ali um labirinto, numa área de passagem, sendo necessário que se passasse por ele para acessar a exposição.


Caixão perdido, site specific realizado no Edifício Copan (Oscar Niemeyer, 1953), a convite do Pivô. Imagem: Divulgação

Conforme explica Farias, “Caixão perdido é um labirinto resultante da quebra de algumas paredes, a restituição desse espaço de conexão, esse singular e imprevisto corredor. Nele, o artista foi dispondo uma sucessão de paredes organizadas, sua grelha labiríntica, fraturada, com seus becos, culs de sac, as bifurcações paralisantes, desvãos inúteis a barrar os passos automáticos, obrigando-os a se refazerem, problematizarem a passagem”. Como expõe Lucas, existiam paredes que encerravam vazios do prédio e que foram quebradas. “Esses buracos vazios, com pé direito baixo, eram gigantes e formaram uma espécie de caverna dentro dessa construção. O labirinto foi iluminado com uma luz esverdeada, amarelada, inspirada pelo filme Stalker, de Andrei Tarkovsky.”

EXPOSIÇÃO RECENTE
Sua exposição mais recente, OTIUMmuitoOTIUM, esteve aberta entre abril e junho, na Casa Triângulo, em São Paulo. O artista acompanhou a Continente numa imersão pelas obras, explicando sua pesquisa, motivações, rotas de fuga e traquejo com as matérias-primas que formalizam o conjunto exposto.

Os estudos preliminares coincidiram com o início da pandemia. Naquele momento, ele ainda ocupava a Pivô e, como artista permanente, podia trabalhar quando quisesse, fazendo dali seu refúgio. “Era um tempo em suspensão. Não tinha ninguém ali, andares vazios, num lugar gigantesco. Eu via a poeira se acumulando, era uma situação muito estranha, como se todo aquele lugar estivesse dormindo. Comecei a desenhar os Dormentes, esculturas adormecidas, desmontadas até mesmo em sua estrutura, para que o concreto deixasse de ser uma matéria rígida e tivesse uma moleza. Os Dormentes são uma continuação da série dos Abismos, mas como se a lógica do que aconteceu até ali fosse desmontada e as coisas entrassem em dormência”, explica.


Arregaçadx n.2, 2020, aço e papel, 42 x 33 x 12 cm.
Imagem: Divulgação

Quando conseguiu viajar novamente, precisava cumprir três projetos internacionais, sendo um deles uma residência em Roma. Ainda pensando nesse instante de suspensão e modorra imposto pela pandemia, o artista chegou à palavra Otium, que nomeia a exposição. “Otium (ócio) tinha um significado ambíguo durante toda a história da Roma Antiga, porém se referia ao espaço de descanso das atividades públicas. Seu antônimo, Negotium (negação do ócio), se referia à ação do trabalho, ao exercício militar, à adoração aos deuses e ao respeito às leis. O ócio romano não é bem como a nossa ideia de lazer e tempo livre. É uma pausa para você se preparar para a vida pública, um tempo para se dedicar ao uso do intelecto: ler, escrever, observar a natureza e propor políticas.”

Naquelas redondezas da Itália, também descobriu as ruínas das Casas de Ócio (séc. I a.C – I d.C). Tais construções estiveram soterradas pela mesma erupção que sepultou Pompeia e levaram séculos até que fossem descobertas e escavadas. Como o processo aconteceu via erupção vulcânica, a arquitetura das casas e seus afrescos permaneceram conservados. Essas habitações, que pertenciam à elite de Pompeia, eram localizadas em áreas verdes, fora da cidade, e tinham como propósito a prática do ócio. Espaços grandes e suntuosos; bibliotecas; piscinas; triclínios; saunas e extensos jardins. “Eu fui buscando encontrar símbolos, afrescos que me inspirassem sobre o ócio. Os afrescos eram muito bonitos, mas minha prática não é pictórica. O que eu trouxe dessas visitas às casas foram as cores dos afrescos, a palidez da cor, os pigmentos. O que apareceu na minha exposição foi o movimento de trazer essas cores para o concreto, o que antes não acontecia muito, o concreto raramente tinha pigmentos”, explica Lucas.


A fenomenologia do redondo (per atermide), 2022.
Imagem: Divulgação

Assim como em quase todas as suas obras, a literatura também fez parte dessa pesquisa. No livro Studiolo, de Giorgio Agamben, Simões encontrou o comentário sobre a obra Alegoria da pintura, atribuída a Artemisia Gentileschi, que viveu de 1593 até meados de 1656. “Retrata uma artista mulher nua, com todos seus materiais de pintura, mas dormindo antes de pintar. Para Agamben, o bonito dessa imagem é que a potência se mostra, em sua máxima intensidade, quando se nega a colocar-se em prática. Quando, ao invés de pintar, ela vai sonhar e se abastece do que precisa para pintar. Há uma relação com Aristóteles também, quando escreve sobre o sono e a vigília. A inspiração do meu trabalho também vem muito da literatura, que tem essa potência de criar mundos. É impossível você ler e não imaginar. É isso que me fascina na prática literária.”

INTERNACIONALIZAÇÃO
Nos últimos anos, boa parte da carreira do artista paulista aconteceu fora do Brasil. Seus trabalhos passaram pelos Estados Unidos, Espanha, Argentina, Bélgica, França, Rússia, Alemanha e outros países. Ele analisa que seu início de carreira coincidiu com um interesse internacional por artistas latino-americanos: “Me lembro de que, na época, o Museu de Belas Artes de Houston tinha adquirido a coleção do (Adolpho) Leirner, e também foi quando as feiras de artes começaram a se multiplicar e ganhar importância”.

Lucas conta que trabalhar em outros países muitas vezes acontece por um interesse particular de observar outras realidades, de estar ali presente, interagir, mais do que apenas mostrar suas obras. “Gosto de arriscar e ver no que resulta, sem expectativa de certo e errado, com a intenção de me misturar. Viajar é um modo de fazer isso acontecer. E, dentro de um ponto de vista profissional, é tudo muito recente para mim”, comenta.

Todo esse processo de internacionalização potencializa o desejo do artista de que suas obras sejam ambíguas, justamente pelo contato ocasional com cada pessoa e cada nova cultura. “Não gosto de obras que são muito literais. Então, tudo meu está ali um pouco mais escondido como mensagem. Exatamente porque eu gosto de ouvir e de conhecer o inesperado que essas obras podem trazer aos outros.”

 
 
A série Dormentes fez parte da exposição OTIUMmuitoOTIUM,
na Casa Triângulo, em São Paulo. Imagens: Divulgação

Crítico ao governo federal brasileiro e sua condução da máquina pública, Simões elucida que este é um período bem nebuloso para os incentivos públicos de arte, uma vez que as bolsas, projetos e editais praticamente desapareceram. Como resultado desse desmonte, tem-se o mercado de arte tomando conta desse vácuo, com as produções cada vez mais centradas no universo dos galeristas.

“As galerias se colam mais nas instituições, não que elas já não estivessem lá, mas você percebe que as exposições das grandes instituições são bancadas por galerias potentes. As instituições culturais se tornam ainda mais ferramentas de mercado. Há pouco lugar para experimentação, pouco lugar para pessoas novas aparecerem, fica tudo muito plano, dizendo respeito ao que os colecionadores querem consumir. E acho que não é esse o lugar ideal para a arte. Acho que a arte é mais um incômodo do que um bem de consumo”, opina.

FELIPE CORDEIRO, doutorando em Letras (UFMG e Universidad de Buenos Aires).

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