Tachikawa, província de Tóquio. Daido Moriyama se aproxima com sua máquina e dispara o obturador, capturando a imagem de um carro de quatro portas e lataria impecável, exceto pela existência de um risco fino e contínuo, daqueles feitos com chave. O registro publicado em preto e branco, em maio de 1982, na revista Asahi Camera, é exemplo do contraste entre luz e sombra marcante na extensa obra do fotógrafo japonês, que começou a carreira na década de 1960, mas também pode dar uma pista de como ele vê o mundo e seu ofício. Afinal, há ali um instantâneo do caos da vida, um vislumbre do trabalho de Moriyama, alguém que nunca se interessou por perfeição e para quem, em suas próprias palavras, “o filme fotográfico não revela uma ilusão”. Essa visão incomum pode agora ser conferida de perto pelo público brasileiro com a exposição Daido Moriyama: Uma retrospectiva, no IMS Paulista, em São Paulo, e o lançamento do catálogo editado pelo Instituto Moreira Salles.
Em cartaz até o dia 14 deste mês, a mostra com entrada gratuita apresenta 247 obras, duas projeções audiovisuais, quatro vídeos e 121 publicações do profissional nascido em Ikeda, em 10 de outubro de 1938, e conhecido pelo estilo are, bure, boke (“granulado, tremido, desfocado”, em japonês). Lá, o visitante tem acesso a imagens de toda a trajetória de Moriyama, desde as dos artistas do teatro popular japonês, retratados por ele na segunda metade dos 1960, até as mais recentes do fotógrafo que segue em atividade, aos 83 anos.
Ao observar as fotos, viaja-se por ruas, estradas, paisagens e vê-se o povo do Japão em meio à luz e à sombra, em violenta oposição entre elas, muitas vezes desfocados, assim como nas 256 páginas do livro homônimo à exposição. É possível, por exemplo, dar de cara com dois policiais sentados em uma lanchonete de Hamamatsu, com apenas quepes, uniformes e olhos realmente visíveis, já que os rostos deles estão encharcados de luz, e a atendente do local ao fundo, de braços cruzados, mais na penumbra. Ou com uma gangue de motoqueiros em Chūō, que ora parece uma reunião de vultos com cortes de cabelo modernos, jaquetas de couro e botas, posando em cima das motos, ora lembra uma turma de góticos, com faces sinistras, olhando para a câmera. A aparência varia conforme claro e escuro dominam a cena.
Shizuoka, 1968. Da série Um caçador.
Imagem: ©Daido Moriyama Photo Foundation
E não só. Tem também fotos feitas por Moriyama em sua passagem por São Paulo, em 2007, caso da que mostra uma mulher dançando em primeiro plano, observada por pessoas da comunidade da escola de samba Vai-Vai, na quadra da agremiação, na Bela Vista, na região central da cidade. E ainda cliques de vias nova-iorquinas, registrados na primeira viagem dele ao exterior, em 1971. Na jornada, foi acompanhado do artista gráfico Tadanori Yokoo, que se admirava com o estilo do amigo, voltando às mesmas ruas em que a dupla tinha passado, fotografando “despretensiosamente pela milésima vez”. Sua outra companheira ali era uma câmera de meio-quadro (econômica, que utilizava metade do fotograma para cada imagem captada), com a qual flagrou vielas escuras e arranha-céus de Manhattan, túneis vistos de dentro de um automóvel em movimento e pedestres esperando para atravessar enquanto carros passavam como manchas brancas, captados com o obturador em baixa velocidade.
Para o fotógrafo, a estada na metrópole norte-americana foi marcante. “Nova York é tomada por um vago aroma de mescalina; enquanto o cheiro de Andy Warhol sobe por todas as ruas”, relembra aqueles dias Moriyama, em citação presente na mostra e no livro. A menção ao maior representante da pop art, diga-se, não era à toa, pois as pesquisas e o desenvolvimento estilístico do japonês desembocaram cedo em Andy Warhol (1928-1987).
São Paulo, 2007.
Imagem: ©Daido Moriyama Photo Foundation
O jovem que começara a trabalhar com design enveredaria para a fotografia ao tornar-se funcionário do estúdio de Takeji Iwamiya (1920-1989), Iwamiya Photos, o mais ativo de Osaka e fundado em 1954. Lá conheceria o métier e colecionaria lições valiosas, por exemplo, com Seiryū Inoue (1931-1988). Sobre o período, Moriyama recordaria décadas depois como o mestre fora importante em sua formação. “Eu o acompanhava para fotografar em lugares remotos e também pelos bares, andando grudado a ele diariamente como um cão.”
Ao se mudar para Tóquio, em julho de 1961, aprendeu de vez o novo ofício. De início, na função de assistente de outro profissional famoso, Eikoh Hosoe, e, mais tarde, por conta própria, tentando dar os primeiros voos solo. Como freelancer, fotografou fetos humanos preservados em formol, num antigo hospital ginecológico de Hadano, e a base militar de Yokosuka para publicações como Gendai no Me e Camera Mainichi. E chamou a atenção da Associação Japonesa de Críticos de Fotografia, ganhando o prêmio de revelação de 1967.
Ensaio para a revista Provoke 2, Tóquio, 1969.
Imagem: ©Daido Moriyama Photo Foundation
No ano seguinte, o mesmo em que lançou seu primeiro livro, Japão: Um teatro de fotos, porém, sua visão começaria a mudar ao entrar em contato com a obra de Andy Warhol. Pelas páginas do catálogo de uma exposição em cartaz no Moderna Museet, de Estocolmo, na Suécia – a primeira individual de Warhol em um museu na Europa, em 1968 –, Moriyama viu em mãos a gloriosa possibilidade da cópia. “Arte é criar algo a partir do nada, mas a fotografia, pela sua própria essência, não cria algo do nada, é um dispositivo para copiar imagens existentes”, explicava ele em passagem do documentário Quase igual, de 2001. “Então, por que não partir desse pressuposto da cópia para nos aproximarmos da essência da fotografia?”
Junte agora a influência de Warhol a um insistente convite do amigo e igualmente fotógrafo Takuma Nakahira (1938-2015) para participar da revista independente Provoke, nascida em meio à era da contracultura, em 1968, e pronto. No time da publicação que, como o título insinuava, vinha para provocar e, segundo um editorial, para “capturar com nossos próprios olhos aqueles fragmentos da realidade que são completamente impossíveis de capturar com as palavras existentes”, surgia o Moriyama das imagens granuladas, algo fora de foco e empretecidas. O mesmo que ainda se perguntaria muito a respeito do papel da fotografia.
Em sua estreia na Provoke, na segunda edição, publicada em março de 1969, o fotógrafo contribuía com um ensaio de 22 páginas no qual a estrela era uma mulher nua em um quarto de hotel em Shibuya, em Tóquio. As imagens mostram a modelo deitada na cama, em poses sensuais, tudo bem de perto, como se o leitor é quem estivesse ali com ela. Tudo também bem-borrado, escuro, misterioso, sem dar chance de ver o rosto da musa. Na foto mais conhecida da série, ela fuma um cigarro enquanto suas costas e os lençóis brilham sob a luz e o resto do corpo vira silhueta à sombra. É romance, sedução, voyeurismo, fetichismo.
Ensaio para a revista Provoke 3, Tóqui, 1969.
Imagem: ©Daido Moriyama Photo Foundation
Já para o terceiro número da revista, de agosto daquele mesmo ano, Moriyama foi ao supermercado. Entre gôndolas e prateleiras de uma loja em Aoyama, na capital japonesa, ele clicava paredões de enlatados e garrafas e mares de sabonetes, além de passar a sensação de estar em uma busca alucinada pelos corredores. O resultado final, em 30 páginas, lembra clássicas obras de Warhol, a exemplo das caixas de Brillo, aquelas embalagens iguais, uma ao lado da outra, e ainda faz refletir sobre a sanha consumista.
Com o toque singular de Moriyama, claro. Como escreve em ensaio sobre a obra do japonês o coordenador da área de fotografia contemporânea do IMS, Thyago Nogueira, no catálogo organizado por ele, “Em vez de reluzirem como as latas publicitárias de Andy Warhol, os produtos escorriam como piche, sugerindo a americanização desenfreada que derretia os modos de vida tradicionais”. Para Nogueira, também curador da exposição, primeira grande retrospectiva do fotógrafo na América Latina e para a qual o pesquisador estudou por três anos, as sequências presentes em Provoke marcam uma virada na trajetória de Moriyama. Ali estavam trabalhos que “amadureciam o processo de construção narrativa” dele.
VIAGENS EM BUSCA DE ALGO
Outro artista que o inspirou foi o escritor norte-americano Jack Kerouac (1922-1969) e seu On the road - pé na estrada, de 1957. Entusiasmado com a leitura do romance, que pegou emprestado do velho amigo Takuma Nakahira, o fotógrafo do tremido e do desfocado se jogou pelas rodovias nipônicas, por quase três anos, desenvolvendo a série Viagens em busca de algo para a revista Asahi Camera, em 1971. Nela, revelava-se um Japão algo sombrio, em preto e branco, visto de dentro de carros em movimento, por detrás de cortinas de janelas de quartos de hotéis, em andanças por cidades e lugares variados. Era um tipo de estranho guia ou de coleção de cartões-postais alternativos.
Todos os caminhos rodados levaram Moriyama a uma predileção pelo flanar e pela busca incessante em fotografar o cruzamento do mundo interior com o mundo exterior em “capacidade ilimitada”, em suas palavras. Ao gosto pelo “realismo introspectivo”, como prefere chamar Thyago Nogueira. Deram a ele ainda um símbolo. O cachorro de rabo relaxado, que parece posar para a câmera, em Misawa, em 1971, tornou-se o Cão Vadio, espécie de autorretrato do fotógrafo andarilho. A imagem é provavelmente a mais famosa de seu portfólio e virou inclusive pôster e ilustração em camisetas, à venda na internet.
Cão vadio, Misawa, 1971. Da série Um caçador.
Imagem: ©Daido Moriyama Photo Foundation
Esse Japão também está no texto de Yuri Mitsuda, crítica, curadora e professora do Centro de Arquivos de Arte na Universidade de Arte de Tama, presente no catálogo. Ali a conterrânea de Moriyama apresenta o cenário no qual ele apareceu no mercado editorial, os debates de ideologias e estéticas ocorridos no meio da fotografia do arquipélago asiático e nomes anteriores e contemporâneos ao fotógrafo que o influenciaram (e foram inspirados por ele), casos de Nakaji Yasui (1903-1942) e Nobuyoshi Araki.
Da mesma forma, o próprio Moriyama explica no livro o valor que o cinema teve em sua educação. “Dentro daquele espaço escuro, fechado por um calor abafado, não saberia dizer quantos e variados foram os sonhos e poderes imaginários despertados em mim. Foi a tela daquele pequeno cinejornal que abriu meus olhos para a realidade, que me ensinou sobre todo tipo de cidades e regiões, e que tomou conta de uma parte da minha memória”, diz acerca dos noticiários que via nas sessões de filmes estrelados por Setsuko Hara (1920-2015).
O FOTÓGRAFO QUE SE PERGUNTA POR QUÊ
Tanto a retrospectiva quanto o catálogo jogam luz ainda na série que Moriyama intitulou de Acidente/Premeditado ou não, outro destaque em sua trajetória. Com 12 capítulos publicados na Asahi Camera, a partir de janeiro de 1969, a coleção era uma reflexão sobre temas que mais de 50 anos depois seguem atuais, como o sensacionalismo midiático, a relação conflituosa entre homem e natureza e a perda de identidades locais. A isso ele acrescentava discussões em torno da profissão, de seus equipamentos e dos limites metodológicos, lançando mão, por exemplo, do recurso da cópia.
Tóquio, 1969. Da série Acidente/premeditado ou não.
Imagem: ©Daido Moriyama Photo Foundation
Assim, Moriyama reproduzia um cartaz com a imagem de uma batida de trânsito real (uma propaganda da Agência Nacional de Polícia do Japão que mostrava a colisão de dois carros para sensibilizar os motoristas), fotografando o anúncio em zoom e esquadrinhando-o, tal qual dramatizasse aquela publicidade. E apontava a câmera para a TV, registrando frames do aparelho, a fim de criticar de que forma o rapto e a morte de uma criança eram noticiadas pelo jornalismo. Sem deixar de lado a ida a lugares como a praia de Zushi, apresentando a superlotação de pessoas no local e a sujeira do mar, e a experiência de fazer fotos de fotos publicadas em veículos de imprensa, do romance entre um ator e a ex-esposa de um presidente da Indonésia, dando outros ângulos e texturas às imagens, cheias de retículas de impressão.
Dentro desse dilema cada vez maior em cima do papel e da essência de seu ofício é que ele lança Adeus, fotografia!, em 1972. Hoje celebrado, o livro marca um experimento radical de Moriyama, com negativos, imagens rasuradas, tremidas e muitas vezes indecifráveis, ao mesmo tempo em que se notam, por exemplo, nus femininos e flagras do transporte público.
Tóquio, 1969. Da série Acidente/premeditado ou não.
Imagem: ©Daido Moriyama Photo Foundation
Segundo Moriyama, a obra falava de seus “sentimentos de ódio e sobre a vontade de dizer adeus às fotografias espiritualmente pacíficas, às fotografias que não duvidam do que a fotografia significa, isto é, fotografias que carecem de realidade”. Tentava assim destrinchar a fotografia. “Mas acabei desmontando a mim mesmo”, disse ele anos depois. Tal sentimento de que havia chegado a um impasse fez o fotógrafo diminuir o ritmo, ser alvejado pela ansiedade e até se afastar da câmera no fim dos anos 1970. Aos poucos, a partir do início da década seguinte, ele retornaria às ruas, capturando caminhos, homens e mulheres. Desde então, nunca mais parou. No catálogo, inclusive, podemos vê-lo no reflexo das lentes dos óculos escuros de uma manequim de vitrine, em clique feito em Tóquio, em 2017. E em cores!
Esse é o andarilho que hoje tem como principal meio de divulgação de ideias e imagens a revista Record, publicação criada em 2006 e contando exclusivamente com material de Moriyama, entre textos e fotos. Na verdade, a retomada de outro projeto editorial solo, a Kiroku, que durou apenas cinco números de 1972 a 1973, a Record chega à edição 51 em setembro, em volume dedicado à região de Nishi-Shinjuku, em Tóquio. A capa com imagem tremida já entrega o estilo do autor, mas há ainda registros de ruas feitos de dentro de um carro, de mulheres misteriosas, como uma de cabeça baixa em bicicleta parada, e do vaivém de vielas.
Tóquio, 2017. Da série Linda mulher.
Imagem: ©Daido Moriyama Photo Foundation
Em preto e branco ou a cores, Moriyama segue à procura do passado e do futuro das cidades, suas grandes musas, retratadas em profusão na Record, não importando em qual país estejam, seja Colônia, na Alemanha, Osaka, no Japão, Marrakech, no Marrocos. Sempre de olho naquele cruzamento, no realismo introspectivo. “Minha fotografia é uma jornada de caminhar sem rumo em busca do lugar que corresponde à minha memória”, diz.
FERNANDO SILVA, jornalista.