Além de faturar como cantora da noite, Áurea passou num concurso para inspetora do Colégio André Maurois, na zona sul do Rio, onde um dos alunos mais populares era Evandro Mesquita, futuro vocalista da Blitz. Um colégio moderno, “prafrentex”, como se dizia então, em que a diretora, a educadora Henriette Amado, ia além das aulas convencionais. Promoveu, por exemplo, um badalado festival de música popular na instituição, com direito a show de Áurea Martins, com Henriette no papel de animadora da plateia de estudantes. “Mas aí veio o exército para tirar a diretora do André Maurois. Eles foram entrando por uma porta e eu saindo por outra. Não voltei mais lá nem pra dar baixa na carteira profissional”, diz Áurea.
O episódio aconteceu em 1970. A essa altura, ela já se tornara nacionalmente conhecida por ter vencido, em 1969, o disputado primeiro lugar do programa, de altíssima audiência A Grande Chance, do apresentador Flávio Cavalcanti, na TV Tupi (o bandolinista baiano Armandinho Macedo, então com 15 anos, foi o vencedor como instrumentista). O programa seria o equivalente, nos dias de hoje, ao The Voice Brasil, com a diferença de que os vencedores geralmente chegavam ao estrelato. Alcione e Emílio Santiago foram calouros do programa. A vitória levou Áurea Martins à sua primeira viagem ao exterior: foi conhecer Portugal como parte do prêmio. Após essa ida, viajaria várias vezes à Europa, em turnês, uma dessas à Grécia, com o multi-instrumentista Paulo Moura.
RACISMO
“A fossa das pessoas exploradas comercialmente, com todos os apelos, é o que se tem, por exemplo, neste novo LP de Áurea Martins (O amor em paz, RCA), ela canta, faz o gênero, mas nunca realmente assume aquilo que está fazendo (...) E se ela não assume, não transmite, de fato, e quando muito, apenas consegue enganar o ouvinte – apesar dos arranjos de Luiz Eça, e bem apoiada em seus objetivos enganosos, pelo nome e pela voz de Paulo Mendes Campos, lamentável e inexplicavelmente integrado a este trabalho (como Vinicius no disco de Maria Creusa).”
Eis um resumo da crítica de Júlio Hungria, publicada no Jornal do Brasil, sobre o álbum de estreia de Áurea Martins. Ela não afirma diretamente que este seria o motivo para se afastar durante meio século dos estúdios, mas ressente-se até hoje: “A carreira desse disco não aconteceu. Foi discriminado até por preconceito pela minha raça. Como pode um preto gravar com Luiz Eça? Tinha muito preconceito racial. Fiquei uns 100 anos sem gravar nada mais. Pensei: ‘Só vou fazer o que eu quero’. Então fui cantar na noite, onde tinha plena liberdade. Só cantava coisas que tivessem a ver comigo. E, se o público não gostasse, que se danasse. Cantava muito Johnny Alf, Tom Jobim, Vinicius, coisas assim”.
Áurea conta que a discriminação a acompanhou pela vida. Mesmo quando cantava em casas noturnas para a elite carioca, estava ciente de que não fazia parte do estrato social das pessoas que vinham ali para vê-la. “Peguei piano-bar frequentado pela alta sociedade, o que me ajudou foi a minha postura, nunca tomava um porre. O Boni (José Bonifácio Sobrinho) era meu fã, muita gente. Mas eu mensurava, essa elite não me pertence, está ali para pagar por meu produto, se quisessem me aceitar, tudo bem. O estereótipo da cantora negra era cantar samba. É uma honra, samba é a melhor coisa que tem, agora estereotipar é chato. Então fiz pirraça, Alaíde Costa foi outra, porque só vou cantar samba?”, lembra.
A cantora na TV Tupi, em 1969. Imagem: Acervo pessoal
Para não se tornar mais uma negra sambista, Áurea Martins esnobou a poderosa TV Globo. O diretor da emissora, Boni, na década de 1970, queria que ela apresentasse um programa de samba, e nesse tempo a emissora investia nos musicais. Mas Áurea não topou. Achava que queriam transformá-la em mais um Jovelina Pérola Negra, sambista de sucesso na época. Ademais, ela dizia não ter jeito para trabalhar diante de câmeras.
Estereótipos e preconceito que, enfatiza Áurea Martins, remontavam ao que se convencionou chamar de Época de Ouro do Rádio. “O preconceito está nos apelidos, feito Blecaute (blackout, literalmente, apagão), não era este o nome dele (Blecaute era o nome artístico do capixaba Otávio Henrique de Oliveira), Jamelão. Ângela Maria era a Sapoti, Alcione é a Marrom, tinha um Pato Preto, Gasolina, Grande Otelo, não botaram apelido em mim porque passei pouco tempo no rádio”, denuncia.
Ela também inclui os artistas da bossa nova no rol dos que discriminavam negros: “A bossa tinha o maior preconceito com gente negra, comigo, com Alaíde Costa, era preconceituosa, excluía. Falo porque foi verdade. Quem perdeu foi o Brasil, a cultura. Eu não convivia com o pessoal da bossa, eu notava que tinha esse apartheid. Eles não queriam explicitar, mas a gente sente, eu sou muito observadora. E, quando fico calada, pior ainda”. Áurea Martins ri do próprio comentário e derrama-se em elogios a Elza Soares, que desafiava a bossa branca, com seu primeiro LP, intitulado A bossa negra (Odeon, 1960). “Ela foi uma das maiores cantoras do mundo”, exclama Áurea, que também não poupa elogios ao compositor, cantor e pianista Johnny Alf, para muitos um dos pioneiros da bossa nova, que ela hospedava na sua casa.
CANTAR NA NOITE
Embora longe dos estúdios, e da mídia, Áurea Martins continuava tirando o sustento da música. Passou pelas mudanças ocorridas nos costumes. Veio o fim das esfumaçadas e barulhentas boates e surgiu o mais tranquilo piano-bar, moda no Rio desde o final dos anos 1970 – refúgio de artistas que não faziam a música que o mercado então pedia. Com Johnny Alf, fez uma longa temporada, em 1980, no bar O Teclado, na Lagoa. Com Jair Rodrigues participou, em 1982, do Projeto Seis e Meia, no Teatro João Caetano. Acolhia também novatos, como o alagoano Djavan, que cantou na noite com Áurea, na boate Number One, em Ipanema. Embora pouco lembrada pelo público, estava sempre na mira de produtores de shows. E não lhe faltavam convites para cantar na noite. Nos anos 1990, cantou no chique Notturno, no Leblon, frequentado por socialites, os globais Faustão e Valéria Monteiro.
No final dos anos 1990, ela passou das apresentações intimistas em piano-bar para os palcos. Em fevereiro de 1999, participou do show As damas negras do samba, com Dona Ivone Lara, Leci Brandão e Carmem Costa (transmitido pela TVE). Cantou Tom, Vinícius e outros autores da bossa nova, no Little Club, localizado no lendário Beco das Garrafas, em Copacabana. Áurea Martins entrou no novo século inserida no showbiz do Rio. Tornou-se uma entidade da música carioca. No início de 2000, dividiu palco, no Centro Cultural Banco do Brasil, com Zezé Gonzaga e Alaíde Costa, esta, uma de suas influências confessas, num espetáculo celebrando os 80 anos de Elizeth Cardoso.
Áurea Martins com Alaíde Costa, em 2017. Foto: Divulgação
Áurea Martins participou do renascimento da Lapa, entrosando-se com gente jovem, a nova guarda da música do Rio, que cantava no Carioca da Gema. Dessa turma fazia parte o cantor e compositor João Cavalcanti, hoje um nome consagrado na MPB, que deita elogios a Áurea: “Ela é uma das maiores cantoras do país. Não há paralelo, nem no timbre nem na maneira de cantar. Ela merecia um disco desse tamanho e com essa repercussão. Senhora das folhas tem um repertório tão forte e denso, com arranjos tão lindos, que permite que Áurea desfile sua inesgotável nobreza de forma integral”.
Depois de 30 anos de invisibilidade, no início dos anos 2000, Áurea Martins passou a sair nas páginas dos jornais com mais frequência, quando cantava em bares da Lapa. Foi no bar Carioca da Gema que ela recebeu o convite do violonista e compositor João de Aquino para gravar um disco pelo selo Dlazaroni. Em 2003, gravou o segundo disco, um CD que leva seu nome por título. Desta vez, elogiado. Produzido por João de Aquino. Era como se, até então, estivesse invisível e fosse se materializando aos poucos para a crítica e o público.
O terceiro álbum veio somente cinco anos depois. Com Até sangrar (Biscoito Fino, 2008), Áurea Martins mostrou-se totalmente visível e radiante. O CD foi aclamado pela crítica e a tornou uma das cantoras de mais prestígio do país. Áurea gravou sete discos e um DVD (Iluminante), sendo Senhora das folhas o quarto pela Biscoito Fino. Já se escreveu livro sobre ela, dirigiu-se documentário, concederam-lhe muitos prêmios. O Deus da música escreve certo por partituras tortas.
NOVO DISCO
Lançado em 8 de março, Dia Internacional da Mulher, Senhora das folhas sai da linha musical de Áurea Martins. O repertório conceitual invoca benzedeiras, rezadeiras, curandeiras, um diálogo entre o Brasil urbano e rural. Está no disco, por exemplo, a rezadeira Vó Joaquina, de Serra Talhada (cidade do sertão pernambucano), que é avó do compositor PC Silva e cuja voz abre o samba Na paz de Deus. Mas está também o rapper Projota, com Rezadeira: “Vagabundo vai correr, vai brincar/ Vai chover, vai sujar/ Deixa o menino jogar, que é sexta-feira/ Pra proteger é que existe a rezadeira/ A rezadeira vai rezar/ Vai rezar/ Vai rezar…”
“Quando ouvi esse texto me arrepiei toda, e Moyseis canta divinamente”, comenta Áurea Martins. O arranjo de Lui Coimbra arregimenta violinos, clarinete e guitarras a essa faixa, interpretada em dueto por Áurea e Moyseis Marques. Uma faixa que a própria cantora destaca é Me curar de mim, de Flaira Ferro, que classifica como música de cura: “Todo mundo gosta desta. É uma reflexão do que a gente é. Todo mundo tem o lado bom e o lado ruim, é uma catarse. É difícil você se despir, e essa música te deixa nu. Uma música de cura também, porque quando você se cura dessas coisas, você se cura das doenças físicas, porque o espírito preserva a matéria”, analisa Áurea.
Flaira foi surpreendida ao saber que Me curar de mim estaria no novo álbum de Áurea Martins: “Foi uma surpresa emocionante saber do seu interesse em cantar Me curar de mim. A gravadora Biscoito Fino entrou em contato comigo enviando a música já gravada, perguntando se eu a autorizava a entrar no Senhora das folhas. Quando ouvi a versão e o arranjo de Lui Coimbra, nem pensei duas vezes: a música era de Áurea. Fiquei arrepiada do começo ao fim e, por um segundo, esqueci que a autoria da canção era minha. Aquela voz e aquela interpretação me atravessaram de um jeito que a composição se inaugurou novamente em mim”.
Capas de três dos quatro álbuns lançados por Áurea
pela Biscoito Fino. Imagens: Divulgação
“Áurea é o auge”, diz Flaira. “Uma artista símbolo de obstinação, resistência e devoção. É inspirador ver uma mulher com a sua força chegar aos mais de 80 anos, mantendo-se de arte no Brasil. É a representação de quem tem um compromisso muito verdadeiro consigo e com a cultura brasileira. Sou eternamente grata por esse encontro de gerações. Eternamente grata ao poder da música em fazer pontes de conexão entre nós duas.”
Outros sons do disco também passam por Pernambuco. Como mencionado antes, em Senhora das folhas, a voz da rezadeira Joaquina introduz a faixa Na paz de Deus. Em 2019, ela dividiu com o cantor, também serra-talhadense, Gonzaga Leal o álbum Olhando o céu, viu uma estrela, um tributo a Dalva de Oliveira. “No canto de Áurea Martins confluem, com sabedoria ancestral, a tangibilidade do cotidiano e a transcendência de existir. Relação improvável e única que emerge, inaudita, da sua forma de dizer e de sentir, adensando o mistério”, considera Gonzaga. “O canto de Áurea tem a força de um pregão e a contenção de uma prece. De pálpebras cerradas e mãos suplicantes, ora ela canta, ora ela reza. Um canto único e irrepetível. Exato e nítido.”
Gonzaga Leal conta que extravasou sua emoção em fazer o disco com a cantora carioca: “A experiência de gravar com Áurea é de que estava nu, entrando na sua tribo. Senti-me de alma lavada, purificado por tanta gentileza e beleza, com que ela nos recebe, nos convoca, nos incita a entrar na sua brincadeira, tão séria de entregar a nossa vida à criação dos sentimentos mais nobres”.
Viabilizado pelo Natura Musical, Senhora das folhas é um projeto idealizado por Renata Grecco, também diretora artística do álbum. Lui Coimbra, produtor e diretor musical do disco, revela que seu trabalho partiu da voz de Áurea Martins, trazendo instrumentos como viola de gamba, programações eletrônicas, mas procurando não tirar o essencial da canção.
Foto: Dan Coelho/Divulgação
O álbum, apesar de se basear em motivos que vêm de tradições que quase não existem mais no país, não é folclore reprocessado. Tem composições de Roque Ferreira, Arlindo Cruz, Socorro Lira, Gerônimo (o da axé-music) e músicos do naipe do percussionista Marcos Suzano, do guitarrista Fred Ferreira, além de participação da turma que Áurea Martins conhece desde os tempos em cantava na Lapa revigorada. Estão aí Alfredo del Penho, Thiago da Serrinha, Pedro Miranda, Mariana Baltar e João Cavalcanti. Senhora das folhas é um desafio que Áurea Martins encarou do alto dos seus 81 anos (acaba de completar 82). Ela, que se acostumou a cantar clássicos da MPB, entrega a esta mesma MPB um disco nascido clássico.
JOSÉ TELES, jornalista, crítico musical, pesquisador e escritor.