“Olhar é penetrar o que se faz olhado
É ir rompendo de um a outro lado
O corpo de matéria que se entrepõe a vista.”
Lula Côrtes
Há um verso de Alberto Caeiro que diz “O que em mim sente está pensando”. Não seria exagerado afirmar que esse verso oferece a síntese fundamental que contraria um dos principais pilares da modernidade: a disjunção do corpo de sua cabeça. Para Caeiro, o mestre do mestre da poesia moderna portuguesa, sentir não é o oposto de pensar, ao contrário, é parte indissociável. Disso se pode inferir que pensar, por sua vez, é parte indissociável do sentir. Nessa aliança, a explícita sugestão de um movimento circular e codependente nada categórico e preciso sobre o início de um e o término do outro. Feito a eterna pergunta sobre o ovo e a galinha, o que se pode afirmar é que esse movimento movimenta.
Reconhecer os sentidos como modo de pensamento. Pensar pelo sensorial. Tudo isso pode ser formas de se desenhar portas para a percepção; formas de se abrir possibilidades para a racionalidade, à medida que a vida é apr(e)endida pelos sentidos. Parece quase óbvio afirmar a indesligável relação entre sentido e razão, não fossem os milhares de exemplos da vida contemporânea a mostrar que não: nada mais necessário ainda do que negar a negação da inteligência relativa à natureza dos corpos (humano, vegetal, natural, mineral) e as respectivas passagens responsáveis por criar inclusive estereótipos que entendem questões do corpo em detrimento das intelectuais, como se de fato fossem dissociados.
É também por esse motivo que me volto a Dança para cavalos, último livro de Ana Estaregui, lançado em março pelo Círculo de Poemas (um clube de poesia formado pelas editoras Luna Parque e Fósforo), a partir da abertura monumental que ali é possível encontrar. Logo no primeiro verso do primeiro poema, o leitor é incitado a um aprendizado tão necessário quanto curioso: “aprender a pensar”. E esse aprendizado, prossegue o poema, deve dar-se “como pensa uma flor/ abrir (...), “como pensa um rio” cuja “água sabe ser água”. É preciso, por fim, “aprender a pensar com a morte/ a montanha”.
A partir desses versos, o tom do livro: uma totalidade composta por 73 poemas, numa linguagem enxuta, prática, reta, que não perde em exuberância dadas as imagens abundantes engendrarem a força da natureza a partir de um trânsito ora metamórfico ora metafórico. Nesse livro, Estaregui mostra saber que a metamorfose está, também, na origem da própria metáfora: essencialmente ambas se ocupam de construir/pensar a transformação de um corpo em outro corpo.
Como espécie de educador, o poema um se manifesta em articulação infinitiva e impessoal, isto é, por meio de voz cuja ação não se deseja marcar por flexões de pessoa, modo ou tempo. Chama a atenção esse aspecto à medida que se vê praticamente todos os núcleos verbais do texto estarem nesse formato natural do verbo. Ao passo que adentramos ao livro, essa configuração verbal continua frequente, levando a entender que os poemas muitas vezes abdicam das variações de pessoa e modo, bem como da cisão temporal provocada pela flexão de tempo, em prol de uma linguagem que se expresse por meio do adiamento ou da suspensão de qualquer decisão sobre o mundo, para apenas “estar/ no lugar exato do corpo” (poema 72, p. 82) e ver (-se).
“Aprender a pensar” é, aliás, uma forma de observar a necessidade de aprender a ver, já que o pensamento implica a elaboração e o desenvolvimento do olhar acerca de algo. O poema 68 (p. 78), mais ao final do livro, é exemplar: “Vê como ficam em repouso/ vê manada grupo alcateia/ em ordenação cósmica/ vê como fazem as araras no final da tarde (...) vê/ como dançam as arraias/ pra fora do mar (...)”. Desta vez, o poema se marca ao apresentar o verbo “ver” na segunda pessoa do singular no modo imperativo (“vê”) e impele a ação específica de ver. É interessante notar como o paralelismo do verbo no início de alguns versos constrói uma espécie de espinha dorsal no poema, fazendo-o sustentar-se pela troca de olhares com o leitor.
A obra lançada em março é o terceiro livro da poeta.
Imagem: Reprodução
Esse imperativo, porém, não exige nem dá ordens. Funciona muito mais como convite, como se desse a mão ao leitor para, juntos, apreenderem o outro (os seres animados e inanimados do mundo) pela inteligência dos sentidos, não da racionalidade. O poema, desse modo, conduz o leitor ao passo do olhar que enxerga, mas não vê, para o que vê, em direção ao outro mais outro de que fala Derrida. Neste tempo em que discursivamente se reivindica a tolerância ao outro, mas objetivamente pouco se reconhece o outro enquanto outro, uma vez que impera a exigência e a disputa de um eu com outros eus, importa lembrar que, mais do que tolerar, é preciso “desejar” o outro em sua existência, tal como adverte Deleuze, e enfatizar a condição de esvaziamento de uma linguagem que se impõe a repetir-se à exaustão. Trata-se, ao mesmo tempo, de um convite à desautomatização dos sentidos, tal como propõe Chklóvski em seu famoso A arte como procedimento, para daí emergir “um pensamento que se move” (poema 68, p. 78) e que se contrapõe à rigidez da falta deste tempo em que vivemos a própria “recaída na barbárie”, como aponta Adorno em seu Educação após Auschwitz (1967).
Nesse sentido, é decisivo afirmar o animal que logo somos, para lembrar mais uma vez Derrida, como modo de assumir a parte extirpada durante a forja da ideia de humano. “Tornar-se o bicho que se é” (poema 72, p. 82) é reivindicar a ideia de que “os humanos precisam se aceitar como animais, para se tornarem humanos” (Derrida), uma vez que a barbárie subsistirá enquanto perdurarem, em seu bojo, as condições que produziram a recaída de que fala Adorno. E a condição fundamental, no Brasil de hoje sabemos bem, é a legitimidade da anulação/execução da outridade e a impunidade.
Subjaz à ideia do aprendizado, portanto, uma falta ontológica indicada pela separação do humano com saberes que lhe são primários e supostamente inerentes, sobretudo com o estabelecimento dos dogmas cristãos e o advento do pensamento cartesiano na cultura ocidental. Daí a necessidade de se pensar o sentido dessa ausência e da aquisição desse saber anterior ao conhecimento, por meio do que seja imanente. Daí a necessidade de começar novamente, “repetindo, repetindo” (poema 42, p. 51), a existência da coisa na própria coisa, trazendo para a superfície a constância do que sobrevive ao mundo e ao humano.
COMO QUEM DANÇA
A experiência de leitura de Dança para cavalos remeteu de imediato a Nietzsche, outro autor que observou a necessidade de se “aprender a pensar” há mais de um século. Surpreendentemente, a técnica necessária a esse aprendizado, para o filósofo alemão, está na dança: “(...) o pensar deve ser aprendido, tal como uma dança deve ser aprendida, como uma espécie de dança...”. Nietzsche, no seu incansável exercício de examinar o seu contemporâneo e o modo de filosofar vigente, destaca alguns problemas que acredita advir da “perda do espírito” do homem alemão (metonímia do europeu que, por sua vez, compõe a ideia do homem moderno — o ocidental) com os rumos de seu tempo. Nos aforismos que integram a seção “O que falta aos alemães”, de Crepúsculo dos ídolos, precisamente no 6: “deve-se aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e a escrever”. Está desde ali o alerta à necessidade de afastar o “espírito do tempo” fundamentalmente de desdém.
O termo “espírito”, em Nietzsche empregado com o sentido de vigor, de força (ou como falta de), adverte que, ao passo que o mundo do saber formal, científico-filosófico e tecnológico avança, a humanidade contraditória e paulatinamente demonstra perder seu frescor, sua capacidade de viço, enfraquecendo-se ao invés de se fortalecer. Por isso, para Nietzsche, não bastam professores ou eruditos se o empenho estiver voltado à reprodução e manutenção do status-quo. Esse ponto faz o autor alemão propor a figura do educador para contrapor às duas mencionadas, de modo a indicar que o “fim”, o “espírito”, precisa ser o “processo” formativo. A concepção que está no seio da crítica de Nietzsche se encontra com a do ensaio citado de Adorno, e ambas elucidam o que ainda precisamos afirmar: as instituições (e, por extensão, os sujeitos institucionalizados) criadas pela sociedade civilizada são as principais responsáveis por reforçar a incivilidade em e de nós, isto é, a barbárie.
Importa sublinhar que, apesar de a dança ser elemento decisivo para Nietzsche (lembremos que o personagem mais famoso, Zaratustra, é um dançarino), não se trata de qualquer dança. Trata-se em particular da executada aos moldes dionisíacos desenvolvidos pelo autor, por manifestar-se à revelia das leis e das prescrições dogmáticas — aspecto basilar para a proposta desse outro modo de pensar. Dessa forma, Nietzsche ajuda a compreender a necessidade de se aprender a pensar como quem dança e mais: “É preciso saber dançar com a pena”. Dito de outro modo, é preciso coragem para empreender um projeto de escrita (e, por que não, ideológico?) que não se furte de abrir fendas no porão do agora.
O poema 1 de Dança para cavalos é, por assim dizer, representativo do educador capaz de ensinar a técnica do espírito, o despertar dos sentidos contra o “brutal adestramento” do mundo que depende, cada vez mais, da subordinação da natureza (e aí inclui-se o humano) ao humano e da imbecilização dos seres, para manter-se a manipulação e o lucro com sua contrapartida inescapável: destruição e miséria.
E “se a barbárie está no próprio princípio da civilização, então a luta contra esta (a barbárie) tem algo de desesperador”, conforme afirma Adorno, está dado que essa luta significa o combate à própria ideia de civilidade. Dança para cavalos sabe disso e constrói uma saída que, de tão dentro do humano, está fora da ideia de humano; por isso mesmo, ergue-se como ação contracivilidade. Reivindicar o aprendizado do pensamento, essa virtude genuína de que carece este tempo, o nosso tempo, ajuda a lembrar que a razão ocidental, elemento que justifica a oposição entre humano/animal e, por extensão, a tudo que é natural, e a suposta superioridade do primeiro em relação ao segundo, não dá conta de explicar, conforme observa Maria Esther Maciel em seu Literatura e animalidade, o modo como a vida — no que ela tem de mais crua e selvagem — desafia essa mesma razão. Daí a reviravolta promovida pelo pensamento de intelectuais indígenas como Davi Kopenawa e Ailton Krenak, por exemplo.
O movimento em questão é, portanto, o poema como resultado de uma dança espiralar entre visão e pensamento. Assim como em Nietzsche, não se trata de qualquer dança, mas a própria dos rituais ameríndios, com preceitos e mediadores próprios, como sugere a epígrafe do livro ao evocar Black Elk. Uma dança, talvez, que apresente “os seres-imagens que reproduz a dos primeiros ancestrais humanos/animais”, como nos dá a ver Davi Kopenawa em A queda do céu (2015), completamente à revelia das técnicas da arte do dançar que o conhecimento ocidental re-conhece. Por isso, o texto poético se encontra na posição rasteira, pé no chão, mergulhado nos seres do mundo, rodando sobre si mesmo ao girar sobre a própria coisa, a rejeitar artifícios mirabolantes de linguagem, embora daí extraia sua refinada e enigmática modulação: “não buscar mais/ que a própria coisa/ e acolher então o mistério” (poema 34, p. 43). É preciso provocar um abalo no tempo por meio da manipulação denotativa da gramática (que é corpo), a partir do que permanece, ainda que como rastro, vestígio, hábito ou mesmo espectro.
Ana Estaregui, ao colocar em relevo gestos comezinhos do corpo animal (humano/não humano) e vegetal, como o modo de respirar ou mastigar ou se envergar, ou o salto de um bicho no momento de pegar a presa, todos eles relegados à invisibilidade do costume, destaca e indica a materialidade complexa e simultaneamente singela de tudo, demarca a unidade dupla do cosmo (doente e também pleno de saúde) e acaba por criar um pensamento com Nietzsche, com Barthes, com Davi Kopenawa, com Ailton Krenak sobre vida e escrita.
Entre técnica e fundamento, teoria e intuição, artifício e natureza, Dança para cavalos borra os limites entre humano/animal/vegetal, destacando os cruzamentos dos seres, embora saiba que “tudo será um limite” (poema 9, p. 18). A ênfase na travessia, nas passagens, nas visões de mundos e reinos é um modo de afirmar que “tudo é também despedida” ou, em outras palavras, a “permanente despedida de tudo”, como disse Herberto Helder e Maria Filomena Molder, respectivamente.
Trata-se precisamente de um livro que se constrói não como representação ou contemplação passiva, mas como interpenetração, colocando o poema a serviço não da inventividade, mas de dar concretude ao poderoso sentido de existir: ver é pensar/ pensar é ver – e é, inclusive, saber-se visto. E assim acaba por ressoar a afirmação de Cioran, em sua peculiar negatividade: “Não inventei nada, só tenho sido o secretário das minhas sensações”. Nessa anti-invenção, Estaregui aponta a urgência de se olhar para o óbvio, o necessário, o indispensável; sinaliza que, para não compactuar com a premissa de que a vida é mesmo um vício, é preciso afirmar o vício, enxergá-lo, aceitá- lo, reconhecê-lo; é preciso tocar “a superfície fina dos acontecimentos”, alcançando, assim, “a pele das coisas” (poema 7, p. 16). E a pele, já disse Valéry, é o que há de mais profundo.
É, pelo sobredito, um livro substancialmente afirmativo. Um atestado de existência dos movimentos e das matérias mais múltiplas no que elas têm de mais bruto, de mais concreto, de mais substantivo, pelo fato nada simples de existirem — de existirmos. Uma escrita que afirma o pronto-acabado e também o devir, sem rejeitar o abismo entre coisa e comunicação dessa coisa, sua construção em linguagem: “não posso explicar o vento/ não sei dizer como a coisa é/ sem traí-la” (poema 22, p. 31). E, como num ritual que coaduna o visível e o invisível, Dança para cavalos abre-se ao intangível da matéria para dela ouvirmos aqui.
JHENIFER SILVA, doutoranda em Teoria e Crítica Literária pela Unicamp, autora de no olho da mata virgem (2021, Ofícios Terrestres).