Artigo

Walter Firmo, a pele negra da fotografia

Com trajetória longeva, fotógrafo carioca estabelece visibilidade do negro na sociedade brasileira

TEXTO José Afonso Jr.

01 de Julho de 2022

'Maestro Pixinguinha' (Alfredo da Rocha Vianna Filho), Rio de Janeiro, RJ, 1967

'Maestro Pixinguinha' (Alfredo da Rocha Vianna Filho), Rio de Janeiro, RJ, 1967

Imagem Walter Firmo/Acervo IMS

[conteúdo na íntegra | ed. 259 | julho de 2022]

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No documentário Muito prazer, Walter Firmo, de 2008, dirigido por Zeka Araújo e Vicente Duque Estrada, o fotógrafo explica uma de suas teses centrais. Lançando mão do que é talvez a sua imagem mais lembrada, o retrato de Pixinguinha feito em 1967, na qual o músico segura um saxofone e olha para um ponto abstrato, fora do enquadramento. “Há dois tipos de fotógrafo. Um é como o batedor de carteiras. Aquele cara que age rápido, chega na cena, obtém a imagem, às vezes de modo atabalhoado, faz o clique e some. Outro, é o engenheiro. Esse arruma a cena, compõe, resolve o enquadramento, estabelece relações entre o personagem e o ambiente. É o Walter Firmo que coloca o Pixinguinha na cena, sentado, debaixo de uma mangueira, dirige e faz a foto. E tem aquele outro que é a soma dos dois: o invisível. Esse é o Cartier-Bresson. Consegue ser rápido e compõe a cena de modo perfeito.” Parece fácil.

François Soulages, autor de Estética da fotografia, diz que não se tira uma foto. Ao contrário, põe-se, elabora-se ou intenciona-se uma fotografia. Isso fala sobre o fotógrafo-autor que se coloca entre limites e possibilidades de criação em outra ordem de tempo, assuntos, sujeitos e abordagens. Noutro prisma, ao “se colocar uma foto”, se estabelecem vínculos entre a obra, o autor e como tal conexão informa o que vai ser fotografado antes mesmo dessa fotografia vir a informar.

Walter Firmo, 84 anos, fotógrafo, negro, brasileiro, filho de paraenses – pai negro e mãe branca –, nascido e criado no subúrbio carioca, morador transitório no Recife dos anos 1940, viajante. Foi até verbete da Enciclopédia Barsa, diante do destaque de sua trajetória. No caso, o lógico é sobrepor trabalho e obra, percurso de vida e fotografia. Assim, multiplicam-se os feixes de sentidos na direta proporção em que o seu engenho de composição, os seus assuntos e posicionamentos elaboram visualmente uma presença do povo negro brasileiro.


Walter Firmo, São Paulo, SP, c. 2010.
Imagem: Marcio Scavone/Divulgação

As fotografias de Walter Firmo são sujeito, matéria e percurso do seu trabalho em uma larga exibição organizada pelo Instituto Moreira Salles – IMS, aberta no prédio da Avenida Paulista, em São Paulo, desde 30 de abril, permanecendo em cartaz até 11 de setembro deste ano. Em seguida, terá lugar no Rio de Janeiro. A exposição, intitulada No verbo do silêncio, a síntese do grito, tem curadoria de Sergio Burgi, curadoria adjunta de Janaína Damaceno Gomes, com assistência da conservadora-restauradora Alessandra Coutinho Campos, pesquisa biográfica e documental de Andrea Wanderley, e integrantes da Coordenadoria de Fotografia do IMS. Apresenta um conjunto de 266 fotografias, que cobrem uma parcela da produção de Firmo desde os anos 1960.

A partir de um recorte extraído de um volume de imagens com 140 mil registros, sob cuidado e conservação do IMS, a linha de força da exposição consiste não somente em perceber em Firmo a plasticidade da sua fotografia em cores. Esse viés de mestre colorista é recorrente em muitas das críticas, textos e entrevistas do fotógrafo, ou sobre ele. Afinal, na adoção do colorido em seu trabalho desde os anos 1960, ele se tornou um referencial de expressão de uma certa cor brasileira, tropical, vibrante e temperada.

A contrapelo desse fio que liga Firmo à paleta de cores, há toda uma parcela da mostra realizada em preto e branco, em formato quadrado, na qual ganha destaque o ensaio realizado ao longo de alguns anos na Praia de Piatã, em Salvador. Lá, o balneário é reduto de lazer da população negra. O modo de ocupação que emerge nas fotografias é povoado por famílias, casais, jovens e crianças negras, em momentos de relaxamento e esvaziados de conflito aparente. O conjuntos dessas fotos dão a ver, entre outros sentidos, o que seria um país desenraizado do racismo.

Para além dos marcos estéticos praticados em cores ou preto e branco, o que dá corpo e pele à sua obra é a assimilação da negra cor. A mesma que habita o país com a segunda maior população negra do mundo (a Nigéria é o primeiro). Seria óbvio, portanto, termos na fotografia, em geral, a presença da população que descende da diáspora africana ocupando trabalhos, temas e espaços sincrônicos à sua importância ancestral, cultural, religiosa, artística. Mas, no Brasil, as cores e suas separações sempre vão além do óbvio.

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Há um eixo que estrutura o trabalho de Firmo. Primeiro, ele seleciona: não repete, nem generaliza representações do povo negro que estigmatizem e tipifiquem a cor da pele vinculada às situações discriminatórias e depreciativas. Nas palavras dele, em entrevista para este artigo: “Para mim, o fotógrafo trabalha com uma engenhosidade cerebral aliada ao seu estado físico e de artista. Você quer algo mais do que uma fratura exposta, que é aquela foto onde se tem sempre o domínio da imprensa (...) o flagrante. Isso eu estou fora! Desde quando, aos 15 anos, resolvi ser fotógrafo, queria trabalhar com outros enredos de verdade que constituem a vida, que é o sonho, não é?”. Segundo, as imagens se articulam, assumem posicionamentos engajados. O leque de possibilidades enquadrado, colorizado, organizado em composição e eternizado por Walter Firmo é uma postura política, alinhada à visibilidade do negro na sociedade brasileira, não necessariamente seguindo uma estética documental pré-estabelecida.

O ponto de virada, segundo o próprio Firmo, se deu no período em que viveu nos Estados Unidos. Já com 30 anos, fotógrafo reconhecido no meio profissional, trabalhava na sucursal de Nova York da extinta revista Manchete. Um dia, o chefe de redação mostrou-lhe uma carta chegada do Brasil. Nela, um jornalista dizia não entender como a Editora Bloch podia ter como correspondente um “mau profissional, analfabeto e negro”. A reação diante do racismo explícito veio em forma de indignação e de uma adesão direta ao slogan black is beautiful em duas frentes: no corpo, pela adoção do penteado black power; e em sua fotografia, a partir daí direcionada definitivamente à população negra.

    

    

    
Retratos feitos na Praia de Piatã, Salvador/BA, nos anos de 2000,
2002 e 2003. Imagens: Walter Firmo/Acervo IMS

No conteúdo da exposição, acessível também pelo catálogo bem editado, percebe-se como essa linha autoral de Firmo não se deu de modo instantâneo, mas cumulativamente. Percebe-se o progressivo afastamento de sua linguagem visual de uma urgência pragmática do fotojornalismo, direcionando-se àquilo que o curador Sérgio Burgi denomina “síntese narrativa de imagem única”.

Proposta: olhe para a célebre fotografia de Pixinguinha. Saiba que ela foi dirigida e construída. Mas esses protocolos de encenação, para além da linguagem autoral, revestem-se de atributos como a consciência de pertencimento racial, cultural e o enfrentamento (lembrem-se, a foto é de 1967) das bases rígidas da fotografia documental, bem como da fotografia de imprensa de então.

O exercício crítico sobre fotografias é entender por que elas são como são. Rever Pixinguinha pelos olhos de Firmo envolve, para além das intersubjetividades em jogo, acessar a importância do músico, a brasilidade presente e o percurso do fotógrafo. Este, alinha os elementos entre o personagem, a cadeira de balanço, o saxofone, a sombra da mangueira. Mostra um Brasil delicado, sereno, possível na sensibilidade, tributário da arte e do trabalho do povo negro. É uma fotografia icônica, pois está prenhe de sentidos. Ela seria menos verdadeira por ser dirigida?

O método do “fotógrafo-engenheiro da síntese narrativa de imagem única” enlaça duas estéticas aparentemente dessemelhantes. Primeiro, a fotografia nas ruas, nas florestas, nos terreiros, nos sertões. Segundo, a conciliação dessas geografias diversas com o protocolo da pose. Esse protocolo, para quem fotografa, envolve um tempo de elaboração, de envolvimento, do entendimento das particularidades dos sujeitos e sua tradução em empatia. Recurso presente, por exemplo, no estúdio, ou mesmo na fotopublicidade. Firmo inverte as técnicas, quando aponta a câmera para uma relação dos sujeitos com as paisagens ou com o entorno, equalizando o acaso da rua e o controle dos procedimentos. Gerando o que, com tranquilidade, assume ser o Brasil como seu estúdio.

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Prosseguindo, no conjunto de referências operado por Firmo, há elos com as artes visuais, destacadamente do trabalho de Alberto Guignard, de sua abordagem modernista com temas e personagens brasileiros.

As referências das artes plásticas são possibilidades de elaboração visual que deslocam a encenação, a pose e a direção para os códigos e características da frontalidade, do enquadramento direto e figurativo, organizados em modo de retrato fotográfico. Contudo, nessa transcodificação, há a vivência do próprio Firmo: “Eu estava em um mostra da pintura de Guignard. Foi quando eu o conheci através da sua arte e vi lá um quadro com um fuzileiro do lado de uma sinhazinha. Poxa, Guignard! A gente tinha que ter visto isso aí... Essa imagem sou eu, um filho de um fuzileiro naval. Foi por aí”, expõe.


Cantora Clementina de Jesus, Rio de Janeiro/RJ, c. 1977.
Imagem: Walter Firmo/Acervo IMS

Essa ultrapassagem de fronteiras dos gêneros fotográficos propicia a arena de enfrentamento de várias proposições sobre a fotografia, os assuntos e o direito de como isso deve ter visibilidade. Não à toa, a opção de Firmo de reconhecimento contínuo e central do negro na sua imagem enquadra músicos, atores e atrizes, artistas visuais, pessoas de destaque. Se nas suas fotos habitam Clementina de Jesus, Dona Zica, Cartola, Nelson Cavaquinho, Donga, Carlos Cachaça, Candeia, Dona Yvone Lara, Jamelão, Mestre Marçal, Madame Satã, Ismael Silva, Paulinho da Viola, Moreira da Silva, Milton Nascimento, Paulo Moura, entre tantos outros, elas também são atravessadas por brasileiras e brasileiros anônimos, pescadores, brincantes, vendedores ambulantes, quilombolas, trabalhadores, passistas, pais e mães de santo, seus próprios pai e mãe, personagens da diáspora fotografados em outros países, como Cuba, Cabo Verde, Jamaica, EUA; seja na desambição das vidas cotidianas, como no êxtase das festas religiosas, na cultura popular, nos subúrbios. Cara a cara, olho no olho, pele a pele.

Como ele afirma, em entrevista transcrita no catálogo da exposição: “Tudo, incluí tudo no mesmo saco. A vertigem é em cima deles. De colocá-los como honrados, totens, como homens que trabalham, que existem. Eles ajudaram a construir este país para chegar aonde ele chegou, mão negra, mão crioula. Então, isso não podia passar em branco na minha vida, era uma desforra”.


Artista Arthur Bispo do Rosário na Colônia Juliano Moreira,
Rio de Janeiro/RJ, 1985. Imagem: Walter Firmo/Acervo IMS

Perceber que, em um país imenso – em tamanho e diferenças – como o Brasil, essa presença dá o grau de identidade entre o transitório e a permanência, atando visualidades separadas pela geografia e pelo tempo. Pela linha invisível do imaginário que introduz a câmera entre o real, a cenografia e as referências de um território que precisa ser permanentemente redescoberto. É esse banal, coloquial, cotidiano e popular que evoca um delírio cromático impossível a olho nu, mas que faz todo sentido ao ser fotografado. E que compõe o discurso entre o fundo-cenário do enquadramento e o protagonista no primeiro plano.

É, contudo, indissociável moldar a linha autoral de Firmo ao ambiente profissional em que se formou. Relembrando, nas décadas 1950 e 1960, que tivemos no Brasil a era de ouro do fotojornalismo das revistas ilustradas como O Cruzeiro, Realidade, Manchete, Fatos e Fotos. Nelas, o jovem fotógrafo testemunhou, conviveu e aprendeu com nomes como José Medeiros e seu interesse nos rituais de matrizes africanas e cultura popular; com Jean Manzon, no impulso de revelar o Brasil profundo, dos indígenas, dos grotões em modo de grande reportagem; de Marcel Gautherot, na expansão para o oeste, construção de Brasília; e de Pierre Verger, na dedicação deste em registrar e sistematizar com etnografia e fotografia os saberes afrodescendentes, sobretudo na Bahia, com ênfase no candomblé e seu enraizamento cultural. “Foram todos meus professores. Nos temas do trabalho deles e no modo de fotografar em 6x6, com a Rolleiflex”, diz ele, referindo-se à câmera de médio formato muito utilizada no fotojornalismo dos anos 1940 até os anos 1960.


Cavalhada, Pirenópolis/GO, 1986. Imagem: Walter Firmo/Coleção do autor

Se, por um lado, temos hoje diversos exemplos de elaboração da imagem do negro na fotografia contemporânea, nem sempre a historiografia e ascendência dessas imagens são evocadas. Perceber que o trabalho de Walter Firmo toca e antecipa questões urgentes sobre a representação do negro, em 50, 60 anos, é algo necessário justamente por assinalar que seu trabalho era uma exceção que confirmava a regra. Transitava entre espaços depreciados da condição social e racial como norma, com canais midiáticos alinhados a posturas racistas e segregacionais. Em meio a isso, os cliques de Firmo, numa interpretação mais profunda, agiam politicamente como uma mímica fotográfica, tocando nas questões de emancipação, orgulho e altivez do povo negro brasileiro. Onde se impedia o grito, a imagem era o verbo.

“Eu trabalho numa excelência de poder deflagrar que meu povo trabalha, que fez esse país. Que tenha essa consciência. Tem família, é do bem. É um totem para mim. Eu sei trabalhar no silêncio. É o meu rancor e a minha percepção em relação a esse enredo, né? Mas, quando eu comecei a fotografar, os únicos negros que eram publicados eram os que faziam teatro, o Grande Otelo, ou o jogador de futebol, como o Pelé. Era isso, o resto não existia. Era aquele cara da foto entrando no camburão da polícia, que vai receber paulada. Eu fiz isso, com sofreguidão, com discernimento e com muita vontade realmente de praticar, embora, de forma silenciosa, todo o meu pudor e o meu rancor em relação a essa atitude.”

Há uma presença recorrente nas palavras de Firmo no que diz respeito à matéria e aos sujeitos que fotografa. São termos como totem, celebração, glorificação, dignidade, orgulho, edificação, altivez, consagração. São ideias, de certo modo, ligadas à religião e a presença do sagrado. Mas, também, são linhas-guia de uma postura sobre o outro. Ao invés de repisar tanto os clichês e tipificações, como as discussões superadas sobre os essencialismos do que é o verdadeiro sentido da fotografia, Firmo opera a quebra de amarras entre o fotógrafo, o real e a fotografia. Faz isso injetando valores de percurso e vivência próprios. Nisso, entre o “silêncio que grita” e a “imagem-verbo”, ele fala do que o negro, o Brasil e a fotografia podem ser.


Gaudêncio da Conceição durante Festa de São Benedito, Conceição da Barra/ES, c. 1989. Imagem: Walter Firmo/Acervo IMS

Durante a entrevista com Walter Firmo para a Continente, não lhe perguntei como ele se qualificava no campo da fotografia. Repórter? Testemunha? Viajante? Artista? Fotógrafo documental? Ativista? Nem quantos livros publicou, nem quantos prêmios ganhou, ou quantos países visitou. Com o tempo, aprendi a não fazer perguntas desnecessárias. Pois, quando o entrevistado é uma referência, melhor que ele se explicar é interpretá-lo. Ao colocar uma foto, em quaisquer desses regimes visuais, o que suscitará que a mesma, ou o conjunto da obra, salte do oceano de excessos das imagens contemporâneas para ser percebida, destacada e problematizada, é ser dotada de singularidade. Mais que verdade, ou fabulação; mais que documento, experimento ou expressão, a fotografia de Walter Firmo fala de singularidade. E esta, em preto e branco ou em cores, tem sempre a pele negra como protagonista.

JOSÉ AFONSO JR., professor e pesquisador.

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