Entrevista

“Os bailes são uma via para a ação política”

Professor da Universidade Federal do ABC e pesquisadora de Comunicação e Música comenta sobre a Black Rio, a festa popular e negra enquanto potência social e sua experiência na docência

TEXTO Antonio Lira

01 de Julho de 2022

FOTO José Justo

[conteúdo na íntegra | ed. 259 | julho de 2022]

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No dia 10 de novembro de 1971, na sede do Astória Futebol Clube, foi organizada a primeira festa na qual se tocou e dançou a soul music no Rio de Janeiro. Surgido nos Estados Unidos, o gênero musical, cujo nome significa “alma”, tem uma íntima relação com as experiências da população negra norte-americana e suas influências estéticas se espraiaram pelo mundo através do (re)conhecimento dos povos da diáspora. Desde o final dos anos 1960, a soul music já aparecia nos sets de DJs cariocas e vinha, aos poucos, deixando sua marca na produção musical brasileira. Mas foi naquele momento que surgiu uma festa exclusivamente dedicada a esse tipo de música, que se desdobrou num movimento que tinha como mote o lema “Black is beautiful” (Negro é belo). A cena musical da Black Rio, consequência direta dessa efervescência, foi tema da tese de Luciana Xavier de Oliveira na área de Comunicação, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pela qual ela recebeu o prêmio Compós de melhor tese de doutorado em Comunicação, em 2017.

A iniciativa de investigar o assunto veio das próprias vivências da pesquisadora, que frequentava os chamados bailes charme, no Rio de Janeiro, durante os anos 2000. Ao se deparar com uma pista de dança que celebrava a cultura e a beleza de pessoas negras, ela teve a curiosidade de entender como esse fenômeno havia se formado. É a partir disso, mas também num ímpeto de perceber como a música e a festa a afetam, que ela vem tecendo sua carreira como professora da Universidade Federal do ABC e pesquisadora da área de Comunicação e Música.

Nesta entrevista, realizada para a Continente por chamada de vídeo, direto de sua casa em Santo André (SP), ela fala sobre música brasileira, a Black Rio, a festa popular enquanto ferramenta política, suas experiências como docente e a importância de pensar novas epistemologias que permitam que a academia abrace novos mundos.


Cena do documentário 1976 – Movimento Black Rio, lançado em 2016.
Imagem: Frame do filme 1976 – Movimento Black Rio/Reprodução

CONTINENTE Para começar, queria que você falasse sobre a importância da Black Rio para a gente pensar a música brasileira na segunda metade do século XX. O que foi esse movimento – se é que a gente pode chamar de movimento – e por que é importante que conheçamos mais sobre ele.
LUCIANA XAVIER Eu nem considero muito a Black Rio um movimento, porque movimento, conceitualmente, tem que ter determinadas regras: lideranças, um tempo de atuação mais ou menos definido, uma ideia de algo formulado, com um programa, bases definidas, objetivos mais ou menos comuns, um horizonte de atuação. A Black Rio foi uma cena, uma coisa espontânea que começou a ser gestada em alguns pontos convergentes, mas paralelos. Às vezes, também não eram convergentes. Acontece uma coisa aqui, daqui a pouco acontece outra ali, daqui a pouco uma pessoa vê aquilo que está acontecendo e faz outra coisa. Entendo mesmo nessa ideia de cena musical, na qual a gente tem trabalhado dentro da Comunicação e da Música, como uma ação que se desenvolve em determinados territórios da cidade, uma atividade coletiva de pessoas que se reúnem para ouvir música, para a fruição daquele território, que ganha uma simbologia. E, aqui, estou pensando não só em termos de zona norte, zona sul ou centro, mas como a própria pista de dança, o baile em si, se converte nesse território simbólico.

Era uma coisa que já estava em efervescência desde muito antes, com a chegada da música norte-americana, especialmente a música norte-americana negra, no Brasil. Essa música estava chegando pelo rádio, pelo disco, pelo cinema; depois, pela televisão, e as pessoas já estavam elaborando ali, a partir dela, não só outros gêneros musicais, mas outras formas também de lazer e de divertimento popular. A Black Rio é mais uma etapa desse processo de divertimento coletivo com a tradição dos bailes populares, que não aconteciam só no Rio de Janeiro, aconteciam no Brasil todo. Especialmente uma tradição de bailes negros, que ocorriam em áreas mais periféricas, mais suburbanas. A ideia de subúrbio nem sempre funciona em todas as cidades do Brasil, mas, no Rio de Janeiro, ganha uma ideia mais concreta. É aquela formação de bairros populares ao longo da linha do trem, que vai se encaminhando para mais distante do centro, sendo ocupada por uma população que também foi expulsa do centro nos diferentes processos de reurbanização. São próximos a regiões de fábrica, onde tinham empregos. Você tem outras formulações de núcleos populacionais, de comércio, de serviços, que passam a ser oferecidos, tem uma espécie de descentralização para a formação de outros centros. Uma pulverização, que tem a ver mesmo com o próprio crescimento da cidade e da região metropolitana.

Nesse sentido, estou pensando em como é que você tem uma formação de uma cena mais ampla a partir desses pequenos focos de festa que já tinham uma tradição de baile, de entretenimento popular, de você ir para a festa no final de semana, que também não era muito bem-documentada pela imprensa da época, para além das coisas que estavam acontecendo em teatros de revista, em grandes espaços mais famosos. Fica difícil pensar em movimento, porque era algo que já existia, mas que não necessariamente tinha um foco no consumo do soul ou do funk (americano) que se estabelece mais nesse comecinho dos anos 1970.

Você também tinha uma articulação não só de jovens negros criando os primeiros bailes voltados para uma população negra para tocar black music, mas também tinha um pequeno consumo de música negra a partir dos bailes que aconteciam na zona sul, na área nobre, nas festas realizadas por um DJ muito famoso, o Bigboy. E algumas boates da zona sul começavam a sair um pouco do rock e pop, que tocavam na época, para tocar um pouco de black music. Já havia um consumo e uma tradição de bailes tocando outro tipo de música. A Black Rio se inicia necessariamente quando um DJ resolve fazer um baile só tocando música negra norte-americana, que não era destinada só a pessoas negras, mas que, obviamente, atraía uma maioria de pessoas negras e suburbanas naquele momento. 

Para pensar cultura brasileira, fundamentalmente também, acho que foi um momento importante de organização. Estou aqui pensando primeiro, antes de pensar numa questão mais simbólica e identitária, numa organização de um segmento de consumo que não era valorizado necessariamente pela indústria fonográfica. Porque, claro, havia uma fragmentação de se pensar em segmento popular, porque se fala em povo no Brasil, mas sem pensar na racialização, no processo de segmentar por raça. Isso passa a entrar no radar das gravadoras. De se produzir música para um determinado segmento que não só era popular como também era negro, especialmente jovem, com maior acesso a informações, porque a gente está pensando num processo de começo de uma globalização. É a roupa da moda, a música da moda, o filme, a capa do disco, a revista, e isso estava chegando para essas pessoas que não se viam contempladas antes e que não eram representadas na produção midiática em geral, em termos de imagem.

Claro que a música brasileira sempre foi música negra, desde o começo. Mas, ali, naquele momento, por uma influência norte-americana – as gravadoras também queriam vender aqui o que estava sendo vendido nos Estados Unidos. Você tem essa formulação de novas segmentações de mercado e de um mercado popular, um mercado suburbano. É uma nova ideia de popular, que não é imediatamente sinônimo de pobre. São pessoas que estão ingressando no mundo do consumo, estudando, ingressando na universidade. Você tem um processo ali do milagre econômico, ainda que tenha muitos problemas, que depois gerou uma hiperinflação. Mas, naquele momento, foi importante para uma pequena formulação de uma pequena classe média, classe média-baixa negra urbana no Brasil. Que não era só no Rio: era em São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre. Essas cidades também tiveram manifestações de movimentos black, de bailes de soul, e em outras também. Esse é um momento importante para pensar socialmente, como é que a gente começa a ter outras segmentações de consumo, de mercado, não só para a música, mas outras formulações de uma ideia de juventude. A juventude não era só a branca que ia ouvir o iê-iê-iê ou a bossa nova. Que outro jovem era esse que estava participando da vida pública e da vida cultural brasileira?

Em termos musicais, a influência da soul music na MPB já vinha chegando um pouco antes, mas ela ganha muito mais força não só no sentido de as gravadoras começarem a se abrir para cantores negros que assumiam uma dicção mais soul ou mais funk. Estou pensando em Wilson Simonal, Tim Maia, Jorge Ben Jor, que são os antecessores. E, um pouco depois, Gerson King Combo, Tony Tornado, outros cantores que estavam diretamente ligados aos bailes, Carlos Dafé, Hyldon, Cassiano, Luis Vagner e uma série de compositores que tinham esse acento soul, que estavam tentando fazer uma música brasileira com essa influência mais forte.

Mas isso também passa a influenciar os próprios cantores da MPB. Elis Regina regrava Tim Maia; Roberto Carlos também. O próprio Luiz Melodia tem um processo de lançamento de carreira ligado aos bailes. Você vê essa influência em Gilberto Gil, que grava Refavela (1977), em Caetano Veloso, que faz uma turnê com a banda Black Rio. Havia uma modificação da própria MPB, que estava ali mais uma vez incorporando outras sonoridades, outros estilos e estéticas. E, claro, o segmento do soul, dentro da indústria fonográfica, dura muito pouco tempo, mas acaba meio que se modificando e se convertendo, ou influenciando – e penso que tem muito a ver com a própria carreira do Tim Maia – num acento muito popular para a música brasileira. Não só para a MPB, mas para a própria música popular romântica, que era influenciada pelo bolero, pelo samba-canção, por um acento mais latino-americano, e que vira uma espécie de R&B, uma música soul.

E também o samba, que já vinha influenciado pelo jazz – se você pensar o samba de gafieira, o samba orquestrado –, também traz essa incorporação de instrumentos, de formas de canto. Os próprios cantores e compositores que circulavam pelo Cacique de Ramos – um espaço de samba, que também é um bloco de carnaval –, como Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Arlindo Cruz, também frequentavam bailes de soul e começam a incorporar essas sonoridades, esses instrumentos, nas próprias músicas. Essa introdução do teclado, da guitarra, do baixo, do saxofone, chega até ao pagode romântico. Está salpicando, o soul está passeando em vários lugares.

 

 
Seguindo os EUA, gravadoras do país abriram espaço para artistas que tivessem uma dicção mais soul, como Jorge Ben, Tim Maia, Wilson Simonal e Gilberto Gil. Imagens: Reprodução

CONTINENTE Na introdução da sua tese, você fala que não havia muita bibliografia sobre a Black Rio na Comunicação e, quando tinha, ela aparecia como um movimento embrionário do funk carioca. Mas, de fato, qual é a relação da Black Rio com o surgimento do funk carioca?
LUCIANA XAVIER É engraçado que, quando você conversa com algumas pessoas, não têm essa associação, especialmente quem participou mais ativamente da cena do soul. Alguns dizem que o soul não tem a ver com o funk carioca, mas que é a origem dos bailes charme. Mas eles estavam no mesmo espaço, nos mesmos territórios periféricos, dentro da mesma tradição da festa e dos bailes e, especialmente, de ouvir música norte-americana.

Quando muda a chave do soul para o funk (americano) e depois do funk para o miami bass – que era o que chegava, porque tinha a ver mesmo com o trânsito do dinheiro –, os DJs e produtores começam a viajar, eles próprios, para os Estados Unidos para comprar os discos, para tocar nos bailes, e vão pegando as novidades que tem lá. Parece que o miami bass deu muito certo no Brasil porque era mais barato ir pra Miami do que ir para Nova York; então, ele chega primeiro ao Brasil, já nos anos 1980. E quando os bailes saem da grande mídia, muitos DJs param de produzir bailes de black music, porque aquilo cai um pouco, sai de moda. Muitos também ficam com medo da perseguição da ditadura. Tem gente que sai pra investir em outra coisa, vai tocar em discotecas e para de tocar soul. E as gravadoras também param de comercializar, de lançar coletâneas, de investir nos artistas do gênero. Mas muitos continuam.

Alguns desses DJs montam programas na rádio, continuam fazendo os bailes e continuam a atrair muita gente, mas não chamam a atenção, especialmente da juventude branca da zona sul. Porque aconteciam bailes também na zona sul e eles param de acontecer e aquilo volta a ser uma movimentação de periferia, meio invisibilizada. Mas que continua recebendo essas influências, essas músicas que estavam chegando de fora. O próprio (DJ) Marlboro, que seria um dos pioneiros do funk, frequentava bailes black. A Furacão 2000 era uma equipe de bailes de soul music e depois começou a virar equipe de funk (carioca). À medida que vão mudando a sonoridade, vão crescendo. Um vem antes do outro, é uma continuidade de música, uma renovação de público, renovação de comportamento, mas que estão completamente associadas. Claro que tem uma espécie de um racha em determinados produtores e frequentadores que querem uma música cada vez mais pesada, com uma batida mais marcada e outros que ainda preferem uma sonoridade mais lenta, para a execução de passos mais elaborados, que declina nesse movimento do baile charme, com a coisa do passinho, da roupa, da indumentária, você tinha que ir muito arrumado. Enquanto que o funk caminha para uma renovação mesmo, para outra ideia de juventude. Parece que o charme mantém um público mais velho, enquanto a garotada da época vai pro funk (carioca).

CONTINENTE As festas da Black Rio traziam essa questão do estilo, certo consumo de um padrão de estilo estadunidense. E isso era criticado, à época, tanto pela direita quanto pela esquerda, que enxergava o espaço dessa festa – associada à cultura dos Estados Unidos e ao consumo – como um movimento de “alienação”. Mas você traz muito bem, em seu trabalho, como essas articulações acabam por permitir que se pensem outras maneiras de fazer política, para além das políticas daquilo que poderíamos chamar de “linha evolutiva da MPB”. Nesse sentido, pergunto: como é que a gente poderia pensar numa política da festa?
LUCIANA XAVIER Primeiro, seria importante a gente entender de que tipos de política estamos falando. E não digo apenas em falar de política cultural, mas pensar, necessariamente, que a política é feita com o gesto. Ela é feita no encontro, com o olhar. Ela é feita em você estar em um determinado espaço em que não se esperava que se estivesse. É uma ideia de romper com aquele real para possibilitar que outros reais existam. Acho que isso já é fazer política. Então, a gente pensa que uma pessoa que está ocupando um determinado lugar, e não estou falando apenas em uma ideia de representatividade, não é isso, mas, sim, de modificar. Você contraria aquilo que se espera e cria novas expectativas, cria novas possibilidades. Isso já é fazer política. Essa é uma elaboração mais generalista, mas você pode pensar: o que é que é a festa? Existem várias acepções. Umas mais antropológicas, de pensar a festa como rituais que demarcam a experiência ao longo de um ano, por exemplo, ou dos diferentes anos, em diferentes sociedades. Pode ser também uma forma de ritualização do cotidiano, uma forma de trabalhar com o sobrenatural – em festas associadas a divindades –, mas, fundamentalmente, é um movimento de sociabilidade, de comunidade. De estreitar laços sociais e de fundar outros laços sociais. Esse é um ponto certo, que também é uma forma de modificar aquele cotidiano e aquele real.

Mas numa sociedade segregada, racializada, desigual, como a sociedade brasileira – e especialmente pensando dentro desse contexto capitalista do mundo do trabalho –, parece que as pessoas começam a sentir mais necessidade da festa. Porque é tanta pressão, ao longo da semana, dos dias de trabalho, que você precisa ter festa toda semana. Antes, a festa era o São João, o Natal, o Carnaval e pronto. De repente, não, você começa a ter essa necessidade de mais festa para reduzir a pressão do cotidiano, dessa vida moderna, dessa vida contemporânea. E das dinâmicas de exploração, também. Pensando nesse sentido, você tem nessa festa um movimento de pessoas que não têm, no espaço público, a possibilidade de se afirmarem positivamente, de se verem positivamente. Falando especificamente da Black Rio, naquele espaço da festa elas podem se ver, elas podem se encontrar, podem estreitar laços de sociabilidade, podem retrabalhar essa positividade de se enxergar no outro, de se espelhar naquele outro e se ver. É uma questão de beleza, é uma questão de conforto, também. De você se sentir confortável ali e de sentir e produzir alguns ideais de liberdade, de autonomia e criatividade.

Claro que a festa pode, em alguns momentos, ser opressiva para determinados grupos. O Carnaval é opressivo para muitos grupos. Eu, particularmente, quero o Carnaval, mas, quando chega a hora, não quero. Porque sofro gordofobia, sofro racismo. A opressão da polícia, a opressão da mobilidade urbana que nos imobiliza. A festa também é um lugar de violência, ela pode ser um lugar de choque. Mas, de certa forma, política também é choque. Diante da tentativa de imposição de determinadas estruturas de poder, a festa também tem o poder de modificação de determinadas realidades, gerando também força política.

Politicamente, a Black Rio assume e difunde a questão do antirracismo, de diferentes maneiras, mesmo de forma ambivalente. Muitos DJs que eram negros e que falavam que “não é festa pra negro” reproduziam um medo, ali. Não só um medo da polícia, mas um medo da crítica, de uma espécie de perseguição moral. Porque, realmente, dentro das dinâmicas da ideologia da democracia racial, um dos artifícios é não se reconhecer a existência de racismo e de desigualdade racial. Se ainda estou dentro dessa dinâmica, não posso falar que estou lutando contra o racismo, não posso, ainda, assumir. Vai ficar chato pra mim e posso perder público. E havia DJs brancos também, que faziam festas black. Como é que eu vou falar de racismo, se vem branco no meu baile? É um lugar tensivo, naquele processo, mas que acaba assumindo essa bandeira, em um determinado momento, de afirmação negra, de diferentes maneiras. Seja pela beleza, pelo estilo, pelo consumo ou pela própria formulação de ações políticas mais tradicionais, com uma ação potente e duradoura. Inclusive, muitos desses jovens que frequentavam os bailes também foram se organizar para montar grupos de estudos e ajudar a fundar movimentos, como o próprio MNU (Movimento Negro Unificado), em São Paulo e em outras cidades também. Os bailes acabam, assim, sendo uma via para a ação política mais institucionalizada. Mas já era muito político um jovem negro botar um cabelo black, uma roupa estilosa e ir para uma loja de discos comprar o disco de uma pessoa igual a ele. Cantando uma música que está, sonoramente – porque a letra não necessariamente estava chegando para essas pessoas – se comunicando com suas próprias referências. Nesse sentido, é um movimento bastante político e que transformou o horizonte cultural e social na época.

CONTINENTE Você acha que, de alguma forma, essa influência mercadológica acaba trazendo essa discussão da racialização da MPB para fora dessa ideia de democracia racial? Porque, quando se pensa no lugar da negritude na MPB, isso parece surgir de uma ideia da diferença como algo harmônico. Parece então que essa é uma das potências da Black Rio: pensar a negritude na música brasileira para além da ideia de democracia racial.
LUCIANA XAVIER Sim. E também pensar nessa associação, de MPB e imagem. Porque, quando você pensa em MPB, pensa em branco. A primeira imagem que vem é Elis Regina, a bossa nova. Mesmo que tivessem negros participando dessa MPB, ainda assim, havia um imaginário do negro associado a uma ideia de samba. E, engraçado, eu não pensei em Wilson Simonal, quando fui falar de MPB. O Wilson Simonal parecia mesmo uma coisa à parte. Wilson Simonal, para mim, estava criando uma célula da música pop. Pop brasileiro é Wilson Simonal, junto com alguns outros artistas. Um pop negro. É uma convocação da própria noção de popular que chama atenção para que popular é esse que está excluindo pessoas negras ou que está colocando pessoas negras dentro do lugar do samba. Sempre o samba, o sambista. Acho que foi um movimento, nesse sentido.

Mesmo que não funcione, mesmo que, hoje, a MPB continue sendo branca, (a Black Rio) chama a atenção: “Olha, tem alguma coisa aqui!”. E, nessa época, você tinha toda uma ação de intelectuais negros e também de brancos que já estavam, desde os anos 1960, falando sobre racismo, que apontavam, por exemplo, para o ciclo acumulativo de desvantagens, que a desigualdade não é só de classe, ela também é de raça, que desconstruíam o mito da democracia racial. Então, o preto que é pobre tem menos oportunidades que o branco pobre. Você já tinha, ali, pessoas tentando chamar a atenção para isso e o movimento soul joga isso na mídia, na cultura musical e de entretenimento. Às vezes, de maneira problemática, mas acho que, para a juventude negra da época, foi importante.

CONTINENTE Falando agora sobre música americana: na época em que Beyoncé lançou o Lemonade (2016), ela recebeu críticas de fãs mais antigos que diziam que o álbum era bom, mas que sentiam falta de quando ela fazia “músicas para dançar”. Ao mesmo tempo, alguns setores da crítica perceberam que o movimento dela em se aproximar de gêneros como o rock, o country e o blues indicava um desejo da artista em fazer um álbum “mais sério”, como se seus trabalhos anteriores não fossem sérios. Por que é que se insiste nessa divisão entre uma música dita “séria”, para “pensar” e outra que seria “para dançar”, como se a música para dançar não fosse séria?
LUCIANA XAVIER Acho que é porque a gente tem uma configuração de sociedade ocidental, ou ocidentalizada, que, primeiramente, valoriza mais o intelecto, a inteligência intelectual, o cérebro, o que vem da cabeça, do raciocínio, da lógica, da escrita também, do que outras formas de inteligência, do que outras formas de linguagem, da oralidade, dos outros movimentos do corpo, que comunicam com a mesma potência ou até muito mais. Fico pensando também que tem uma coisa – e isso ganha mais contornos efetivamente junto com esse processo de industrialização – de uma crítica ao presente, na modernidade e na pós-modernidade. Tudo que é presente é ruim e o que é passado é bom. “Passou, ficou bom.” Não sei se sempre se fez essa crítica, parece que é uma coisa mais recente. A ideia de recuperar a tradição faz com que se construa uma ideia de que aquele trabalho, aquele produto, é mais inteligente, mais elaborado do que alguma coisa que está conectada com o presente. É uma construção e uma recuperação de tradição. Não estou dizendo que isso esteja errado ou seja bom ou ruim. Parece que isso está dentro de um processo que a Beyoncé está de tentativa de legitimação de música como algo intelectual e como algo para ir para o museu. Ela vai pro Louvre. E também para garantir um valor para aquilo. Como se o pop, o hit e a música só para dançar desaparecessem. E não desaparece, no fundo, não desaparece.


Com Lemonade, Beyoncé se aproximou de gêneros ditos mais “sérios” e
intelectuais, como o rock e o
bluesImagem: Frame do videoclipe de Lemonade/Reprodução

A gente, que está mais velho, lembra até hoje de músicas que foram o único sucesso, o único hit de um artista. E aquilo traz emoções. Essa ideia de sumir é mentira, a gente não esquece. Quando a gente ouve uma música só para dançar tem uma série de inteligências que estão sendo acionadas para além do intelecto. Acho que é isso. A Beyoncé – e não só ela, outros cantores pop e outras cantoras pop fizeram isso – fez uma tentativa de recuperar uma tradição para dar valor. Para conceder valor e legitimidade. É um discurso um pouco complicado, porque você sempre vai considerar aquilo que seria mais... E não gosto da expressão “simples”, mas, talvez, o espontâneo, ou o momentâneo, algo que você não precisa ficar meses elaborando, que você elabora ali e que pode ser dotado de complexidade, de profundidade, de referências anteriores também é dotado de valor, também tem mensagem. Parece que aquilo perde o valor diante de algo no qual você constrói muitas camadas. Acho que é um processo que já faz parte da indústria cultural. O filme bom é aquele que tem muitas referências; a música boa é a que tem muitas referências; o livro bom é o que tem muitas referências. E parece que ela se aproxima do rap também, então são músicas sem refrão, ou com pouquíssimo refrão, muita letra. Não estou dizendo, claro, que seja errado fazer rap. Acho que é um gênero musical sofisticadíssimo, mas acho que são essas tentativas, de legitimar, de construir valor, dentro de uma cultura estética ocidentalizada, e talvez de atingir outros públicos.

CONTINENTE Olavo Bilac disse, uma vez, que “o Rio é uma cidade que dança”. Ele disse isso de maneira pejorativa. Mas essa ideia, de que o Rio de Janeiro e o Brasil, por extensão é esse lugar alegre e feliz, acaba servindo para esconder as violências que acontecem na cidade e por todo o país. Você acha que essa imagem do carioca e do brasileiro alegre ainda persiste?
LUCIANA XAVIER O que estrutura o apagamento das violências é um projeto de país baseado na desigualdade, na pobreza, na miséria, na exploração. Uma alternativa para você tentar continuar explorando pessoas é fingir que está tudo bem e que não tem problema. E as pessoas acabam sendo condicionadas a acreditar nisso. Mas não estou dizendo que as pessoas, que o povo – e estou me colocando como povo – não saiba que está sendo explorado. As pessoas sabem que estão sendo exploradas, sabem que estão sofrendo, mesmo que haja um discurso oficial de Brasil como “país da alegria”, de “Rio de Janeiro, capital do Carnaval”, futebol, sexo, uma série de estereótipos que atravessam a nossa vivência o tempo inteiro. E que continuam em operação, inclusive internacionalmente. Mas acho que as pessoas têm muita noção de que tem muito sofrimento, de que tem muita miséria e de que tem muita desigualdade. Mas isso não exclui a possibilidade de você festejar, pensando na festa como um ato de resistência, de celebração de que “apesar de tudo, continuo vivo”. Talvez, em alguns contextos, em outras sociedades, faça sentido estar muito triste e ficar mais deprimido dentro de casa. E a gente meio que não. Está muito triste? Então vamos para a rua, tomar uma cerveja, rebolar, bater a raba no chão. Estamos, o tempo inteiro, celebrando o fato de que persistimos e que a vida pode ser mais. Que a gente está fazendo esse “mais” pela festa, pela risada. Mas isso não está fazendo com que esqueçamos a tragédia. Ninguém está esquecendo. É uma válvula de escape para a pressão, uma forma de restaurar laços sociais.

Acho até que você pode ter outros mecanismos de entretenimento que funcionem como controle, mas a festa popular, em que o povo grita, em que o povo ocupa a rua, em que não tem muita lei, muita legislação, é um movimento de restabelecimento de sociabilidade e de restauração da vida. Restauração de uma noção do outro, da cidade, de si mesmo como ser humano. A cidade se restaura também e não só uma cidade grande, como o Rio ou o Recife no Carnaval, mas a cidade pequena do interior que se organiza para fazer um São João, para fazer o terno de Reis. Aquela comunidade relembra esses laços, relembra suas histórias e celebra. É importante pensar nisso, que a gente pode lutar e pode celebrar. E a gente pode lutar celebrando e pode celebrar lutando.

CONTINENTE Muitas vezes a gente coloca o professor, ou o acadêmico, num lugar intocável. Como se fosse o único responsável por transmitir o conhecimento. Mas sabemos que, muitas vezes, os próprios professores aprendem muito com os alunos. Queria que você me contasse sobre algum momento da sua trajetória, enquanto professora, que lhe foi marcante no sentido de obter aprendizado.
LUCIANA XAVIER Eu sou bem tocável. Podem me tocar, fiquem à vontade para me tocar. (Risos) E acho que, hoje em dia, especialmente na universidade, o professor é mediador do conhecimento. Ocupo mais essa tentativa de lugar de mediação. Porque é isso, uma troca constante. Fico sempre falando o clichê: “A gente aprende muito com os alunos”. Mas a gente aprende, porque eles falam as coisas, vêm referências, eles trazem novos olhares, novos autores que vou pesquisar e aí eu já mudo uma aula. Nunca a aula vai ser exatamente igual, sempre vai ter alguma outra coisa que veio e que foi um aluno que trouxe.

Teve um episódio que aconteceu no começo, quando dava aula numa faculdade particular. Eu era nova ainda, na época, mas tinha alunos que eram da minha idade ou mais velhos. Dava aula num curso noturno e especialmente era isso, muita gente que tinha saído do colégio e estava correndo atrás do sonho de ter um diploma depois de anos trabalhando. Gente que estava ali para ter um aumento no salário, gente desempregada correndo atrás, gente mudando de carreira. Tinha gente muito pobre e é uma realidade que tem, mas que não está tão presente na universidade pública. Pessoas de menor poder aquisitivo, muito esforçadas, inteligentes, trabalhadoras, diferentes das com as quais eu estava convivendo até então, na vida acadêmica, no mestrado e doutorado na universidade pública. Eram alunos maravilhosos, turmas enormes.

E teve uma aluna, que era mais velha, ela estava até com o uniforme do trabalho, porque o pessoal saía correndo do trabalho para a aula, transporte público, todo mundo cansado, mas estava todo mundo ali, lutando. E ela tinha um filho pequeno, era casada, então era jornada quádrupla. Dei uma aula falando sobre identidade negra, falei sobre bell hooks e, no final da aula, ela virou e falou: “Professora, você tá vendo meu cabelo? Ele está todo esquisito porque estou parando de alisar por sua causa”. E perguntei por que e ela: “Eu vi o seu cabelo e achei tão lindo. E eu nunca tinha visto o meu próprio cabelo”. Isso acontece com muitas pessoas negras que passam anos sem conhecer seu próprio cabelo natural, aconteceu comigo. E ela, já uma mulher de 40, algo assim, dizendo: “Vou ver meu cabelo, eu quero ver como vai ficar meu cabelo, porque você é muito linda e quero ficar com meu cabelo igual ao seu e eu nunca tinha pensado em não alisar meu cabelo”. Estou falando isso e estou toda arrepiada. Ela me agradeceu. E agradecer pelo quê, sabe? E é isso que falo, o gesto político. Eu estava ali só existindo, mas existindo num lugar que eles nunca tinham visto. A maioria de alunos era de negros, mais velhos, de classe C, D, trabalhadores, da periferia. E eles estavam olhando pra mim e vendo uma coisa totalmente diferente. Muitos não achavam que eu era professora, alguns me enfrentavam, rejeitavam. “Quem é essa menina? Quem é essa menina igual a mim para me dar aula? E não uma mulher ou um homem branco, de óculos, mais velho?” E quando essa aluna me falou isso me tocou muito, a forma como ela chegou e me deu um abraço. Aquilo foi muito potente para mim, nunca esqueci. Tanto que estou falando para você, foi a primeira coisa que me veio à cabeça, porque foi muito singelo. Ela foi muito espontânea, muito aberta. Ela poderia não ter chegado e falado para mim. A minha presença ali, ou alguém como eu, poderia ter afetado a vida dela, de alguma maneira, e nada acontecer, mas aconteceu, foi importante. Não sei, exatamente, se ela deixou o cabelo ficar natural ou não, se ela voltou a alisar ou não, mas só de ela ter cogitado, só de você fazer uma pessoa pensar numa outra realidade dentro daquilo que aprendeu como correto, isso já é um ato extremamente político.

CONTINENTE Assisti à sua participação no curso Músicas Negras do Brasil, realizado pela Batekoo, e lá você fala em “etnografias alcoolizadas”. Como é que seriam essas etnografias alcoolizadas?
LUCIANA XAVIER Isso foi uma brincadeira. Mas a festa, em si, precisa ter métodos de pesquisa que são diferentes dos já estabelecidos. Precisamos desenvolver métodos específicos para pensar a festa, para pensar o baile, para pensar o Carnaval. O método etnográfico mais clássico é parar, entrevistar uma pessoa, sentar com um caderninho, fazer diário de campo. Fora que, a princípio, na etnografia mais clássica, você tem que ir várias vezes naquele local. Mas como é que você vai várias vezes, se a festa vai acontecer hoje? Está todo mundo bêbado, está uma confusão! Como é que você vai fazer isso? A gente precisa criar outros métodos para captar essas movimentações. A própria entrevista lhe diz muito sobre aquela pessoa que você está entrevistando, ela não vai lhe dizer sobre o entorno. E como é que você faz para captar informações desse espaço e dessa experiência que é movida pelo afeto, pelos sentidos, pelos sons? Muito som que não é só a música, são outros barulhos da festa. Muito cheiro, do corpo, cheiro da bebida, cheiro de perfume, cheiro de drogas lícitas e ilícitas. Como é que você vai captar isso para ajudar na análise e construir a teoria?


Gravação do DVD de funk Furacão 2000, Armagedon, no Rio de Janeiro, em 2010. Imagem: Celso Pupo/ Foto Arena

Acho que a gente precisa estabelecer – não descartando métodos mais tradicionais de investigação – alguma coisa interdisciplinar, para pensar nos vestígios, no que sobra, nos excessos, no que escapa. Vamos investigar uma festa, mas vamos ficar ali também até acabar e ver o que é que sobra. Um vestígio pode estar nos comentários em uma rede social e você pode incorporar procedimentos na etnografia como fotos, vídeos. Vídeo institucional da festa, da produção, vídeo da pessoa bêbada com o celular sacudindo, das luzes. As listas das músicas. Mas muito pode ser dito sobre a festa até olhando para o que está no chão. Quais são os restos? Tem xixi, ali no canto, tem cerveja derramada aqui, uma camisinha usada ali. O que é que esses restos dizem? Pessoas andando, caminhando na rua, gente que ainda está dançando. O som mais baixo, o som que acaba e o silêncio que vem depois, as paredes que você não tinha visto antes e que passa a ver. Tudo isso está lhe dizendo sobre aquela festa, aquela cena musical, aquele evento, aquele bloco de Carnaval. Então, é pensar em outros lugares, outras estruturas, que vão também comunicar sobre a festa, sobre o evento em si, sobre as pessoas que estiveram ali. Gosto de pensar nos trânsitos. A gente não vai para uma festa e fica parado no mesmo lugar. Talvez um show sentado, mas em pé já é um pouco mais complicado. Às vezes, a festa tem vários palcos, você sai, vai tomar um ar, volta, vai beber. A fila da bebida, a fila do banheiro, dentro do banheiro, em tudo isso tem sociabilidades diferentes, ritmos diferentes, que vão produzindo outros sentidos à medida que você vai bebendo cada vez mais. E, pensar isso, é se colocar dentro também daquilo que está acontecendo.

Na etnografia mais convencional, num primeiro momento, você não se coloca tão dentro. Você está sempre de fora. Mas como é que é isso? Como é o pesquisador que também dança? Como é o pesquisador que bebe? Como é o pesquisador que está na fila? Como é o pesquisador que tem ressaca e que tem que fazer as anotações no outro dia e que vai esquecer algumas partes? Como é o pesquisador que faz pesquisa e também flerta? Quando estava fazendo um artigo sobre a Batekoo, não lembrava que tinha tirado fotos. Comentei com uma amiga e ela disse que eu havia tirado e me mandou as fotos. Vi a foto e vi detalhes da foto, sobre mim, sobre o evento, que eu não lembrava. A falta também diz. Por que é que eu não lembrava? Porque eu bebi. Mas não é só porque bebi. Também participei da festa, também dancei, não estava só observando. Isso pode ser interessante para pensar em outros fenômenos culturais, porque essas metodologias foram desenvolvidas em outras épocas, em outra sociedade. Modificar os métodos, as perspectivas epistemológicas, para o novo mundo e novos fenômenos é cada vez mais urgente para incluir esses novos mundos dentro da própria ideia de pesquisa acadêmica.

CONTINENTE E, para terminar, qual a importância da música na sua vida?
LUCIANA XAVIER (faz uma longa pausa) Não vou dizer que música é tudo pra mim, porque não é. Mas acho que a música me deu uma estrutura. A música me deu um emprego. A música me deu uma graduação, um mestrado, um doutorado. Ela teve uma função estruturante, operou como uma ferramenta de organização do meu caos interno, de uma maneira bastante potente. Sempre fui uma pessoa muito melancólica. Ainda na adolescência, eu ia para a aula, estudava, tinha que fazer dever e, em um determinado momento, ficava em casa, deitada, ouvindo música, olhando para o teto. Obviamente que era um processo depressivo. Minha mãe e minha avó, na época, não tinham conhecimento, mas eu não estava bem comigo mesma. Mas, naquele momento, em que eu ficava ouvindo música e olhando pro teto – era Beatles, eu ouvia muito, era beatlemaníaca –, eu criava um mundo paralelo, fazia uma novelinha na minha cabeça. Nesse mundo, ouvindo música, era tudo melhor do que a minha realidade. E teve algum momento em que deu um estalo e eu disse: “Não, cara, agora eu quero ouvir uma música mais legal e quero que essa realidade mais legal, dentro da minha cabeça, vire essa realidade concreta, daqui fora”.

Não sei exatamente como fiz isso, foi aos poucos, mas consegui me organizar para que aquela música saísse da minha cabeça, do meu quarto, do meu teto, e tomasse conta do meu entorno, da minha vida. Fundamentalmente, foi isso, uma coisa muito concreta, de organizar o caos. Eventualmente, até gerou algum caos, porque, quando eu gostava de algum artista, ficava fissurada, obsessiva. Tinha um grupo lá do Rio chamado Eletrosamba. Ficava eu e minha amiga, a gente ia a todos os shows, mas não ia falar com eles. A gente ficava na frente, olhando fixamente. Duas psicopatas: acabava o show e a gente sumia. Não queríamos falar com eles e acho que era uma coisa de não quebrar esse encanto. Não posso saber que são seres humanos. Isso foi com várias outras pessoas, Jorge Ben Jor, Lulu Santos, Mariene de Castro, Negritude Júnior, Alceu Valença. Acho que fui a uns oito shows do Alceu Valença. Gera um caos. Porque tem que ir pro show, sai correndo, briga, vai pra lá, vem pra cá, transporte, às vezes não tinha dinheiro, passava a noite em claro pra esperar o ônibus voltar a rodar de novo e ir pra casa. Foi muito bom também no sentido de me dar autonomia. Por causa da música, conquistei minha autonomia. Uma autonomia subjetiva, uma autonomia como mulher. Acho que me reconheci negra também, em grande parte por causa da música.

Foi muito importante a primeira vez em que fui a um baile charme. Quando olhei, fiquei assim: “Caralho, é todo mundo negro! Caraca, todo mundo parecido comigo!”. Porque eu morava num bairro de classe média alta, numa cidade de classe média alta. Niterói tem morro, tem favela, tem pobreza, mas tem muita gente com dinheiro. Eu estudava em colégio particular, todos os meus amigos eram brancos, mas a minha família toda era negra e morava na periferia, numa outra cidade, em São Gonçalo. Então eu ficava nesse entrelugar o tempo todo. E quando fui, a primeira vez, no baile charme, que olhei, não acreditei. Não era possível. Porque até então eu só tinha visto tanta gente negra junta quando ia à casa das minhas tias. Mas ali não, aquelas pessoas não eram parentes, era uma multidão se divertindo, lindíssimos. Não que no baile funk as pessoas não vão arrumadas. E queria até fazer um parêntese aqui. Disse que o pessoal se arrumava muito para o baile charme e para o baile funk, não. Para o baile funk arruma-se muito, mas é outro estilo, é outra construção. Acho que, no baile charme, naquele tempo, a galera tentava aparentar uma coisa mais burguesa, terno, blazer, salto alto. No funk, há uma estética mais juvenil, das marcas, do tênis, boné. Então, o baile, a festa negra, junto com a música, representou uma etapa fundamental na construção de autonomia, de reconhecimento, de olhar positivo para mim mesma.

ANTONIO LIRA, músico, pesquisador e mestre em Comunicação pela UFPE.

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