Resenha

Discos antológicos da música brasileira

Coleção de livros sobre álbuns marcantes da MPB caminha para o quinto volume. 'Refazenda', tendo abordado 'Da lama ao caos', 'Acabou chorare', 'África Brasil' e 'O canto da cidade'

TEXTO Yuri Euzébio

01 de Julho de 2022

Imagem Arte sobre reproduções

[conteúdo na íntegra | ed. 259 | julho de 2022]

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De tempos em tempos, surgem listas classificando os melhores álbuns da Música Popular Brasileira, sendo elas uma espécie de fetiche da imprensa nacional herdado do jornalismo britânico. Recentemente, chamou a atenção de todos um novo ranking com “os 500 maiores álbuns brasileiros de todos os tempos”, cujo número 1 era ocupado pelo Clube da Esquina (1972), de Milton Nascimento e Lô Borges.

Quem assinou o projeto foi o jornalista Ricardo Alexandre, criador do podcast Discoteca Básica, que ouviu 162 especialistas –jornalistas, youtubers, podcasters, músicos, lojistas, produtores – de diferentes áreas, em busca de um consenso. A verdade é que, em geral, essas listas apontam para os mesmos nomes e discos. Funcionam como uma grande convenção nacional em torno de clássicos inegáveis da nossa MPB.

Partindo em direção oposta, os livros da Coleção Discos da Música Brasileira: História e Bastidores de Álbuns Antológicos da Sesc Edições (SP) procuram esmiuçar grandes discos da MPB que não são exatamente óbvios e nem costumam figurar nas mais altas posições das grandes listas de melhores de todos os tempos, contemplando a valorização da memória musical, em busca de observar os ecos e reverberações dessa produção na atualidade.

Tudo surgiu de um projeto do Sesc de classificar alguns dos grandes álbuns brasileiros para a realização de shows com o repertório na íntegra. “Fizemos seis shows na época, em 2005; quando eu vim pra editora, pensei em dar uma retomada no olhar desses discos. Aí chamei o Lauro Garcia, nós conversamos sobre fazer uma série de livros que explorassem a construção dos álbuns”, conta Jefferson Lima, editor da Sesc Edições. De acordo com Jefferson, desde o princípio, a ideia foi de fazer livros-reportagens que ouvissem o maior número de envolvidos na produção desses grandes discos.

“A ideia era que pudéssemos reconstruir esse momento da criação dos discos. Aí, conversando com o Lauro, chegamos a esses cinco discos da primeira leva. Quatro já saíram e o quinto está para sair”, disse o editor. Dentre os livros lançados até agora, estão: Da Lama ao Caos – Que som é esse que vem de Pernambuco (2019), de José Teles, Acabou Chorare – O rock’n’roll encontra a batida de João Gilberto (2020), de Márcio Gaspar, África Brasil: um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver (2020), de Kamille Viola, e O canto da cidade: Da matriz afro-baiana à axé music de Daniela Mercury (2021), de Luciano Matos.

Jornalista e crítico musical especializado em Música Popular Brasileira, Lauro Lisboa Garcia é quem organiza a coleção. Ou seja, é quem define sobre qual disco vai ser o livro e quem vai ser o autor. O crítico ratifica a ideia de que a proposta do projeto é valorizar discos antológicos da Música Popular Brasileira e sair do lugar-comum que costuma pautar grande parte da crítica especializada. “Eu acabei de ver essa nova eleição com os melhores discos da música brasileira e isso pra mim é muito relativo, subjetivo”, disse. “Eu acho que sempre fica faltando muita coisa boa, a música daqui é imensa, tem muita coisa maravilhosa em todos os tempos, estilos e regiões nesse país. O que eu propus, com essa coleção, foi também fazer um recorte para não ficar repetindo os mesmos álbuns de sempre.”

Lauro lembra que, de imediato, descartou qualquer possibilidade de Tropicália ou Panis Et Circenses (1968) e Clube da Esquina (1972) fizessem parte da coleção. “São dois discos que já foram muito comentados e eu não via mais nenhuma novidade nisso, então eu procurei fazer uma coisa mais contemporânea e que tivesse repercussão até hoje”, afirmou o jornalista. No primeiro livro da série, Da Lama ao Caos – Quem Som é Esse que Vem de Pernambuco?, o jornalista e crítico José Teles reconstrói a trajetória do álbum que transformou a música brasileira, ao fincar sua “parabólica” de guitarras embaladas nos tambores dos ritmos populares de Pernambuco: Da lama ao caos, de 1994, de Chico Science & Nação Zumbi.

O livro comemorou os 25 anos do seminal álbum do Manguebeat. Para Lauro, a escolha por José Teles como autor foi muito natural. “Eu queria pessoas ligadas à cena ou ao artista do álbum, por isso escolhi o José Teles, porque eu sabia que era um cara que fez parte de toda a movimentação”, explicou. Teles foi durante mais de 30 anos o crítico musical do Jornal do Commercio e é uma testemunha privilegiada e atuante no nascimento do álbum e da cena encabeçada por Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A.

José Teles foi um dos padrinhos do Manguebeat. Desde o nascedouro do movimento, publicou matérias no jornal que impulsionaram a cena e mantinha relação próxima com os líderes do movimento. “Uma manhã, Chico e Fred foram à minha casa me mostrar a primeira fita demo que gravaram. Comentei que Josué de Castro escreveu sobre o bioma mangue no livro Homens e Caranguejos. Fiz um resumo do livro. Chico não conhecia Josué, o que é natural, naquele tempo os livros dele estavam fora de catálogo e ele meio esquecido”, disse. “Anos depois, Gilmar Bola 8 me contou que Chico chegou ao trabalho, entusiasmado com o que escutou sobre o livro de Josué de Castro e tinha começado a escrever a letra de Da Lama ao Caos no fusca de Zero Quatro”, relembrou.


O jornalista e crítico musical Lauro Lisboa Garcia é o organizador da coleção. Imagem: Divulgação

O jornalista foi também autor da primeira matéria de circulação nacional sobre o Manguebeat, intitulada Da lama para a fama – Recife inventa o Manguebeat, que foi publicada em março de 1993 na extinta revista musical Bizz. No livro, Teles entrevista músicos, produtores, empresários, diretores de gravadoras, designers, fotógrafos e jornalistas para recontar a história e os bastidores do disco que recolocou Recife no mapa da cena cultural brasileira dos anos 1990.

O segundo livro da série é, talvez, a escolha mais óbvia da coleção. Em Acabou Chorare – O rock’n’roll encontra a batida de João Gilberto, Márcio Gaspar esmiúça o segundo álbum de estúdio dos Novos Baianos. No livro, o jornalista entrevista músicos e outros artistas que formaram a grande comunidade dos Novos Baianos para dar conta da história do álbum que teve impacto inédito no comportamento do público, ao misturar rock, samba, bossa nova e psicodelia.

O disco, que completa 50 anos neste 2022, marcou a infância do autor que anos mais tarde conviveu com os músicos da banda. “Conheci-os através de um amigo em comum; eu tinha 17 ou 18 anos e eles moravam todos juntos aqui em São Paulo. Eu frequentava essa casa todo dia e eles ficavam o tempo todo tocando ou jogando futebol”, relembrou. Segundo Márcio, a amizade se estreitou e ele se mantém próximo de alguns dos Novos Baianos até hoje, como Paulinho Boca e Dadi Carvalho.

Apesar de reconhecer a importância e o sucesso do disco, Márcio comenta que dentro da discografia do grupo o seu preferido é outro. “Apesar de saber que o disco é superimportante, não acho que é o melhor deles. Pra mim, o que veio logo depois, o Novos Baianos Futebol Clube, é o aperfeiçoamento do Acabou Chorare. São as mesmas ideias mais trabalhadas e melhor realizadas”, opinou.

Assim como Márcio, Kamille Viola chegou a ter uma relação de proximidade com o artista que retratou em seu livro, mas o tempo e a personalidade reservada do cantor impediram um estreitamento maior. Contudo, em África Brasil: Um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver (2020), a jornalista carioca desenvolve um tour de force para destilar a alquimia heterogênea de Jorge, marcada pela simbiose entre as culturas ancestrais afro-brasileiras, teologia medieval, filosofias ocultistas egípcias, devoção ao futebol carioca e ao amor.

“Eu tentei escrever uma biografia de Jorge em uma época que eu conseguia ter algum acesso a ele; só que ele não dizia nem que sim nem que não. Na época, a legislação era diferente de agora, por causa da história da biografia do Roberto Carlos, e as editoras estavam com medo”, recorda Kamille. Projeto negado, a jornalista manteve algum material dessa época de apuração e, com a mudança na legislação, não precisou se preocupar com a autorização do artista.

O livro oferece mais do que promete, extrapolando o antológico disco de 1976 e realizando um perfil biográfico-analítico do artista carioca. O álbum, último da trilogia da alquimia iniciada em 1974, com A Tábua de Esmeralda, e seguida por Solta o Pavão, de 1975, tem alguns marcos. “A partir desse disco, o Jorge não tocou mais violão, e já tentaram fazê-lo voltar muitas vezes, mas nunca conseguiram”, disse. “É uma mudança de sonoridade muito grande, muitos falam do Tábua, porque ele tem toda a temática da alquimia, mas a sonoridade não é muito diferente da que o Jorge já vinha fazendo”, completou.


Capas dos títulos já editados, sobre os discos: Acabou chorare, Da lama ao caos, África Brasil e O canto da cidade. Imagens: Divulgação

Além disso, para Kamille, o África Brasil representa uma ruptura com a linguagem então em voga na música nacional. “Desde o fim dos anos 1960, víamos artistas no Brasil fazerem trabalhos influenciados pela música negra norte-americana, mas ninguém fez um mix unindo sons africanos, ritmos regionais do Brasil com essa black music”, elabora.

De personalidade magnética, mas fechado com relação à sua vida pessoal, um dos artistas brasileiros mais importantes e, talvez, o mais singular do panteão da linha evolutiva da música popular brasileira, tem o mistério como um traço marcante de sua história. Ainda assim, é incrível que uma personalidade da envergadura de Jorge Ben não tenha uma biografia mais ampla e Kamille ajuda a remediar essa terrível situação.

Justiça também é feita a um clássico em O canto da cidade: Da matriz afro-baiana à axé music de Daniela Mercury (2021), de Luciano Matos, que conta a história do segundo álbum da cantora baiana, lançado em 1992. No livro, Luciano volta às origens do que seria absorvido (e aproveitado) pela então nascente axé music: os blocos afro da Bahia.

“Eu sou muito ligado à música produzida na Bahia e com um olhar crítico para algumas coisas, especialmente para a indústria do axé. Lauro viu que, me convidando, era um modo de trazer à tona um disco importante, mas de uma forma sincera”, explica Luciano. Apesar de não considerá-lo o melhor disco da axé-music, para o jornalista, o álbum representa um marco da mudança na indústria e no patamar do ritmo baiano.

“Não acho o melhor disco de axé, mas é um bom disco. É muito importante, interessante a forma como ela pega uma produção com elementos dos blocos afro de uma forma pop e transforma para o consumo das massas”, destaca. A enorme visibilidade alcançada por Daniela serviu para escancarar de vez o que já era realidade na Bahia.

Foi com esse álbum que a axé- music baiana se consolidou como uma realidade nacional, sem que os artistas precisassem sair de lá, como antes acontecera com quase toda a música surgida fora de Rio de Janeiro e São Paulo. “Qualquer música que surge fora do eixo do Sudeste é sempre tratada como regional e a gravadora quando contratou Daniela enxergava assim também, só que tanto ela quanto o pessoal que trabalhou no disco, especialmente Liminha, teve um olhar que transformou o som mais palatável pro público médio”, explicou. Segundo Luciano o disco consegue dar uma linguagem mais universal para o som que era feito na Bahia, daí vem sua importância.


Extra:
Leia o primeiro capítulo do livro Da lama ao caos

Leia o primeiro capítulo do livro África Brasil


O próximo lançamento da coleção é sobre o disco Refazenda (1975) de Gilberto Gil, escrito por Chris Fuscaldo e a previsão é de que ele saía ainda esse ano. Originalmente lançados como e-books, os cinco livros dessa primeira leva estão saindo, paulatinamente, em edições físicas, e, além disso, uma nova leva com 6 livros foi aprovada pela editora e está em fase de planejamento.

YURI EUZÉBIO, jornalista.

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