Dificilmente, a imagem de um grande artista é construída apenas a partir de sua obra. Em casos como o de Pablo Neruda (Chile, 1904-1973), isso fica ainda mais evidente, como mostra o novo livro de Sara Rojo, Um percurso pelas imagens de Neruda no cinema e no teatro (Editora Javali), fruto de seu terceiro pós-doutoramento. Ao longo dos últimos anos, a autora esteve imersa em arquivos da Cinemateca Nacional do Chile e da Fundação Pablo Neruda, bem como em outros acervos, a fim de aventar caminhos que indicassem como a imagem do poeta foi construída tanto por ele quanto por realizadores que se debruçaram sobre o universo nerudiano para formalizarem suas obras.
O que diferencia o livro de outras produções sobre Neruda é justamente não estar focado em sua produção literária, apesar de ser um de seus aportes, mas na imagem que foi projetada ao longo do século XX e início do XXI, seja por cineastas, dramaturgos, diretores de televisão seja pela crítica ou imprensa. Em entrevista à Continente, Sara Rojo afirma que “o foco está na repercussão da construção de um determinado imaginário. Um imaginário que é um símbolo no Chile. Um símbolo questionado, atacado ou amado, mas é um símbolo. Esse símbolo, inclusive, vai estabelecer um diálogo com a tradição literária posterior. Roberto Bolaño, por exemplo, o tempo inteiro está falando de Neruda. Está falando dessa tradição literária para negá-la, mas é reiterativo e essa necessidade de reiterar tem a ver com um peso com o qual você não pode deixar de estar”.
IMAGINÁRIO NACIONAL
O peso de Neruda foi sentido não só na literatura, mas também na vida política do Chile e da América Latina. O poeta, que foi senador da República, chegou a abrir mão de sua candidatura à presidência, com o intuito de apoiar Salvador Allende (que saiu vencedor em 1970, mas que foi deposto em 1973, com o golpe de Estado orquestrado pelo ditador Augusto Pinochet). Os dois estabeleceram uma relação de cumplicidade e parceria política. No ano 1971, após ganhar o Prêmio Nobel de Literatura na Suécia, Neruda foi recebido em sua volta ao Chile por mais de 70 mil pessoas, que se reuniram no Estádio Nacional para ouvi-lo lendo seu discurso, a convite de Allende.
“A memória é um bem que cultivamos em termos pessoais, mas também é uma construção nacional. E Neruda passa pelas duas coisas. No Chile, se você examina bibliotecas, públicas ou privadas, desde as pequenas até as que têm muitos livros, Neruda está nessas estantes. Isso faz, necessariamente, com que ele passe por um campo do pessoal, do íntimo. Por outro lado, Neruda é o Prêmio Nobel do Chile (juntamente com Gabriela Mistral), é embaixador de Salvador Allende, o grande ícone da utopia chilena, e nesse sonho também estava Neruda”, enfatiza a pesquisadora.
Nota-se, dessa forma, como a figura de Neruda foi fundamental na construção de determinados imaginários chilenos, que permitiram ao país transitar por uma série de valores e estruturas. A escolha temática de Rojo evidencia como a construção da Pátria é também uma construção discursiva. “De alguma maneira, essa construção de Pátria passa por uma série de ícones, que têm a ver com geografias, como as que Neruda coloca em suas obras (mar, cordilheira, bosques, cidades etc.); com a construção de personagens que pululam dentro desse território (os indígenas, as mulheres, os trabalhadores, os políticos); e tem a ver também com um sentido de busca por transformações sociais”, pontua a autora.
Pensar em figuras como Neruda nos possibilita entender não apenas o que se passou no Chile, mas também nos dá suporte para pensar em nossas próprias personalidades brasileiras. Conforme nos conta Sara: “Os imaginários nacionais permitem entender o tecido de uma nação. Chico Buarque, por exemplo, é um ícone no Brasil. Todo o debate gerado porque Chico fala que vai deixar de cantar Com açúcar, com afeto mostra a importância dele, porque isso significa um movimento no interior desse tecido. Independentemente de gostarmos ou não da decisão de Chico Buarque, ela gera um sismo, um movimento, e isso é interessante. Com Neruda também acontecia isso. As coisas que ele fazia ou deixava de fazer provocavam esses movimentos. E isso significa que essas pessoas não são invisíveis dentro do traçado da nação”.
Temos, portanto, alguns eixos a partir dos quais podemos pensar em como a arte projeta ícones que, com suas obras e sua posterior recepção, bem como sua presença pública, são capazes de se tornarem emblemas de lutas sociais e representantes de um imaginário nacional – mesmo que esse destaque aconteça a partir do choque entre forças contraditórias, que quase nunca produzem discursos unívocos.
NERUDA NO CINEMA
Quando mostra ser capaz de mesclar sua imagem a um discurso maior, que transcende as edificações de uma persona artística e se confunde com as ideias de um imaginário nacional, Neruda demonstra que a relação entre memória e projeto são inevitáveis. Tal projeto se inicia ainda durante sua juventude, quando abandona seu nome de registro, Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, para dar vida não somente a sua obra poética, mas também à figura de Pablo Neruda (nome artístico escolhido por ele). O escritor demonstrou em várias ocasiões, expostas ao longo do livro de Sara Rojo, suas diversas investidas na construção de uma individualidade singular, que, ao longo dos anos, daria o substrato necessário à criação de uma biografia consistente, que seria replicada por tantos outros artistas e pesquisadores em obras futuras.
Mónica Villarroel Márquez, diretora da Cinemateca Nacional do Chile e supervisora do pós-doutorado de Rojo, nos conta em entrevista que a instituição possui materiais bastante valiosos, com distintas origens. “Alguns deles estiveram na Alemanha, saíram antes do golpe de Estado ou mesmo com o golpe (em 1973) e foram guardados na Alemanha. Já no período democrático, esses materiais voltaram ao Chile, vindos do Arquivo Federal Alemão, junto com outros materiais. Foi um envio bastante importante para a Cinemateca Nacional do Chile, que existe desde 2006.”
A Cinemateca, que abrigou as pesquisas de Sara, tem como missão preservar, conservar e difundir o patrimônio cinematográfico e audiovisual chileno, assim como promover seu conhecimento. O órgão trabalha com restauração, repatriamentos (como nos casos de algumas das obras sobre Neruda), festivais, difusão via streaming, bibliotecas, publicações, acervos de cartazes históricos, dentre diversas outras frentes. Um trabalho, como podemos notar, bem diferente do que tem sido realizado na Cinemateca Brasileira, que teve parte de seu material incendiado em 2021, devido a falta de manutenção e investimentos.
De acordo com Márquez, um dos pontos altos da pesquisa desenvolvida por Rojo foi o de trabalhar com distintos gêneros audiovisuais (imagens históricas, documentários, ficções) e ainda estabelecer uma relação com o teatro. Dessa forma, o discurso artístico nos dá a possibilidade de construir um documento que parte de vários fragmentos da persona nerudiana. Conforme assinala a diretora da Cinemateca: “Já nos anos 1970, Marc Ferro falava do cinema como uma representação da história e como documento histórico. Ou seja, o cinema abre uma possibilidade de ser validado como documento histórico – o que para muitos historiadores ainda não era”.
Para acessar os diversos estilhaços da imagem cinematográfica de Neruda, Rojo constrói seu percurso com os filmes: Ardiente paciencia (1983), de Antonio Skármeta; O carteiro e o poeta (1994), de Michael Radford; Neruda fugitivo (2014), de Manuel Basoalto; Neruda (2016), de Pablo Larraín; Pablo Neruda: Der Dokumentarfilm (2004), de Ebbo Demant; bem como vídeos institucionais produzidos pela Fundação Pablo Neruda; que não possuem assinatura de direção, assim como programas de televisão (séries, entrevistas, reportagens) que têm como mote algum ângulo da trajetória de Neruda.
Cenas dos filmes: Ardiente paciencia, de Antonio Skármeta; O carteiro e o poeta, de Michael Radford; Neruda fugitivo, de Manuel Basoalto; Neruda, de Pablo Larraín. Imagens: Divulgação
Nas palavras de Márquez, o cinema contribui não só para fazer uma representação da personagem, tanto no seu formato de ficção quanto documentário, mas vai além, fazendo uma proposta que constitui, finalmente, um documento da história que nos permite conhecer um de seus personagens mais relevantes do século XX no Chile. “Hoje (Neruda) pode ser bastante criticado, principalmente na sua vida pessoal, (…) mas o cinema, seguindo a proposta de Ferro, também valida a construção de um sujeito histórico, que é um personagem público. Estamos recebendo, através do cinema, a possibilidade de entrar em contato com um personagem que, por um lado, tem uma imagem criativa, admirada, famosa no mundo inteiro, mas, do outro, também tem o lado questionável que hoje, à luz dos novos movimentos feministas, poderia ser bastante criticado.”
Mais do que analisar as imagens (planos óticos) desses filmes, Sara Rojo vai em busca de um conceito mais amplo de imagem, amparada por filósofos contemporâneos que pensam a imagem não só pelo que ela mostra, mas também pela recepção de seu espectador, assim como os meios de produção envolvidos em sua feitura. Assim, a escritora propõe leituras entrecruzadas de diferentes disciplinas, enriquecendo a construção de Nerudas ficcionais, mas também calcadas em documentos factuais do poeta, do ser humano e da figura pública. Tudo isso atravessado por perspectivas que são subjetivas (ela assume isso), mas também sócio-históricas, políticas, que envolvem os contextos de produção, na mesma medida em que tecem diálogos comparativos com os autores desses trabalhos sobre Neruda.
Para Mónica Villarroel Márquez, ao escolher trabalhar a partir de imagens cinematográficas, Sara propõe uma nova leitura sobre o tão conhecido poeta, que entra no imaginário que já temos dele, mas que também o modifica. A autora o faz “trabalhando aspectos menos conhecidos ou que, mesmo já estando dentro da literatura, na hora obra de mirá-los via imagem, cobram uma nova vida”, enfatiza Márquez. À vista disso, esses diferentes momentos da vida dialogam não só com o imaginário coletivo, mas também com a construção de um personagem que adquire novas dimensões a partir do cinema.
Dentre as principais temáticas analisadas pela escritora, destacam-se: o cinema de exílio, visto que não apenas Antonio Skármeta esteve exilado na Alemanha, mas também sua obra fílmica só pôde retornar ao Chile anos depois, bem como outros registros históricos, como a filmagem do sepultamento de Neruda, que é considerado a primeira manifestação pública contra a ditadura de Pinochet; as narrativas documentais criadas sobre a imagem de Neruda, a partir da montagem de imagens prévias produzidas sobre o poeta, o que mostra tanto um jogo entre ficção e realidade, assim como estabelece o documentário como um ponto de vista sobre o real; as diferentes recriações cinematográficas da fuga de Neruda para a Argentina (a cavalo pela Cordilheira dos Andes), a fim de escapar da perseguição aos comunistas no Chile, perpetrada por Gabriel González Videla (ex-presidente); e a figura histórica filmada em diferentes momentos, desde um feito do qual o próprio Neruda participou (grau zero do realismo cinematográfico – o retratado e a câmera), até a posterior ficcionalização desse fato pelos cineastas.
Todos esses momentos evidenciam um cinema que desborda a obra, mostrando tanto o lugar político e de enunciação dos criadores, os recortes espaciais e temporais em cada produção, quanto as diversas reconfigurações do mito nerudiano. E, diante da impossibilidade de apreensão da totalidade do ser humano referencial, temos diante de nossos olhos a criação de distintos simulacros, que oscilam desde mostrar Neruda como uma figura exemplar até uma mais recente profanação de sua imagem (como no personagem escrito por Guillermo Calderón, roteirista de Neruda (2016).
NERUDA NO TEATRO
Outra arte motriz imagética de versões de Pablo Neruda foi a teatral. Apesar de serem menos difundidas que as versões cinematográficas – por razões que variam desde os diferentes montantes de dinheiro investido, até um menor interesse do público leitor por dramaturgias –, as peças teatrais também foram objeto de investigação de Rojo em sua obra. A pesquisadora parte de um olhar transgeracional para o teatro e elege três produções nas quais se detém no quinto e último capítulo de seu livro. São elas: Neruda viene volando (Neruda vem voando, Ictus-Jorge Díaz, 1991); Un ser perfectamente ridículo (Um ser perfeitamente ridículo, Flavia Radrigán, 2004) e La rebelión de la alegría (A rebelião da alegria, Marco Antonio de la Parra, 2004), sendo as duas últimas parte de uma homenagem do Teatro Nacional da Universidade do Chile.
Cena do espetáculo Neruda viene volando (1991), do grupo de teatro Ictus. Imagem: Biblioteca Nacional do Chile/Reprodução
As três obras, apesar de em algum momento se conectarem pela encenação da morte do poeta, se valem de diferentes miradas para abordar esse evento. O grupo de teatro Ictus apresenta diferentes Pablos e é uma espécie de biografia fragmentada e elogiosa do poeta, tendo também como personagens diferentes companheiras de Neruda. Já Flavia Radrigán traz como eixo de sua obra o encontro pós-morte do poeta com Malva Marina (1934-1943), sua filha diagnosticada com hidrocefalia e que, segundo alguns de seus detratores, foi abandonada ou não teve a atenção adequada do poeta. Por fim, o espetáculo de Marco Antonio de la Parra apresenta Neruda em seu leito de morte, tendo as companhias de Vladimir Maiakovski, Federico Garcia Lorca, Stalin, Gabriel González Videla, Luis Emilio Recabarren e um personagem intitulado “o Sul”.
Falando sobre suas escolhas estéticas, a autora pontua que “livros têm como fontes materiais a palavra. No caso do cinema, a fonte material muda e não é mais apenas a palavra. Você tem que pensar na luz, no cenário, nas imagens (com e sem áudio) e em como elas são trabalhadas. E no teatro ocorre algo da mesma ordem, porém partindo da teatralidade”.
Em se tratando da teatralidade, fica evidente que os assuntos abordados pelas peças promovem uma maior liberdade de criação do que os filmes, uma vez que estabelecem uma grande distância seja dos documentários ou dos filmes de argumentos baseados em dados biográficos. A própria escritora relembra Platão, quando esse propõe expulsar os atores de sua cidade ideal, uma vez que são capazes de criar imaginários que rompem de forma significativa com as normas vigentes. Ao mesmo tempo, a discussão proposta pela peça de Radrigán acaba por atualizar temas como os avanços legais do feminismo e o olhar sobre a paternidade que, diferente do promovido por alguns filmes citados, importa cada vez mais ao espectador contemporâneo. Ainda assim, os espaços teatrais analisados por Rojo apontam o campo fora do “real” como uma presença construtora e definitiva para atualizar a imagem de Neruda.
Capa do livro Um percurso pelas imagens de Neruda
no cinema e no teatro, de Sara Rojo. Imagem: Reprodução
Ao pensar nesses diferentes trânsitos históricos e estéticos, Rojo relata: “Neruda, em minha adolescência, foi isso: um símbolo que nos permitia construir um movimento de resistência que se levantava contra o autoritarismo da ditadura. E antes, durante a democracia, era um imaginário que permitia avançar em políticas que possibilitaram um ‘se dar as mãos’, permitiam associações entre formas e setores diferentes. Hoje é um imaginário que permite criticar certos comportamentos e certas estruturas que entendemos como machistas, mas que na época não necessariamente eram vistas dessa forma. É interessante perceber como as mulheres se revoltam com esse imaginário um tanto heroico e no qual a mulher tem o lugar da musa, não o lugar de quem faz”.
Na peça de Marco Antonio de la Parra, Maiakovski diz a Neruda que a “poesia é o riso dos homens livres”. No filme Neruda (2016), em determinada cena, uma militante comunista, que limpou banheiros desde pequena, pergunta a Neruda se quando todos forem iguais serão como ela ou como ele – e o poeta responde que como ele. Conforme postula o filósofo Georges Didi-Huberman, não há imagem sem imaginação. A imaginação produz imagens e elas tocam o real. No caso dessas obras, produzindo debates políticos, filosóficos e artísticos. Contribuindo com a imagem do mito, não simplesmente a partir de uma apologia, mas com um olhar mais amplo e dialético.
Mesmo entendendo que os ecos de Neruda no Brasil são muito menores do que no Chile e nos outros países hispano-americanos, Sara Rojo percebe que há um grupo geracional (que viveu o período ditatorial ou foi contemporâneo de Neruda) mais ligado a sua literatura e a sua personalidade política. Para a autora, seu livro também pode servir de fonte para refletir sobre nossos imaginários e alguns ícones fundamentais para entender o que o Brasil é, “bem como para curar feridas por meio do debate sobre essas próprias feridas”, finaliza.
Tal pesquisa enriquece as leituras sobre Neruda e também dos realizadores cinematográficos e teatrais que se debruçam sob a figura do artista. Evidencia-se também como nossas construções mnemônicas são segmentadas, descontinuadas e oscilam de acordo com os períodos históricos. A arte pode não ser capaz de evitar um golpe de Estado ou mesmo de afastar a morte e a repressão do horizonte cotidiano, mas, às vezes, pode seguir resistindo quando retoma a imagem de pessoas que sobreviveram às adversidades em outros tempos.
FELIPE CORDEIRO, ator e doutorando em Letras pela UFMG.