Estêvão Parreiras nasceu no ano 1993, na cidade mineira de Pouso Alegre, mas vive e trabalha em Goiânia, tendo se tornado artista, também, a partir das marcas que esses lugares lhe deixaram. A relação com o ambiente a sua volta, o aspecto afetivo e a delicadeza do fazer são os eixos do seu trabalho. Nas palavras do artista: “O que me interessa, o que alimenta a minha pesquisa, são as questões ligadas à intimidade e ao afeto, à religiosidade popular. O desenho é uma forma de agradecer e confessar e é também um retorno aos lugares afetivos. O trabalho se estabelece, para mim, com uma marca forte da religiosidade que atravessou a minha vida e o desenho tem, hoje, a função de oração”.
A deriva e a ancoragem da sua pesquisa é o desenho. Suas reflexões abrangem a dimensão do suporte: o papel como espaço aberto para a construção do mundo, lugar de invenção e composição das novas formas, assim como as linguagens plásticas e poéticas do desenho. Além disso, experimenta diversos materiais com predominância de obras mistas sobre papel.
Adentrar a sua obra é consentir com um convite ao salto no abismo. As questões da subjetividade estão no centro do processo e a vertigem do desenho pode conter a lembrança de uma paisagem, o trecho de um livro, a presença de uma música – coisas que eclodem no gesto artístico. Seu traço, tão exato quanto vertiginoso, porta a ambiguidade do fluxo do jogo da vida. Sua relação com o desenho é estruturante e a sua obra se concentra – de forma múltipla, plural, nômade e delirante – na observação dos ritmos diversos que vibram e ecoam em tudo.
A escolha do desenho como matéria de invenção e centro de seus gestos mapeia, esteticamente, os lugares de onde o artista pode advir, e é uma apresentação do corpo através da escrita. Para Estêvão, desenhar é uma forma de escrever. No corpo, na escrita e no entrelaçamento de ambos há desvios, mergulhos, perigos, inquietações: fragmentos e minúcias de um gesto que se encontra em constante deslocamento, abrigando o tremor das coisas e capturando o absurdo, o sagrado e o imponderável da existência.
Alicerces…, grafite, pastel seco, tinta óleo sobre papel, 125 x 150 cm, 2020. Imagem: Paulo Rezende/Divulgação
Sem título, grafite, pastel seco, tinta óleo sobre papel, 20 x 20 cm, 2020. Imagem: Paulo Rezende/Divulgação
Estêvão Parreiras persegue, corajosamente, o desencaixe dos objetos e suporta essa espécie de não equivalência ao olhar para tudo com a capacidade infinita do espanto, do assombro ou do alumbramento, como as flores sobre a mesa na exposição de Georges Braque, observada por Alberto Giacometti: “Uma cesta de frutas na cozinha é o suficiente para causar uma certa aflição em quem a observa com acuidade”. Todos os objetos, que seguem segundo a sua forma, podem ser apresentados como esse locus que guarda o corpo e oferece ao outro a estranheza. As palavras nunca entram no trabalho para ilustrar a imagem, mas como indagação, como possibilidades de questionamento e ambiguidade.
Os escritos e as listas são o ponto germinal do seu gesto enquanto escrita, do ritmo existente no desenho que o impulsiona para a vida, fazendo da fragilidade potência, deflagrando absurdos e trazendo para a arte o campo da subjetividade. De seus cadernos, a vida se desdobra em uma sucessão de eventos. Anotações diversas são o fio por onde ele caminha, captando em andanças o imperceptível revelado a cada instante. Desde a infância, os cadernos de desenhos são o espaço no qual ele esboça um mundo.
Os desenhos ora tocam a angústia, ora o entusiasmo e o maravilhamento, sempre fazendo eclodir uma fina ironia ante o perigo de desaparição. Vida e arte se enodam, como parte do salto no abismo: uma espiral vertiginosa que pulsa em cada obra. Nas minúcias se escondem rachaduras nada óbvias, capazes de capturar o eco – ressonância da matéria dos sonhos, que remontam à origem do fantástico das narrativas dos mitos, épicos e cosmogonias ligados ao campo do lirismo popular ou religioso.
Nos traços e aparições há algo sobrenatural. Da presença súbita do extraordinário partem linhas de ranhuras que compõem o enredo como em Coração de fogo, braços de aço ou em Recuperação. O ponto fulcral que parece sustentar a obra de Estêvão Parreiras é a relação com o estranho-familiar, o duplo que traz para a cena uma inquietante estranheza, uma dimensão fantasmagórica que dialoga com a ironia colhida à beira do abismo. Seu trabalho transita por referências populares, narrativas de júbilo ou sofrimento oriundas do universo religioso e encontra uma possibilidade de deriva pelo humor.
As marcas da infância mineira, da juventude em Goiás, as festas populares e celebrações religiosas trazem o pulsar de uma relação singular com a espiritualidade e cria uma topografia própria, ora mais limpa em branco e preto, ora em um labirinto entre o amarelo intenso dos dias e outras cores que se desdobram em muitas nuances. Árvores, montanhas, garras, mãos, cabeças e fragmentos criam uma espécie de escrita que conjuga epifania e autoderrisão.
Sem título, aquarela, caneta marcadora, lápis de cor, pastel seco e oleoso, tinta acrílica e guache sobre papel, 50 x 42 cm, 2021. Imagem: Paulo Rezende/Divulgação
O desenho é, assim, a maneira pela qual Estêvão habita seu próprio corpo e o mundo. O desenho é também um objeto extraído do corpo e feito a partir daquilo que agride, arranha o papel e a sua presença no mundo. Na construção de fábulas do olhar, o artista abriga elementos heteróclitos: ex-votos, sambaquis, um vitral de cabeças, altares para uma mística forjada a partir de uma iconografia religiosa e profana em que o corpo se encontra sempre fronteiriço, encarnado em desenhos como um espaço-entre – entre a natureza e a cultura – ou, mais ainda, sem marcos totalizadores e maniqueístas dos espaços, como um corpo que pode se ficcionalizar e se abrir para a estranheza perpétua do entorno. É o que se vê em Fogo dentro, alimentado com trabalho e O movimento das baleias, obras em que as paisagens surgem estrangeiras e como emissárias de outro mundo, paradoxalmente, impregnadas de uma realidade ambígua.
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Seus trabalhos são pequenas reconstruções do mundo. Veias e artérias – rios de sangue que podem sair de bocas – e a grafia de mapas internos e externos são o reconhecimento das marcas do corpo que se perfaz no mapeamento de galhos, vulcões em erupção, troncos, mãos e raízes. Se, por um lado, a força narrativa é uma presença constante, por outro, é possível encontrar silêncios capazes de criar crateras onde tudo é linha reta. A mistura de texturas e cores entre diversos materiais provoca uma espécie de embate estético que cria camadas e reações – aquarela, lápis de cor, pastel oleoso, giz de cera – fazendo brotar imagens coloridas ou cenas limpas e sem cor.
Sem título, aquarela, pastel seco, pastel oleoso, lápis de cor,
tinta guache sobre papel, 96 x 66 cm, 2021.
Imagem: Paulo Rezende/Divulgação
Em O estranho, Freud destaca algo que se revela “estranhamente familiar” e, portanto, desconcertante e assustador. Há, pois, um paradoxo sustentado pelo artista que enfrenta, pelo desenho, o sacrifício, êxtase e beleza, ao mesmo tempo em que reconhece, pelo seu trabalho, aquilo que Wislawa Szymborska sintetiza num belíssimo poema: “O abismo não nos divide. O abismo nos cerca”.
Seu gesto se ancora numa tentativa de fuga às margens da representação, encontrando ritmo em plena queda. Em um desenho, um menino pode olhar atento para um ovo de cobra prestes a nascer. Em outro, o artista vaticina que “cada desenho é um santuário”, abrigando a força criativa e a potência do delírio na nascente. De seus cadernos brotam linhas, espaços vazios, anotações, desenhos esparsos, diálogos que criam ficções e derivações. Da visceralidade à delicadeza surge um corpo fantástico. A palavra cria mais uma camada que não acontece pela via do significado, mas pelo enigma. A dimensão do acontecimento surge justamente nas entranhas do inconsciente e, por isso, fascina, encanta e causa certa perplexidade. A força pulsional da sua obra, a capacidade de lidar com os tormentos e agonias íntimas é herdeira, também, da sustentação fina de uma dimensão biográfica na arte.
John Berger assinala que o desenho, ao mesmo tempo em que registra o atrito do corpo sobre a superfície, marca um percurso onde a linha é o limite, mas pode borrar-se. No texto Drawn to that moment, o escritor e crítico de arte aborda o desenho não mais como um campo deserto de memórias – ora ponto de chegada, ora ponto de partida – mas, sim, como um campo habitado que questiona a aparência de um acontecimento. No poder mágico e rítmico do traçado capaz de unir palavras e imagens, brotam pequenos poemas que são proteção, contorno, bem como instrumentos de corte de sentidos prontos: defesa e também arranhadura sobre a mesma carne.
Esse “campo habitado”, evocado por John Berger, é também afirmado pelo artista: “O gesto entra como uma ação, um rastro. Esse rastro é carregado do meu estado subjetivo, das questões que me interrogam. Isso afeta como vou rabiscar o papel, como o gesto vai se dar. Eu estava, por exemplo, fazendo um desenho bem pequeno em cadernos e tinha muita vontade de criar em grandes formatos, tinha vontade de fazer coisas gestuais à la Cy Twombly. Até tentei, mas não consegui bons resultados e não fiquei satisfeito. Meu trabalho começou a ficar legal no grande formato, quando eu atacava o papel na maneira que fazia no caderno, num gesto do tamanho do caderno, linha em cima de linha, sem esticar o braço”.
Recuperação, aquarela, grafite, pastel oleoso, pastel seco, tinta óleo
sobre papel, 150 x 125 cm, 2020.
Imagem: Paulo Rezende/Divulgação
Os traços, os gestos ou as cores são tentativas de subverter as cargas e os valores semânticos impregnados na linguagem, abrindo lacunas entre uma coisa e outra para dar espaço ao enigma da palavra através do desenho. Estamos, aqui, diante de um artista que parece estar permanentemente testando a si mesmo e as suas possibilidades plásticas, simbólicas, metafóricas e poéticas. Para Estêvão Parreiras, o ato de desenhar promove rachaduras e dobraduras em que a vida e a obra se confundem e se justapõem: um movimento de transbordamento em que a fuga à elaboração de sentidos é, então, uma experimentação vertiginosa do próprio corpo, nas obras que abrigam uma dimensão biográfica que passa pela retratação do corpo e pelo assombro que deriva daí.
BIANCA DIAS, psicanalista e crítica de arte.