Artigo

Qual a régua para medir os afetos dos fãs?

Nos últimos tempos, os 'fandoms' têm conquistado uma maior legitimidade, mas ainda é frequente a ridicularização dessas audiências engajadas e de suas atividades

TEXTO Cecília Almeida

01 de Abril de 2022

Fãs brasileiros aguardam show do BTS no país, em 2019

Fãs brasileiros aguardam show do BTS no país, em 2019

Foto Aloisio Mauricio/Fotoarena

[conteúdo na íntegra | ed. 256 | abril de 2022]

Assine a Continente

O ano era 2020. Um novo vírus começava a fazer suas milhares de vítimas ao redor do mundo e espalhar-se numa proporção assustadora, forçando a população a deixar o espaço público e passar o maior tempo possível no ambiente doméstico. Privada dos encontros do “mundo real”, em meio ao pânico, às incertezas e ameaças da realidade, a ficção foi um escape que me proporcionou doses necessárias de conforto. Já o encontro – virtual – com outras pessoas que também haviam se identificado e se conectado emocionalmente com o mesmo universo imaginário permitiu a criação de vínculos que me ajudaram a preservar a saúde mental num momento de sofrimento psíquico intenso. O prazer de ser fã, de compartilhar uma paixão com uma comunidade de fãs e de me sentir parte dela, potencializou o meu afeto. Dessa potência resultaram reflexões e interpretações que me permitiram explorar inúmeros aspectos da minha própria subjetividade.

Trago essa lembrança recente não porque pretendo descrever em detalhes a minha experiência com um fandom ou outro em particular, mas porque ela torna visível algo que considero emblemático das subculturas de fãs: essa interface entre consumo pessoal e coletivo, entre identidades e comunidades, que se faz visível de formas cada vez mais diversificadas nos ambientes digitais. Também convoco o episódio porque ele fez surgir inquietações que me levaram, de um modo ou de outro, a me (re)aproximar dos estudos de fãs e a ressignificar práticas que eu mesma havia julgado preconceituosamente no passado.

É que, quando se fala em fãs, de imediato, algumas noções costumam vir à nossa mente, por já estarem bem consolidadas no imaginário social. Fãs são as multidões “ridículas”, “histéricas”, “sem senso crítico”, “massa útil”, “manipuláveis”, capazes de cometer as maiores insanidades pelo objeto de sua afeição. A própria origem da palavra carrega essa associação, conforme explica o autor estadunidense Henry Jenkins – o termo em latim fanaticus literalmente significava pertencente ao templo, servo ou devoto, e a palavra tomou uma conotação negativa, de pessoas inspiradas por ritos orgiásticos ou frenesis. Com o passar do tempo deixou de referir-se apenas à crença religiosa e passou a ser usada para remeter a qualquer manifestação de um entusiasmo excessivo, insensato, irracional.

Tais representações que associam fãs a patologias mentais têm diminuído, é verdade, na medida em que ser fã torna-se um modo de consumo mais comum na sociedade contemporânea – cada vez mais pessoas identificam-se como fãs de alguma coisa, ainda que não participem ativamente de uma comunidade ou se dediquem a práticas criativas como a escrita de fanfictions, a edição de fanvideos ou a produção de fanarts. Ao mesmo tempo, também acompanhamos um movimento de aproximação das indústrias criativas em relação aos seus fãs, por serem eles, além de consumidores apaixonados de seus produtos, possíveis multiplicadores de seus conteúdos nas plataformas de redes sociais digitais. Com o intuito de explorar o seu potencial criativo e de disseminação, culturas de fãs são desejadas e cultivadas por produtores de mídia de todo o mundo – ao menos enquanto as atividades desses grupos não destoem dos princípios de troca capitalista e enquanto eles continuarem a reconhecer tais empresas como as reais proprietárias daquelas obras, como bem salientam os pesquisadores Jonathan Gray, Cornell Sandvoss e C. Lee Harrington.

ESTEREÓTIPOS
No entanto, por mais que fandoms tenham conquistado certa legitimidade, ainda se percebe uma ridicularização dessas audiências engajadas e de suas atividades. No jargão da internet, por exemplo, o termo fanfic passou a ser utilizado para designar uma história absurda ou extremamente malcontada, enquanto fanboy e fangirl são expressões quase sempre depreciativas para se referir ao afeto excessivo de alguém por um produto, pessoa ou empresa. O habitual rechaço a esse “afeto excessivo” relaciona-se a uma compreensão binária de razão e emoção, como se uma fosse o negativo da outra, como se a primeira tivesse de dominar a segunda para o sujeito produzir comportamentos socialmente aceitáveis.

Por vezes, esse pré-julgamento tende a ser mais cruel com o afeto de determinados grupos. De modo geral, a sociedade não costuma tratar a paixão por um time de futebol da mesma forma com que julga o amor por um cantor de música pop ou sertaneja, por exemplo. Algumas ritualidades comuns às culturas de fãs – colecionismo, vestir-se com roupas específicas, pintar ou tatuar partes do corpo, expressar alegria pelo grito de palavras de ordem ou passos de dança previamente combinados – são autorizadas em determinados contextos, enquanto em outros são consideradas estranhas e inadequadas.


Fãs do BTS lotaram o estádio olímpico de Seul no tour Love yourself, em 2019. 
Foto: Reprodução

O que faz a paixão por um objeto midiático ser validada e a outra ser alvo de zombaria? Que régua mede o que é “afeto excessivo”? A valoração cultural não existe dissociada de um conjunto de localizações sociais e de relações de poder. Aspectos como gênero, sexualidade, raça, classe, geração, entre vários outros, atravessam esses julgamentos. Não à toa, ritmos musicais consumidos em territórios periféricos são tratados como “inferiores”; as preferências de garotos franzinos e que contrariam padrões hegemônicos de masculinidade são tachadas de “esquisitas”; enquanto a pecha de “histéricas” recai principalmente sobre fandoms majoritariamente populados por meninas adolescentes. Os estereótipos ao redor de determinadas culturas e comportamentos de fãs dizem muito sobre o lugar ocupado por diferentes grupos sociais nos circuitos de poder.

Como toda operação de estereotipificação, essas preconcepções costumam ser exageradamente reducionistas, e, mesmo que contem com uma parte da verdade, não dão conta da complexidade do fenômeno.

Quando recentemente me aproximei de fandoms e passei a ter contato mais próximo com as suas atividades, precisei rever uma série de equívocos que eu havia construído sobre aqueles ambientes antes mesmo de conhecê-los. Por exemplo, não esperava encontrar um grande número de pessoas da minha idade. Aliás, não esperava encontrar públicos tão heterogêneos: adolescentes, pais e mães, profissionais e pesquisadores de inúmeras áreas de conhecimento, artistas amadores, escritores que encontram nas fanfics uma forma de relaxar no seu tempo livre, pessoas de todos os continentes, de muito mais gêneros e faixas etárias que eu poderia ter imaginado.

Surpreendeu-me a diversidade de conteúdos produzidos, nos mais variados gêneros, qualidades, estilos e formatos; as tantas maneiras de se apropriar e de reimaginar criticamente um universo pré-existente, muitas vezes acrescentando camadas de significados que o material-fonte jamais ofereceu. Também continua a surpreender-me a minha própria disposição em me engajar em conversas intermináveis discutindo o mais ínfimo dos detalhes, e o prazer libertador de perder um pouco do medo de se sentir ridículo aos olhos dos outros.

Também é um equívoco pensar as subculturas de fãs como espaços meramente celebratórios ou de “adoração submissa”. Fandoms podem até ser movidos por um afeto excessivo, seja lá o que isso queira dizer, mas isso não é sinônimo de submissão ou ausência de razão. Algumas das atividades mais tradicionais dessas comunidades envolvem a curadoria, o processamento e a interpretação de grandes quantidades de informação, dependendo de uma leitura crítica sobre o objeto midiático de seu interesse.

Fãs são profundos conhecedores de seus ídolos e seus feitos, e, por isso, também podem ser seus apreciadores mais exigentes. São audiências especializadas, capazes de enxergar referências, estabelecer relações e perceber inconsistências que um consumidor tradicional provavelmente não assimilaria. Alguns aficionados têm prazer em mostrar que são verdadeiras enciclopédias ambulantes, mas não se trata somente de coletar e acumular conhecimento. Trata-se mais de interpretar o objeto, dar-lhe sentido, partindo de uma conexão emocional individual para produzir significados pessoais e comunitários.

Também se trata de processar esses sentidos coletivamente, de estar conectado a uma comunidade imaginária e imaginada. Com a popularização do acesso à internet, isso possibilita a construção de vínculos afetivos imprevisíveis, e de espaços em que sujeitos sentem-se minimamente confortáveis em compartilhar suas impressões. Mesmo fãs que não têm o hábito de interagir ou tornar públicas suas interpretações, optando por manter suas práticas de consumo individualizadas, frequentam essas redes em busca de informação e de conteúdos transformativos como memes, ilustrações ou fancams. O contínuo esforço dessas comunidades ajuda a manter vivo o significado de objetos culturais mesmo décadas ou séculos depois de sua criação.

ATIVISMO DE FÃS”
Essas comunidades também costumam apresentar grande capacidade de coordenação e organização coletiva, e, quanto mais numerosas, mais visíveis as suas demonstrações de força. Motivados pelas suas paixões, fandoms conquistam muitas coisas juntas – fazem hashtags chegar aos assuntos mais comentados do Twitter, ajudam seus ídolos a quebrar recordes e também apoiam causas que, a princípio, não teriam relação direta com o objeto midiático adorado. Muitas dessas práticas cotidianas de subculturas de fãs assemelham-se ao exercício da cidadania e da política e, em alguns casos, essa relação torna-se ainda mais explícita. O chamado “ativismo de fã” já teve visibilidade em diversas oportunidades de levantes sociais, como a “Brigada Otaku antifascista”, criada por fãs de animes japoneses e atuante durante a onda de protestos civis no Chile, em 2019; ou o recorrente uso de símbolos da cultura pop em passeatas pelos direitos das mulheres.

Fandoms transnacionais de música pop sul-coreana, por exemplo, têm o hábito de usar seu poder de articulação para apoiar causas progressistas e dar demonstrações de desobediência civil. Em 2020, fãs do septeto musical BTS arrecadaram mais de U$1 milhão para o #BlackLivesMatter, movimento ativista internacional, com origem na comunidade afro-americana, que faz campanha contra a violência direcionada às pessoas negras.

No mesmo ano, o fandom do grupo de K-Pop também se mobilizou para sobrecarregar e derrubar os sistemas de um aplicativo do Departamento de Polícia de Dallas, criado para receber denúncias de “atividades ilegais em protestos civis”. Também foram eles que assumiram o crédito pelo “trote” aplicado durante a campanha de reeleição do ex-presidente estadunidense Donald Trump, quando reservaram uma grande quantidade de ingressos para um comício em Tulsa sem nenhuma intenção de utilizá-los, ajudando a deixar um auditório para 19 mil pessoas parcialmente esvaziado.

Apesar desses exemplos inusitados, não se pode dizer que fandoms sejam espaços de uníssono, nem que a negociação coletiva de significados ocorre de modo pacífico. Pelo contrário, quem convive com fãs sabe muito bem o quanto esses podem ser ambientes de disputa. Tão numerosas quanto os membros de um fandom são as opiniões que emergem sobre os variados aspectos relacionados a ele. O manejo da diferença e da discordância em comunidades de fãs revela tensões sociais subjacentes a esses grupos, incorrendo em conflitos – que podem ser entre fãs de um mesmo fandom, entre fãs de fandoms diferentes e inclusive entre fãs e seus ídolos.

Esses últimos deixam mais claro que culturas de fãs não são espaço de aceitação incondicional do que lhes é oferecido pelas indústrias. Não me refiro somente aos lamentos de shippers chateados porque seu casal favorito da novela foi separado, à revolta de espectadores pelo cancelamento de uma série ou à indignação dos admiradores do escritor George R.R. Martin porque o final da série Game of Thrones, produzida pela HBO, não os agradou – e nem a ninguém, ao que parece. Para além das opiniões controversas e disputas interpretativas de todos os dias, confrontos entre fãs e produtores por vezes extrapolam o objeto do fandom, esbarrando em dimensões éticas, sociais e políticas envolvidas nas suas relações de consumo.

Um outro exemplo. Nos últimos anos, alguns dos fãs mais fervorosos da saga Harry Potter tornaram-se também os seus críticos mais ferrenhos, após as sucessivas atitudes transfóbicas por parte da romancista britânica J.K. Rowling, criadora do idolatrado – e ainda extremamente lucrativo – personagem. Em mais de uma ocasião, Rowling foi ao Twitter para reforçar discursos que reivindicam direitos para as mulheres, mas que definem gênero por critérios essencialmente biológicos, ou seja, a partir do sexo atribuído ao sujeito no momento em que nasceu. Em 2019, a escritora saiu em defesa de uma pesquisadora demitida após se manifestar contra uma lei britânica a favor da flexibilização de cirurgia de redesignação sexual. No ano seguinte, lançou um livro sobre um assassino em série que se disfarça de mulher para poder matar outras mulheres, usando como pseudônimo o nome de um psiquiatra conhecido por realizar procedimentos de reorientação sexual para assinar a obra. Embora negue as acusações de transfobia, a autora continua a utilizar seus perfis nas redes sociais para propagar ideias que invalidam as identidades de pessoas transgênero – não consideram mulheres trans como mulheres, nem homens trans como homens.

A repercussão nas diversas redes de amantes de Harry Potter foi enorme, com cada episódio provocando um novo efeito cascata de opiniões divididas. Ainda que recebesse críticas pelo tratamento dado a pessoas negras e de origem asiática, a saga conquistou a simpatia de grupos minoritários por discutir temas como abuso, discriminação social e bullying. Os Potterheads são um fandom que, ao longo de 20 anos, usou sua popularidade em prol de causas de justiça social, sendo responsável pela criação da associação sem fins lucrativos Harry Potter Alliance, que organiza campanhas em torno de temas como os direitos da comunidade LGBTQIA+, sexismo, saúde mental, imagem corporal, entre outros.

Com isso, não é difícil entender de onde veio a forte reação contra os posicionamentos de Rowling. Ofendidos, fãs que se identificam como transgênero e aliados da comunidade LGBTQIA+ se mobilizaram para expressar seu repúdio àquela que criou o universo que os reuniu. Entre protestos organizados nas redes sociais e promessas de boicote às obras da autora, as discussões do fandom problematizam os limites entre autor e obra, leitura e escrita, consumo e relações identitárias, e por aí vai. Houve quem minimizou as declarações de Rowling, houve quem abandonou o fandom, houve quem tentou esquecer que a escritora existe e houve uma série de posições intermediárias – como, por exemplo, interagir apenas com conteúdos produzidos por fãs ou acessar os produtos da saga exclusivamente por meios clandestinos.


Fãs de Harry Potter aguardam o elenco do filme Harry Potter e a ordem do fênix, durante première americana em 2007. Foto: Gabriel Bouys/AFP

Não posso afirmar que as ações organizadas por aqueles fãs-ativistas geraram qualquer prejuízo econômico à franquia Harry Potter ou ao patrimônio de J.K Rowling – afinal, seus produtos continuam arrecadando algumas centenas de milhares de dólares todos os anos. Mas houve consequência do ponto de vista simbólico, e, quando se trata de uma marca do tamanho e da longevidade de Harry Potter, isso importa. Recentes campanhas de lançamento de jogos ou filmes derivados do universo da saga têm feito um verdadeiro malabarismo para desvincular-se da imagem da sua criadora. De volta a Hogwarts, o especial de comemoração de 20 anos da saga produzido pela Warner Bros. e lançado em 2022, já não contou com a presença de Rowling: a sua participação no filme aconteceu apenas por imagens de uma entrevista gravada em 2019. Do lado dos fãs, a supracitada Harry Potter Alliance passou a se chamar Fandom Foward em 2021 – seus mantenedores afirmaram que os posicionamentos da escritora não foram a razão principal por trás da mudança, mas admitiram que o contexto influenciou a decisão.

Há muito o que se discutir aí sobre os movimentos das indústrias culturais em relação às atividades dos seus fãs, mas o fato é que os significados da saga Harry Potter já não são mais os mesmos. Considero relevante que essa disputa de narrativas esteja ocorrendo ao redor de um dos maiores fenômenos mercadológicos da história recente da cultura popular ocidental, um dos primeiros fandoms que me vinha à cabeça quando o assunto era “amor incondicional”.

A reação de pessoas trans que se sentiram traídas pelas atitudes da romancista nos fala das subjetividades construídas ao redor de objetos simbólicos. A experiência de fãs que ainda amam Harry Potter, embora estejam em profundo desacordo com as ideias de sua criadora, nos diz algo sobre os afetos que se atravessam no contexto dessas relações. Relações complexas e potencialmente contraditórias, relações que transformam noções preconcebidas de audiência e autoria, de resistência e assimilação. Relações que estão constantemente sujeitas a renegociações de sentidos e mudanças de referencial, mas que não são desprovidas de crítica.

Retomo o que comentei no início, sobre o consumo de fãs ser capaz de mover sujeitos entre relações pessoais e comunitárias, entre o particular e o público, entre o íntimo e o político. Fandoms são espaços de adoração, sim, mas também bem mais do que isso. Cada um à sua maneira, dizem-nos muito sobre a forma como indivíduos se organizam em coletividades e manejam as suas tensões. Estão sujeitos a excessos e conflitos, mas, ao mesmo tempo, nos oferecem um ambiente que, por intermédio desses “afetos excessivos”, nos coloca em contato com uma diversidade de aspectos nossos – que, de tão nossos, às vezes até parecem ridículos. E tudo bem.

CECÍLIA ALMEIDA, jornalista, professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), coordenadora do grupo Obitel-UFPE e integrante do Observatório de Mídia na mesma instituição.

veja também

“Meu interesse é me comunicar”

O ataque do pós-negacionismo [parte 1]

Trema! 2022