Perfil

Newton Moreno: teatro como uma palavra plural

Dramaturgo com larga presença na cena teatral nacional celebra 30 anos dedicados aos palcos

TEXTO Cleodon Coelho

01 de Abril de 2022

Foto Will Sampaio/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 256 | abril de 2022]

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Há tempos
, o dramaturgo Newton Moreno habituou-se a ver seus textos encenados em espaços nobres Brasil afora. Mas pouca gente imagina que o primeiro palco em que pisou, como ator, autor, diretor e tudo mais que envolve o fazer teatral, ficava em um armazém de Limoeiro, cidade do agreste pernambucano, onde sua avó materna Benedita, a Nitinha, vendia os produtos que cultivava em seu sítio. Hoje acostumado a ver Marieta Severo, Andréa Beltrão e Lília Cabral dando vida às personagens que cria, ele teve como integrantes de sua primeira “companhia” a irmã Veruska e os primos Paulo, Regina e Cláudia. De casamento matuto a autos natalinos, passando por números de dublagens de Gal Costa e do Trio Nordestino, cabia tudo no universo do menino Newton. “Minha avó me deu asas. Olhava tudo o que a gente fazia naquele armazém com admiração e fascínio. E minha mãe, Valdeilda, sempre me incentivou a criar. A carteirinha de fã número um é dela”, comenta ele. 

Entre as brincadeiras da sua infância e os 30 anos dedicados exclusivamente aos palcos, completados neste 2022, ele bem que tentou ter uma vida “certinha”. Formou-se em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco e, convencido a se especializar na área de Turismo, descolou um estágio no Hotel Transamérica de São Paulo, na Avenida das Nações Unidas, em plena área industrial do Bairro de Santo Amaro. O período de experiência se transformou em emprego fixo, com benefícios e carteira assinada, como manda o figurino... O problema é que, em pouco tempo, esse figurino de rapaz do setor hoteleiro não lhe cabia mais. Foi quando o teatro mandou lhe chamar. “Larguei tudo para prestar vestibular para Artes Cênicas na Unicamp”, conta. “Encontrei meu ofício e minha nova trupe.”

De 1992, ano dessa mudança de rumo, até hoje, seu currículo revela sua potência criativa. Como dramaturgo, ele soma 25 textos encenados. Só pelo espetáculo Agreste, ganhou os prêmios Shell e APCA (da Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor autor de 2004. Como diretor, foram sete montagens sob sua batuta. E há o lado ator, atualmente sem protagonismo, que também rendeu momentos marcantes.E, do ponto de vista acadêmico, além da graduação na área, é mestre e doutor em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo.

O amor pela escrita começou nas carteiras do Colégio Salesiano, no Bairro da Boa Vista, através de concursos de redação. Newton, aliás, participava de toda e qualquer atividade ligada às artes. Mas também gostava de esportes e chegou a jogar vôlei no Sport Club do Recife. “Renan Dal Zotto teria hoje um grande levantador na seleção”, brinca. Mas foram as passagens por Limoeiro que realmente marcaram sua vida. “Era uma festa constante. O contato com as quermesses, circos, festa de padroeiro, sem falar nas figuras mágicas da cidade, tudo me encantava”, relembra. Essas vivências estão claramente presentes em suas obras, a exemplo de As centenárias, sobre duas carpideiras (mulheres que choravam “profissionalmente” em velórios alheios), e Maria do Caritó, história de uma solteirona prometida pelo pai a um santo, que é transformada em uma espécie de santa milagreira pelos fiéis de sua cidadezinha.

Protagonista de Maria do Caritó, Lília Cabral se aproximou de Newton através de um amigo em comum, o também ator Fernando Neves. “Ele sempre me dizia que a gente precisava se conhecer. Eu já tinha visto uns dois espetáculos dele, mas nunca havíamos nos cruzado. Quando finalmente nos encontramos, durante uma premiação, foi amor à primeira vista”, rememora a atriz. “Começamos a pensar numa parceria, mas eu não tinha ideia do que ele poderia me propor. Até que um dia ele me mandou esse texto, feito a partir das nossas conversas. Eu me encantei logo de cara com aquela mulher. Era um porta-joias cheio de riqueza. Estava tudo ali.” A peça estreou em 2012, mas a história ganhou nova vida sete anos depois, quando foi transportada para as telas, com a mesma Lília no papel-título. “O cinema deixou as palavras dele mais bonitas ainda porque trouxe a imagem junto. O filme possibilitou que mais gente conhecesse a poesia e a grandeza do trabalho do Newton, um autor que faz a gente sonhar”, elogia a atriz.


Ópera foi o único espetáculo de Newton Moreno encenado no Recife, sua cidade natal.
Imagem: Divulgação

E por mais que gostasse de sonhar “desde sempre”, ele próprio não imaginava que aquele texto criado para o palco pudesse ganhar as telonas de todo o Brasil e fosse exibido até mesmo na Sessão da Tarde, a tradicional faixa vespertina da TV Globo. “Como roteirista, eu tive que aprender a recontar a história, usando as ferramentas do cinema”, entrega Newton. “Ao rever o texto, obriguei-me a repensar a aventura de Caritó. Para mim, ela é um estudo sobre a mercantilização da fé, o abuso da potência dessa fé do brasileiro em função de interesses financeiros e políticos. E nada melhor que a tela grande para ampliar essa discussão”, reflete.

Antes do cinema, o dramaturgo já havia experimentado transportar um texto seu para a televisão. Livre adaptação do livro homônimo de Gilberto Freyre, Assombrações do Recife Velho deu origem à série Amorteamo, exibida em 2015 e estrelada por Marina Ruy Barbosa, Johnny Massaro e Arianne Botelho. Essa, no entanto, não foi a sua primeira colaboração com o veículo. O pernambucano já havia escrito episódios do seriado A Grande Família. Mas Amorteamo possibilitou que sua assinatura fosse mostrada de maneira mais clara.

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Newton Moreno também abriu espaço para que conterrâneos pudessem brilhar no elenco da série. Aramis Trindade, Gheusa Sena, Lívia Falcão, Bruno Garcia, Isadora Melo, Felipe Koury, Adélio Lima e Paulo de Pontes dividiram os créditos com o trio de protagonistas. Muitos desses atores ele conheceu ainda no Recife, quando frequentava toda a programação teatral local. “No final dos anos 1980 a cidade fervilhava”, assinala. “Acho que a peça que mais vi na vida foi Em nome do desejo, de João Silvério Trevisan, dirigida por Antônio Cadengue. Todo final de semana, eu batia ponto na plateia. Sabia as falas de cor”, lembra. “Também me marcaram muito as encenações de Vestido de noiva e Fim de jogo feitas por João Denys; As velhas, de Moncho Rodriguez; O balcão, outro momento especial do Cadengue”, enumera. E ainda sobrava tempo para o teatro de revista do debochado Luís Lima e os pastoris do Velho Faceta. “Não havia uma pré-censura, mas, sim, uma busca pela excelência do artista.”

De tanto frequentar os teatros, ele acabou acompanhando as carreiras de muita gente boa, como Zuleika Ferreira, Gilberto Brito, Lúcia Machado e os próprios Aramis Trindade e Paulo de Pontes. Um dos protagonistas de Em nome do desejo, Paulo não só virou seu amigo pessoal como também se tornou integrante do grupo Os Fofos Encenam, que Newton ajudou a criar em São Paulo, em 2001. “Para mim, além de grande poeta, é um excelente diretor. Ele escolhe o próprio elenco, por gostar de trabalhar com pessoas que conhece, e dá abertura para a construção coletiva”, afirma Paulo, que foi convidado para atuar em Assombrações do Recife Velho durante uma das vindas de Newton à cidade natal. “Eu estava cheio de compromissos, mas nem pensei duas vezes. Abandonei tudo e mergulhei. A peça acabou sendo um divisor de águas na vida de todos nós.” Para ele, o dramaturgo consegue como poucos falar de coisas regionais de uma forma universal.

A atriz Luciana Lyra é outro nome importante na vida e carreira de Newton. Mas, apesar de conterrâneos, ela só entrou para o seu ciclo já na capital paulista. “Somos de gerações diferentes do teatro do Recife”, situa ela. Foi através da também atriz Elaine Kauffman, que dividia apartamento com o autor, que os dois se conheceram. “E não paramos mais de trocar as tantas afinidades que tínhamos para além da terra que nos ligava: o teatro, o interesse pela pesquisa e pelo universo feminino, a espiritualidade, a nostalgia acerca de Pernambuco, a escrita dramatúrgica...”, lista ela, que integra o elenco de Cangaceiras guerreiras do Sertão, um dos mais recentes espetáculos de Newton. “Tenho o privilégio de atuar sob a pele de sua Viúva, uma personagem urdida especialmente para mim”, vibra. “Inclusive, muitos de seus textos vieram aos meus olhos e leitura antes de se tornarem públicos, o que considero um privilégio de interlocutora e amiga.”

Da mesma maneira que as dublagens de Gal Costa e os autos natalinos coabitavam a mente do pequeno Newton Moreno, nos tempos de Limoeiro, seus interesses na hora de criar seguem múltiplos. Vão do regional e do sobrenatural a questões LGBTQIAP+, muito bem-exploradas em Ópera, encenada em 2007 pelo premiado Coletivo Angu de Teatro, grupo pernambucano capitaneado por André Brasileiro, Tadeu Gondim e Marcondes Lima. E todos esses assuntos acabaram se juntando/cruzando na coletânea Cidades sensíveis. Lançado no ano passado, o livro de contos é dividido em duas partes: As cidades com Deus e As cidades sem Deus. Essa “viagem”, com paradas em lugares tão distintos como Rio de Janeiro, Cidade do México, Osasco, Curitiba, Atacama, Londres e, claro, Recife, foi feita durante o auge da pandemia da Covid-19, quando se viu isolado em casa.


Agreste garantiu ao diretor os prêmios Shell e APCA de
melhor autor de 2004. Imagem: Divulgação

O retiro involuntário também rendeu uma experiência inédita: trabalhar em uma montagem virtual de seu texto Como os ciganos fazem as malas, realizada pelo premiado Grupo Galpão, sob a direção coletiva de Yara de Novaes, Tiago Macedo, Paulo André e Barulhista. Para Yara, que – como atriz – já havia protagonizado Justa, descrita pelo pernambucano como uma “crônica política”, o teatro de Newton “é de plena, ativa e potente articulação entre o que há de mais contemporâneo e mais tradicional”.

Contemporâneo que é, ele não poderia deixar de experimentar o palco virtual. “Foi um processo muito diferente, mas igualmente interessante”, avalia ele, cujo texto mais recente, Sueño, já encenado de forma presencial em São Paulo, no final de 2021, pode ser considerado um manifesto poético de retorno ao teatro após o caos pandêmico e político que atravessamos. “Depois que escrevi essa peça, aprendi a respeitar os sonhos. Eles são uma parte poderosa da nossa existência”, pontua o vencedor de mais um prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) por esse trabalho.

Mesmo com tantos êxitos colecionados ao longo de três décadas de ofício, Newton ainda não conseguiu se livrar daquele frio na barriga que ataca qualquer artista na hora de mostrar algo novo. “Toda vez que vou assistir pela primeira vez a um texto que escrevi, sinto uma certa agonia. Fico pensando se poderia ter feito melhor, que tal piada não funcionou, que certa ação não foi bem-explicada. Mas isso também pode ser visto como um respeito ao público. Ninguém quer ser convidado para uma festa que não está pronta”, diz. “Cada peça nos ensina algo. Um tropeço ou um salto, depende do ponto de vista”, argumenta.

Embora se sinta um privilegiado, o dramaturgo não fecha os olhos para a situação de grande parte dos seus colegas de ofício. “Uma enorme quantidade de talentos das artes presenciais, seja teatro, dança, ópera, circo, performance, não consegue mais viver da própria bilheteria. O verdadeiro fracasso é não termos uma política cultural integrada nacionalmente, uma grande escola de dramaturgia e mais projetos para formação de público, levando peças e debates para locais descentralizados”, lamenta. “O teatro precisa encontrar o público.” Mesmo que, há tempos, já tenha encontrado o seu próprio (e grande) público, Newton Moreno nunca deixou de pensar de forma coletiva. Para ele, teatro será sempre uma palavra plural.

CLEODON COELHO, jornalista.

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