Crônica

Mestre Noh

TEXTO Angelo Souza

01 de Abril de 2022

Ilustração Samuca

[conteúdo na íntegra | ed. 256 | abril de 2022]

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Havia aquele sol dos anos 1980 do Recife e, além de todas as coisas que o sol toca, também havia o fusquinha de Mestre Noh. Dentro do fusquinha de Mestre Noh, estavam os seus alunos: Paulo Bunda, Burrinho e Buchão. Era dia de mudança de faixa, nos anos 1980, e o Porto do Recife recebia mais navios do que recebe hoje, navios cheios de coisas vindas de todos os cantos do mundo. Um desses navios estava cheio de açúcar e quem descarregava os navios eram os estivadores. Aí mestre Noh parou o fusquinha no porto do Recife e todo mundo desceu. Mestre Noh fechou a porta do fusca, deu um sorriso sem mostrar os dentes e disse:

– Hoje é dia de exame de faixa.

Mestre Noh apontou os estivadores, e os barcos e o porto e disse:

– Vocês vão ter que lutar com os estivadores para trocarem de faixa.

O pessoal se olhou. Ninguém disse nada.

Mestre Noh entendeu que ninguém iria lutar com os estivadores e ficou decepcionado. Foi uma das maiores decepções da história do Taekwondo brasileiro. Mestre Noh colocou as mãos na cintura e, com a cabeça baixa, disse:

– Eu me sinto decepcionado.

Os alunos do Mestre iam voltando pro carro, mas Mestre Noh ficou parado.

– Onde vocês pensam que vão?

– Ninguém vai lutar com os estivadores, Mestre Noh.

Mestre Noh balançou a cabeça na horizontal com as mãos na cintura e disse:

– Eu me sinto decepcionado.

Era hora do almoço e os estivadores estavam comendo. Os estivadores almoçavam em marmitas. Mestre Noh andou até os estivadores e suas marmitas e disse:

– O que vocês estão comendo?

Ninguém disse nada. Só ficaram olhando o rosto de Mestre Noh. Depois voltaram a comer.

– Parece estar delicioso.

Ninguém disse nada, de novo. Só o barulho dos garfos.

– O que vocês estão comendo aí eu passaria uma semana.

Ninguém disse nada.

Mestre Noh gostava de sorrir. Sendo assim, Mestre Noh sorriu de novo, sem mostrar os dentes. Mas depois ele parou de sorrir. O rosto de Mestre Noh ficou duro. Quando o estivador ia dar outra garfada, Mestre Noh deu um chute tão rápido que nem pareceu que a perna dele tinha saído do lugar. Foi o chute mais veloz de todas as artes marciais juntas numa marmita. Foi como se a perna dele tivesse se transformado num raio.

Toda aquela comida voou. Dava pra ver o macarrão, o feijão, o arroz, a carne e a farinha no ar com o sol brilhando ao fundo. Comidas não voam, ao menos antes de virarem comida pode até ser, mas depois não. A comida tocou no chão, os pombos atacaram. A natureza funciona assim. Se alguém chutar sua comida, os pombos vão lá e comem. O estivador olhou pra cara de Mestre Noh. Ele estava sorrindo de novo, com os olhos fechadinhos. O estivador se levantou, outros três levantaram também. Os alunos de Mestre Noh olhavam tudo de longe. Eles sabiam o que iria acontecer. Você que está lendo também sabe o que vai acontecer. Até quem não estiver lendo isso aqui sabe o que vai acontecer.

Foi aí que começou a dança. Enquanto os estivadores se moviam como golens de pedra, com murros abertos e cheios de força e peso, Mestre Noh se movimentava como o vento: leve e intangível. Os socos vinham e Mestre Noh dançava pra lá e pra cá. Nada atingia Mestre Noh porque ele era como o vento: o vento da Coreia do Sul. Os socos vinham, Mestre Noh se esquivava, e o peso e a força do próprio golpe Mestre Noh transformava em contra-ataque. E a luta continuou assim até que ninguém aguentou mais.

– Ninguém aguenta mais.

Mestre Noh deu aquele sorriso dele. Olhou pros alunos. Os alunos sorriram também. Os pombos já haviam comido tudo. Algumas pessoas pararam pra ver aquilo e também sorriram. Foi um momento de muitos sorrisos. Então Mestre Noh disse:

– Vocês agora vão lutar com meus alunos.

A ideia ainda não era boa.

– Se vocês não lutarem com eles – os estivadores – vão ter que lutar comigo.

Era melhor lutar com os estivadores.

Aí tudo aconteceu de novo, sendo que dessa vez não foi como foi com Mestre Noh. Foi tudo bem diferente. Todos aqueles socos dessa vez funcionaram e funcionaram com muito mais emoção. Os socos acertaram as barrigas, cabeças, ombros, costas e peito dos alunos de Mestre Noh. Hematomas foram surgindo. Calombos também. Grandes calombos. A cor vermelha também foi aparecendo, assim como a cor roxa, que é a cor quando o sangue se acumula e não consegue sair.

Alguns golpes aconteceram, como martelos, telefones, pilões, joelhadas, cotoveladas e cabeçadas. Também teve alguns agarrões. De dentro dos navios você conseguia ver as sacas de açúcar sentindo pena dos alunos de Mestre Noh. Nem as sacas de açúcar sofreram tanto. Os pombos também não aguentaram ficar perto.

Outro ser humano teria mandado parar na metade, mas Mestre Noh, não. Mestre Noh só ficou lá, sorrindo, apontando pra cena e trocando sorrisos com a plateia. Esse era o nosso Mestre Noh.

Depois que tudo aquilo acabou, Mestre Noh convidou todos para uma cerveja e pra pagar o almoço de todo mundo e aquela tarde nos anos 1980 no Porto do Recife foi uma das mais importantes da história do Taekwondo pernambucano. Quem não estava com o olho inchado pôde ver claramente.

ANGELO SOUZA, compositor e músico.

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