Resenha

Presença feminina na fotografia brasileira

Através de imagens e depoimentos, livro resgata a produção de fotógrafas no Brasil, a partir do início do século XX

TEXTO Gianni Gianni

01 de Março de 2022

'Paisagens urbanas'

'Paisagens urbanas'

Foto Bárbara Ferreira/Mamana Coletiva/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 255 | março de 2022]

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Reescrever as narrativas coletivas devolvendo às mulheres seu lugar de direito é um trabalho que vem sendo realizado, nas últimas décadas, pela historiografia das diversas expressões artísticas. Na publicação Fotógrafas brasileiras – imagem substantiva (Grifo, 2021), da antropóloga, historiadora e curadora Yara Schreiber Dines, encontramos um panorama da produção desse campo realizada por mulheres desde o início do século XX. Um levantamento de fotógrafas cujo empenho do olhar aponta para projetos variados, relacionados a diferentes tendências dessa linguagem. Essa catalogação une não só questões de antropologia visual e gênero, mas também aquelas referentes à memória, integrando pequenas biografias e depoimentos das próprias fotógrafas ou de pessoas próximas.

Yara Schreiber Dines destaca que a participação das mulheres na fotografia, seja no Brasil ou no exterior, ocorre desde os primórdios dessa técnica. Porém, os primeiros estúdios eram empresas familiares nas quais o crédito estava sempre associado ao ateliê e não a ou ao artista. “O espaço social da mulher no estúdio fotográfico era o da invisibilidade, como uma sombra do homem que dirigia seu negócio, prevalecendo essa condição até mesmo após a morte do marido, quando ela passava a comandar o estúdio com o estigma da denominação viúva – como a Viúva Pastore, esposa de Vincenzo Pastore”, escreve a autora.


Gioconda Rizzo, Miss São Paulo, Zezé Leone,
Concurso Nacional de Beleza, 1923.
Foto: Acervo Gioconda Rizzo/Divulgação

Desde fins do século XIX, as mulheres já atuavam como retocadoras, fotocopiadoras ou assistentes nos laboratórios, além de compor fotografias nos suportes diversos. No contexto de apagamento em que viviam, a filha de imigrantes italianos Gioconda Rizzo foi uma exceção à regra. De 1914 a 1916, em São Paulo, esteve à frente do Photo Femina, estúdio que foi fechado devido à pressão dos seus familiares, quando se soube que algumas de suas clientes eram cortesãs francesas e polonesas. Ainda assim, Gioconda seguiu trabalhando com fotografia até a década de 1960.

“É muito provável que ela tenha tido uma boa autoestima ao ter pensado: ‘estou fazendo isso, com essa idade’; mas não me parece que ela tenha tido essa percepção tão forte na época. Muitos anos depois, quando ela já estava aposentada (1982) e a Galeria Fotóptica fez uma exposição com a obra dela, é que veio um grande glamour. Ela até se espantou: ‘Nossa! Quanto interesse as pessoas estão demonstrando!’”, conta Silvana Salerno Rodrigues, neta de Gioconda Rizzo, em depoimento no livro.

Chama a atenção, neste lançamento, a forte presença de mulheres que imigraram para o país no século XX, movimento que, em geral, era consequência da realidade econômica conturbada ou do impacto do nazifascismo europeu. Em muitos casos, a prática fotográfica já era mais difundida e acessível no país de origem dessas imigrantes. Além disso, a atividade não dependia do domínio da língua local, fatores que contribuíram para essa adesão profissional e artística.


Rosa Gauditano, Prostituta, Centro de São Paulo, 1976.
Foto: Rosa Gauditano/Studio R/Divulgação

Dois nomes que exemplificam bem esse cenário são Hildegard Rosenthal e Alice Brill, ambas imigrantes da Alemanha que se fixaram em São Paulo na década de 1930. “As duas fotógrafas flagravam cenas de rua, o que era uma ousadia para a época, pois, nas décadas de 1940 e 1950, a maior parte das fotógrafas do país ainda atuava dentro de ambientes fechados, como os ateliês”, observa Yara.

Também são nascidas em territórios estrangeiros duas mulheres que se tornaram ícones da fotografia nacional: Claudia Andujar e Maureen Bisilliat. A primeira, originária da Suíça, migra para os Estados Unidos devido à perseguição nazista na Hungria, onde morou durante a infância; posteriormente, encaminha-se para São Paulo, em 1955, com a finalidade de encontrar a sua mãe, e acaba decidindo permanecer por lá.

Já Maureen, nascida na Inglaterra, teve uma infância itinerante em decorrência do trabalho do pai na diplomacia argentina e naturalizou-se brasileira em 1963. Ambas deram admirável contribuição para o fotojornalismo da revista Realidade nos anos 1970, trabalho que as permitiu mergulhar em vivências brasileiras de difícil acesso, lançando luz, por exemplo, a atores sociais do sertão e a povos indígenas da Amazônia.

Embora o livro Fotógrafas brasileiras reúna assinaturas múltiplas, da publicidade ao documental, das colagens ao fotojornalismo, do registro de arquiteturas à produção contemporânea experimental, é perceptível o interesse majoritário dessas lentes pelos sujeitos que compõem a sociedade brasileira, com destaque para as próprias mulheres, as pessoas negras, os indivíduos periféricos e, já em alguns casos, a comunidade queer, como se vê nos registros de Madalena Schwartz – mais uma imigrante da Hungria – e Vânia Toledo.


Elza Lima, sem título, São Miguel do Guamá, 1987.
Foto: Elza Lima/Divulgação

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Frustra, porém, que o perfil das fotógrafas catalogadas, assim como ocorre com as obras, não seja um pouco mais variado, sobretudo se considerarmos que o trabalho se propôs a vir até os dias de hoje. Entende-se que a pesquisa lida com uma limitação de espaço, demandando uma seleção que sempre deixará nomes valiosos de fora. A reunião de mais de 60 fotógrafas – considerando que em dois casos temos projetos de coletivos – já é uma contribuição ímpar não apenas para a antropologia visual, mas para o grande campo de estudos da imagem no Brasil.

No entanto, incomoda que, desse número, apenas quatro fotógrafas sejam do Nordeste do país (Ana Araujo, Lita Cerqueira, Eliane Velozo e Helen Salomão) e somente duas sejam da Região Norte (Elza Lima e Paula Sampaio, essa última nascida em Minas Gerais, porém estabelecida desde a infância na região da Amazônia). Na proporção desse apanhado de fotógrafas brasileiras, 33 são dos estados do Rio de Janeiro ou de São Paulo, sem considerar as imigrantes que se estabeleceram em algum desses dois territórios.



Acima, foto de Claudia Andujar, Trem baiano, da série Histórias reais, 1969. Foto: Cortesia Galeria Vermelho. Na sequência, imagem de Marlene Bergamo, Maria da Conceição Paulino de Souza, 50, mãe do preso Abel de Sousa, Boa Vista, Roraima, 2017. Foto: Folhapress/Divulgação

Sabe-se que a questão do pertencimento vai além do lugar de origem, o que traz alguma complexidade a esses números. Marcela Bonfim, por exemplo, multiartista nascida em Jaú (SP) e indicada ao Prêmio Pipa em 2021, mudou-se para Porto Velho (RO) em 2008, e esse é o seu lugar de identificação. O mesmo ocorre com Isabel Gouvêa, que se mudou para Bahia em 1978, pouco após formar-se na Universidade de São Paulo, e construiu sua trajetória profissional nesse estado.

Ainda assim, a ocorrência desses deslocamentos não altera significativamente o quadro posto. Mais da metade das fotógrafas são nascidas no Sudeste do Brasil, e esse desequilíbrio também se observa no que se trata da presença de fotógrafas negras. São muitas pessoas negras fotografadas para poucas pessoas negras autoras do seu próprio discurso imagético. E, como afirma a própria Marcela Bonfim: “um corpo negro atrás de uma câmera fotográfica cria uma outra relação”.

***

Sim, sabemos que o custo do trabalho fotográfico, seus equipamentos e processos, e o contexto socioeconômico do século passado não favoreciam a atuação dos sujeitos marginalizados – seja por cor, região ou classe social. Por isso mesmo, a visibilização de determinado grupo (o das fotógrafas brasileiras, nesse caso) às vezes opera na manutenção da invisibilização de outros (o das fotógrafas negras, o das fotógrafas nordestinas, o das fotógrafas nortistas, por exemplo), ainda que essa esteja longe de ser a intenção da autora.

Se, para muitas fotógrafas de determinada realidade geográfica e social essa linguagem, como afirma a Claudia Andujar, é uma ferramenta para “conhecer o outro” por meio de uma “fotografia humanitária”, nos depoimentos das fotógrafas negras vemos como, muitas vezes, o ponto de partida é a reflexão dos corpos e sujeitos negros não como um assunto externo, mas como aquilo que elas são e que tradicionalmente foi representado como esse “outro”.

 
À esq., foto de Marcela Bonfim, Manjar do Guaporé: preparo do tracajá, São Francisco do Vale do Guaporé, Rondônia, 2016. À dir., imagem de Cris Bierrenbach , sem título (cílios), pigmento sobre papel de algodão, 2008. Fotos: Divulgação e Coleção Itaú de Fotografia/Divulgação

“Quando comecei a crescer e entender quem eu era, passei a me questionar quanto aos padrões corporais, da moda, da vida. É disso que falo nos meus projetos fotográficos, não consigo me ver falando de outra coisa. Tenho a necessidade de desconstruir esses corpos ditos ‘perfeitos’. Preciso falar dos diversos corpos e tons da pele negra, falar de periferia, falar da minha realidade. E preciso ser caminho para que outras pessoas falem também”, afirma a soteropolitana Helen Salomão em entrevista de 2016 reproduzida no livro.

Por mais óbvio que possa parecer, ainda é importante destacar que, assim como as demais artistas, os assuntos e projetos estéticos dessas fotógrafas também são diversos. O projeto de Helen reflete seus interesses, no entanto, nem toda fotógrafa negra se debruçará sobre imagens e pesquisas relacionadas à identidade.

Apesar disso, Fotógrafas brasileiras: imagem substantiva é uma aventura visual que revela uma presença feminina impossível de ser ignorada na cultura imagética do século XX e início do século XXI. “Muito pouco ainda se publicou a respeito desse recorte, por isso o viés é panorâmico”, avalia Yara. O livro surge como um documento valioso para futuras pesquisas, uma inspiração para novas aproximações da antropologia visual e dos estudos historiográficos da fotografia em relação às mulheres fotógrafas.

GIANNI GIANNI, jornalista, escritora e arteterapeuta em formação.

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