Relato

O que há de cinema numa alvura que não cessa?

A representação de indivíduos amarelos no audiovisual brasileiro pensada a partir da sua ausência sob as lentes de narrativas brancas

TEXTO Hugo Katsuo

01 de Março de 2022

Still do filme 'Amarelo desordem', Hugo Katsuo, 2020

Still do filme 'Amarelo desordem', Hugo Katsuo, 2020

Imagem Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 255 | março de 2022]

Assine a Continente

Em uma sala de cinema, diante de uma tela em branco, meu corpo se ausenta da imagem. Inicio, portanto, este relato com uma pergunta: o que há de cinema numa alvura que não cessa? O universo cinematográfico sabe ser espaço de negação, lugar de inexistência. No entanto, é possível empunhar uma câmera e propor novos dispositivos, disparadores. Adentro na ficção, terreno de disputa – adentro, sobretudo, na dimensão dos afetos para que, só então, eu me permita ao engano. Mas há também o som e a voz que cala ao mesmo tempo em que é obrigada a dizer.

Costumo dizer que minha relação com o cinema é ambígua: por um lado, é possível que eu construa novos mundos a partir dele e, por outro, a probabilidade de que eu os habite me parece estar interditada. Não me refiro aqui, entretanto, à demanda de me “sentir representado” por alguém que compartilhe (ou não) de experiências coletivas comuns à minha vivência. Refiro-me a mim e ao meu próprio corpo, que é abjeto à sua maneira e que, portanto, é expurgado de certa imagem cinematográfica que se convencionou pautada na brancura.

Há um tempo tenho me debruçado sobre pesquisas em torno do cinema e das representações raciais. No universo cinematográfico nacional, muitas vezes, analisar a representação de indivíduos amarelos brasileiros é um exercício de pensá-los a partir de suas ausências. Personagens e narrativas brancas, contudo, estão desproporcionalmente presentes. O cinema está interditado por uma alvura que não cessa. Mas não há alvura que resista quando me corporifico frente às minhas próprias lentes – meu instrumento de combate – e um amarelo desordem contamina a imagem sem se saber antídoto ou veneno.

Durante a quarentena, com o incentivo de minhas amigas – também cineastas – Mariana de Lima e Cintya Ferreira, me permiti experimentações audiovisuais onde a imagem e o corpo e o poema e a voz seriam os principais dispositivos das minhas produções. Concomitante a esse processo, ingresso no mestrado pelo PPGCine-UFF e entro em contato com o conceito de pornificação de si, trabalhado pela minha orientadora – Mariana Baltar. Naquele momento, portanto, não bastava qualquer corpo pornificado, qualquer voz poética a se transformar em cinema: precisava ser o meu corpo pornificado, a minha voz poética.


Stills do filmes A cura, Hugo Katsuo, 2020. Foto: Reprodução

Na construção de uma contraficção de mim, meu corpo e minha voz colocam-se nas dinâmicas cinematográficas demandando e obrigando o olhar e a escuta. Não apenas isso: reivindico um espaço nas dinâmicas de desejo e desejabilidade que a mim foram historicamente negadas. Às vezes, é necessário que nós fabulemos nossos próprios corpos para que tenhamos consciência dele e que possamos ingressar no mundo para reivindicá-lo na intenção de dissolver barreiras. E, às vezes, é como assistir a um filme: estar ao mesmo tempo dentro e fora da imagem.

Existe uma demanda por novas práticas representacionais pautada por pessoas socialmente racializadas. Uma demanda que, a meu ver, precisa ser formulada com cuidado a partir do momento em que se leva em conta as contradições e os limites da política das representações. Não podemos sustentá-la dentro de uma noção ingênua de realismo porque não se trata de representar a realidade tal como ela é – se assim fosse, não adiantaria em nada. É-nos interessante (e necessário), no entanto, construir o que Paul B. Preciado chamaria de contraficções – uma maneira de questionar e tensionar a norma e o desvio. No fim, é tudo também sobre linguagem.

Tenho pensado cada vez menos em subversão no que diz respeito às práticas representacionais hegemônicas. Interessa-me mais pensar em deslocamentos – um movimento simbólico que faço tendo em mente os meus ancestrais imigrantes. Procuro, então, por uma linguagem que não se fixe e não se esgote em si; uma linguagem que se desloque pelas fronteiras e, assim, se recuse à transparência. O lugar da fronteira – e penso em diálogo com Gloria Anzaldúa – é um lugar nebuloso: não estamos nem lá e nem cá. Ao mesmo tempo, acredito que devamos assumi-la como lugar de pertencimento e de mistério.

A autorrepresentação mostrou-se um primeiro passo interessante que me abriu possibilidades múltiplas de experimentações de mim. Nessa dinâmica, tomei consciência da imagem e do meu próprio corpo – pude me saber eu e não outro. Filmar a si mesmo de modo a se construir enquanto cinema é um ato de coragem porque, a partir desse momento, nem tudo se vê e nem tudo se dá a ver mesmo estando na imagem. Aquela alvura que permeia os desejos cinematográficos é interpelada pelos novos repertórios imagéticos e corpóreos que sustentam, inclusive, uma temporalidade estranha até ao próprio cinema. Interpelamos a alvura e a nomeamos para que, assim, ela seja deslocada do eu para também se saber outro.

***

Ouso aqui cometer intencionalmente um ato de violência – a violência da racialização. Quero nomear um certo cinema brasileiro, muitas vezes conhecido apenas como “o cinema brasileiro”. Gostaria de chamá-lo “cinema branco brasileiro”. Não o faço porque acredito que ele possua uma essência – mas o faço de forma estratégica de modo a tentar desestabilizá-lo, fazê-lo olhar para si com outros olhos. Na alvura à qual me refiro desde o início deste relato há muito mais do que apenas corpos brancos representados em tela: há muito mais do que apenas ingenuidade e inocência.

O cinema branco brasileiro, até o mais progressista de todos, conseguiu expelir da história do cinema nacional tudo o que não fosse ele. A esse outro foi dado um lugar às margens e, mesmo no ensino de cinema, é colocado como algo “optativo” ou “muito específico”. Mesmo no quesito de representações socialmente racializadas na nossa cinematografia, em muitos casos, as referências postas acabam sendo filmes feitos por cineastas brancos que se aliaram, de uma forma ou de outra, à luta antirracista.

Proponho, no entanto, uma análise em torno de um projeto político de um cinema branco brasileiro que se coloca em busca de uma identidade nacional, uma brasilidade “autêntica” – um projeto político fadado ao fracasso. A representação do outro racializado como parte de uma brasilidade nesse cinema, diversas vezes, se dá a partir de um esvaziamento e homogeneização de experiências individuais e coletivas e culturas múltiplas, sobretudo de pessoas negras e indígenas no Brasil. As tentativas de representar esse outro recaem sobre um lugar de violência – não pelo ato em si, mas pelo modo que se propõe a desvendar esses corpos, acessar o que não pode ser acessado.

A ausência de corpos amarelos no cinema brasileiro, a meu ver, caminha pelo mesmo sentido, a partir do momento em que estes são vistos como inorgânicos dentro de uma certa noção de brasilidade. Nessa lógica, não haveria sentido em colocá-los na tela de um cinema para dialogar com o contexto brasileiro. A necessidade de mais representações amarelas em nosso audiovisual, no entanto, não se resume a igualar sua presença com outros grupos (como negros, indígenas e, até mesmo, brancos), mas, sim – e aqui converso diretamente com o trabalho da pesquisadora Laís Miwa Higa – de inseri-los dentro do imaginário racial nacional.



Stills dos filmes Do desejo e Àquele, Hugo Katsuo, 2020. Imagens: Reprodução

Dou destaque a isso porque precisamos entender o Brasil também enquanto uma ficção colonial. Nós, pessoas amarelas, estamos, é claro, neste território – entretanto, reivindicá-lo como nosso dentro de um projeto de identidade nacional extremamente violento é, no mínimo, desonesto. O cinema que pretendemos, então, construir não pode se pautar no mesmo raciocínio da alvura que tanto criticamos. É preciso, portanto, que construamos novas formas de pertencer a partir da imagem.

O mesmo vale para os espaços que almejamos adentrar. Quando o discurso de “ocupar todos os espaços” é levado ao pé da letra, caímos em uma dinâmica pouco articulada a lutas, de fato, emancipatórias e revolucionárias. Ao tentarmos ocupar espaços que não foram feitos para nós, é necessário que negociemos, que façamos concessões – e existem negociações e concessões estratégicas, mas existem também as que não levam a lugar nenhum além da manutenção do mesmo sistema e da mesma estrutura que nos oprime cotidianamente. Penso, ao mesmo tempo, se há a possibilidade de sobrevivermos – e digo sobreviver da forma mais ampla possível – no meio artístico de forma única e exclusivamente clandestina.

É com esse questionamento que tendo a pensar que precisamos também circular em espaços hegemônicos do cinema – seja nas grandes salas ou nos grandes festivais. Dessa forma, será possível que os repertórios imagéticos que criamos com nossos filmes, a partir de novas práticas representacionais, encontrem um espaço maior de circulação. No entanto, não podemos, em momento algum, deixar de entender nossos próprios limites. Em um mundo onde cada vez mais a diferença racial, a outridade, é transformada em mercadoria para o consumo de quem corriqueiramente nos rejeita, precisamos atuar dentro dessas contradições sem, contudo, cometermos o erro de transformarmos a nós mesmos e a nossa arte em commodities.

A alvura desenha nossos corpos como risíveis, impassíveis de afeto, não merecedores do luto e, sobretudo, matáveis. A possibilidade de sermos quem quisermos ser parece morrer a cada quadro nos quais nos fazemos presentes (ou ausentes). O cinema precisa, antes de tudo, se transformar em um lugar em que nossas existências sejam possíveis, a ficção precisa ser entendida por nós como um território de embate. Que nos atentemos às armadilhas do discurso neoliberal de “representatividade” para que nunca, em hipótese nenhuma, esqueçamos quem somos, de onde viemos e para que estamos. Eu ainda acredito na construção de um espaço feito por nós, através de nós e para os nossos.

Dedico, enfim, este relato à minha prima caçula, Nina Airi, na esperança de que meu cinema ressoe nela e a mobilize de modo que ela, futuramente, ressoe em e mobilize outros corpos. Porque – sabemos todos – olhamos para os que estão por vir tal como nossos ancestrais olharam por nós.

E, aqui, reitero: numa alvura que não cessa, não há cinema.

HUGO KATSUO, bacharel em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal Fluminense e mestrando pelo PPGCine-UFF. Pesquisa relações étnico-raciais voltadas para a representação e o consumo do corpo amarelo no audiovisual.

Publicidade

veja também

Magiluth: maduro e sem medo de ousar

Presença feminina na fotografia brasileira

Plaï