Magiluth: maduro e sem medo de ousar
Grupo pernambucano, referência no teatro brasileiro contemporâneo, completa 18 anos com a estreia da peça 'Estudo nº 1: morte e vida'
TEXTO Márcio Bastos
01 de Março de 2022
'Estudo n⁰ 1: morte e vida' mergulha na obra de João Cabral de MN para discutir questões estruturais do Brasil
Foto Vitor Pessoa/Divulgação
[conteúdo na íntegra | ed. 255 | março de 2022]
O Magiluth iniciou 2020 com muitos projetos, incluindo a montagem de um novo espetáculo, e a concretização de um sonho: em janeiro, o grupo inaugurou o Casarão Magiluth, um espaço de quase mil metros quadrados na Rua da Glória, localizada no Bairro da Boa Vista, região central do Recife, que serviria de sede para as suas atividades e também como equipamento cultural, abrindo mais um (necessário) espaço para a produção cultural de Pernambuco. E não só do Estado: a ideia do grupo era agregar artistas de todo o país, injetando oxigênio na precária estrutura de circulação de espetáculos. Um mês e meio depois, porém, as atividades foram suspensas por conta da Covid-19, o espaço fechou as portas e todo o planejamento precisou ser refeito. Ou melhor, reestruturado do zero.
Lidar com as adversidades tem sido uma constante na trajetória do grupo fundado em 2004, no Recife. Ao longo desses 18 anos, o Magiluth, hoje formado por Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres, Mário Sérgio Cabral e Pedro Wagner, vivenciou várias mudanças internas, seja em sua formação e nos referenciais estéticos, e externas, com a montanha-russa política do Brasil.
Concebido na Universidade Federal de Pernambuco durante o governo Lula, consolidou-se durante a gestão de Dilma Rousseff e, após sua destituição do poder, em 2016, continuou resistindo e se opondo às políticas de Michel Temer e de Jair Bolsonaro. Mesmo que atordoados, assim como toda a classe artística, diante da paralisação das atividades presenciais por conta da pandemia, os artistas foram rápidos na resposta às angústias do momento e, em maio de 2020, lançaram Tudo que coube numa VHS, classificado por eles como um experimento virtual sensorial em confinamento.
A obra mantém uma das características mais fortes do grupo, a dramaturgia fragmentária, e se utiliza de aplicativos e plataformas como WhatsApp, YouTube, e-mail e Spotify para criar uma experiência individualizada, na qual um ator interage exclusivamente com um espectador. O uso dessas ferramentas de comunicação como uma forma de expressão artística e de estabelecer uma conexão com o público, outro elemento caro aos artistas, foi inédito para o Magiluth, que nunca trabalhou de forma incisiva com a tecnologia na cena.
O trabalho deu sobrevida ao grupo, que é autogerido e, portanto, se sustenta basicamente com a bilheteria dos espetáculos, participações em festivais e, eventualmente, projetos de leis de fomento à cultura (estes, cada vez mais raros). Mas não só isso: reforçou a sintonia e o compromisso do Magiluth com as questões do seu tempo, uma das características mais marcantes do grupo, como aponta Pollyana Diniz em sua dissertação de mestrado, focada na atuação política do coletivo pernambucano. Foi o primeiro de três experimentos pandêmicos realizados entre 2020 e 2021: além dele, foram lançados ainda Todas as histórias possíveis e Virá.
Com Tudo que coube numa VHS, o Magiluth foi indicado ao Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), na categoria Teatro digital, e venceu o 15º Prêmio da Associação de Produtores de Teatro, como Melhor espetáculo inédito ao vivo e inspirou ações de outros artistas, inclusive de linguagens distintas, como o grupo de música pernambucano Estesia, que lançou a experiência Estesia 1pra1, em 2020.
“Os experimentos virtuais foram muito importantes para a gente e, sim, a gente considera que eles fazem parte do nosso repertório. Existe aquela questão de se é ou não teatro. A gente chama de experimento virtual sensorial em confinamento. Quem quiser achar que é uma experiência cênica ou audiovisual, pode. Eles têm um lugar no nosso repertório e encaro como uma marca dos tempos que vivemos em 2020/2021”, contou Mário Sérgio Cabral em entrevista à Continente. “Os trabalhos nos salvaram – a nós e a muitos artistas no país inteiro. A gente conseguiu sobreviver através deles por mais de um ano e ainda hoje nós fazemos algumas apresentações em festivais. Sobre criar mais trabalhos virtuais, hoje, nós não pretendemos. Imaginamos que (agora) é um momento de palco.”
E para o palco eles voltaram. Em janeiro, o grupo estreou Estudo nº 1: morte e vida, no Sesc Ipiranga, em São Paulo. O trabalho, que inicialmente seria montado em 2020 como um espetáculo de rua, mergulha na obra de João Cabral de Melo Neto para investigar questões estruturais do Brasil, como a desigualdade social. Dirigido por Luiz Fernando Marques (Lubi), com quem o grupo colaborou em Apenas o fim do mundo (2019), o espetáculo é atravessado por temas como imigração, mudanças climáticas, desmonte de políticas sociais e trabalhistas, entre outros. É com esse projeto que o Magiluth marca seu reencontro com o Recife nos dias 10 a 13 e 17 a 20 de março, no Teatro Apolo.
“O Estudo nº 1: morte e vida é um projeto que passou por muitos momentos. Ele surgiu da vontade do grupo de voltar para a rua, visto que o último que fizemos assim foi Luiz Lua Gonzaga”, lembra o ator Giordano Castro, referindo-se à encenação de 2012, em homenagem a Gonzagão, mesmo ano em que os artistas celebraram outro pernambucano, Nelson Rodrigues, em uma iconoclasta e celebrada montagem de Viúva, porém honesta.
Nova montagem do grupo aborda, entre outros temas, trabalho e mudanças climáticas. Foto: Vitor Pessoa/Divulgação
“Mas, dentro do próprio processo de pesquisa inicial, a gente começou a ver que existiam coisas que a gente gostaria de discutir que talvez dentro da linguagem de rua a gente não conseguisse dar conta. Não que não seja possível fazer uma peça de rua politicamente mais forte, mas talvez é porque o Magiluth ainda não soubesse fazer isso, não tivesse maturidade para isso. Aí o processo foi indo para o palco, também por questões de produção: estava difícil fazer uma peça de rua”, continua.
Giordano situa o início desse projeto nos primeiros momentos do governo Bolsonaro. “Entendemos que seria muito complicado um incentivo para as artes – o que, de fato, se concretizou. Acho que a situação da pandemia também foi algo que impactou e moldou esteticamente o trabalho. Porque o Magiluth, quando está dentro de um processo de criação, se fecha muito dentro daquele estudo, do projeto em si. E a gente vai criando o trabalho a partir desse mergulho, em processos que duram entre seis e nove meses. Mas, no caso do Estudo nº 1: morte e vida, fomos encontrando muitas mortes e muitas vidas no caminho. É um projeto que a gente começou e parou por conta da pandemia, da vida dentro de uma pandemia. Cada vez que a gente voltava, a percepção era diferente: uma vontade de experimentar uma outra coisa enquanto linguagem, discussão.”
“O resultado final é um estudo – e essa parte para a gente é muito importante – sobre todas as temáticas que a gente achava fundamentais falar a partir da obra de João Cabral de Melo Neto, que flerta com vários gêneros estilísticos do fazer teatral na contemporaneidade: a metalinguagem, o ator narrador, uma ideia mais contemporânea de construção dramatúrgica, da ideia de uma peça-palestra. É um trabalho absolutamente honesto e verdadeiro com o seu tempo”, dimensionou o ator.
PESQUISA
Do início nos corredores da UFPE à consagração nos principais palcos do país, o Magiluth vem desenvolvendo uma pesquisa ininterrupta. Em sua dissertação de mestrado sobre as masculinidades presentes na cena do grupo, Mateus Araújo divide a pesquisa poética do grupo em três fases: a de experimentação, composta pelos trabalhos Ato (2004 e 2008, em versão expandida), Corra (2007), 1 Torto (2008) e O canto de Gregório (2011); de escritura, com Aquilo que meu olhar guardou para você (2012) na qual a estética magiluthiana, como o jogo de espelhos entre real e ficcional e o chamamento da plateia para integrar a cena, se torna mais definida; e de tensionamento, inaugurada por Viúva, porém honesta (2012), apostando em uma maior radicalidade do jogo performático e da metalinguagem.
O Magiluth se insere no contexto de grupos do Nordeste, como o Clowns de Shakespeare e Carmin (RN), que, nas últimas décadas, têm redefinido as dinâmicas do teatro no Brasil, estimulando um olhar para além do eixo Rio-São Paulo. Em Pernambuco, o coletivo inspira novas gerações, sendo possível observar influências de sua poética de forma direta e indireta. Isso é resultado do trabalho de formação de plateia que os artistas têm feito ao longo desses 18 anos. Pode-se dizer, inclusive, que existe um público do Magiluth, que é formado, em sua maioria, por pessoas jovens, muitas delas sem o hábito de consumir teatro – mas que não perdem um trabalho do grupo.
Esse fenômeno não pode ser explicado de forma simples, mas é resultado de vários fatores, principalmente a força da pesquisa do grupo. Mesmo em seus trabalhos mais disruptivos, como O ano que sonhamos perigosamente (2015), o grupo consegue estabelecer o diálogo com a plateia, criando imagens que mexem não só com a razão, mas também (e às vezes, principalmente) com a emoção. Há muitos sentimentos nos trabalhos do Magiluth e uma conexão com o tempo presente. Em geral, suas dramaturgias são autorais e, quando estão trabalhando com obras de outros autores, eles não têm medo de ousar. Mesmo quando mergulha em referências acadêmicas, como ocorreu com Slavoj Zizek e Gilles Deleuze, o grupo não adota um discurso com proselitismo. Grupo politizado, suas peças são permeadas por esse olhar atento às pulsões do contemporâneo, aliado a uma sensibilidade pop que mescla referências diversas, da música ao cinema.
O ano em que sonhamos perigosamente, por exemplo, respondia às angústias pós-manifestações de 2013, e antecipava a turbulência que culminaria no impeachment de Dilma Rousseff. Apenas o fim do mundo, adaptação do texto de Jean-Luc Lagarce, abordava como a epidemia da Aids e a iminência da morte, decretada ou velada, afetava o indivíduo e seu entorno. Nessa obra, pensada para ser adaptada para diferentes espaços (no Recife, foi apresentada no Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães e no Teatro Luiz Mendonça), a casa assume um caráter opressor e sufocante. Menos de um ano depois, essas sensações assombrariam todo o mundo, com a pandemia da Covid-19. Inquieto, apesar de ter muito estabelecida a sua linguagem, o grupo continua experimentando, inserindo recentemente elementos como a execução de música ao vivo em seus espetáculos.
“Esses 18 anos e a inserção do grupo no cenário nacional tem a ver com um processo de amadurecimento e solidificação da sua trajetória. São 18 anos de trabalho continuado e isso, de alguma forma, é algo a ser levado em consideração. Dá também, de alguma forma, um certificado de credibilidade do grupo em relação ao seu fazer, à dedicação que tem e como buscou esse processo de profissionalização”, observa Giordano.
“Seria muito difícil o grupo Magiluth, logo no início da sua trajetória, já ter dito ‘Nossa, fazemos isso’. Talvez em algum momento a gente tenha feito isso, mas por pura inexperiência juvenil e tudo mais. Mas hoje, passados esses anos, a gente entende a poética do grupo, um perfil estético, onde a gente se encontra, quais são as principais características do trabalho do grupo. Quando a gente começa a montar um espetáculo, a gente diz ‘Está faltando a cara do grupo, alguma coisa que tenha a pegada Magiluth’. E isso só existe por causa dessa trajetória, desse trabalho continuado, junto com essa equipe”, defende.
FUTURO
Com Estudo nº 1: morte e vida gestado e pronto para circular, o Magiluth dá continuidade a ideias e projetos. O dinheiro ganho com os experimentos virtuais possibilitou que, mesmo de portas fechadas para o público, o Casarão se mantivesse por um ano. Em 2021, no entanto, o grupo encerrou as atividades no local e divulgou um documentário, disponível no YouTube, sobre o processo. Hoje, Bruno, Erivaldo, Giordano, Lucas, Mário e Pedro alugam uma sala no Bairro do Recife onde ensaiam e planejam os próximos passos.
“O Casarão Magiluth para a gente foi algo muito forte, um investimento, um plano, um projeto de uma vida toda. Foi muito efêmero e nos chacoalhou em vários sentidos: emocionalmente, estruturalmente, tanto no início quanto os motivos pelo fim. Sempre foi um sonho nosso ter um espaço daquela dimensão, com aquela proposta, e a gente não descarta no futuro ter algo daquele porte. Hoje, a gente sabe que precisou dar 10 passos para trás para poder se manter de pé. O interesse e a disposição, a gente sempre vai ter para tentar levantar tudo novamente”, disse Mário Sérgio.
No ano em que completa sua maioridade, o Magiluth celebra o novo espetáculo, mas também quer olhar para a sua trajetória. Entre os desejos está o de colocar o repertório em cartaz e dar mais ênfase a Apenas o fim do mundo, espetáculo que contou com poucas apresentações, pois sua carreira foi interrompida por conta da pandemia. O grupo também tem uma circulação aprovada de Dinamarca aprovada pelo Funcultura e, no segundo semestre deste ano, espera apresentar seus experimentos virtuais em festival. A intenção para 2022 e os próximos anos é estar no palco o máximo de tempo possível, pois é em cena, com seu público, que o Magiluth se reconhece e se fortalece.
MÁRCIO BASTOS, jornalista e mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Pernambuco.