Ensaio

Literatura e crítica para além das trincheiras

O contexto atual e as consequências da politização dos estudos literários na academia e na crítica

TEXTO EDUARDO CESAR MAIA 
ILUSTRAÇÃO HALLINA BELTRÃO

01 de Março de 2022

Ilustração Hallina Beltrão

[conteúdo na íntegra | ed. 255 | março de 2022]

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O que parece acontecer de forma recorrente na história, em épocas como a nossa, de acirramento ideológico e polarizações políticas, é que a linguagem moral e a percepção estética e artística sofrem uma espécie de simplificação radical. A vida interior se empobrece porque nos sentimos impelidos a tomar algum partido em relação às causas coletivas em confronto, ainda que nenhuma entre elas realmente nos convença, intelectual ou moralmente.

O debate público – a crítica cultural e artística em geral – torna-se um campo de batalha, no qual bandos entrincheirados, protegidos por convicções inabaláveis e pelo sentimento de superioridade moral inviolável, disparam ódio e ressentimento contra adversários reais e imaginários. A autonomia de pensamento e a complexidade analítica, assim, ficam em segundo plano, diante do sentimento, ao mesmo tempo estimulante e confortável, de fazer parte de algo maior que si mesmo. Os limites do pensamento passam a ser os limites estreitos da visão ideológica de mundo à qual voluntariamente nos atrelamos. O imperativo de Hannah Arendt de um pensamento sem corrimão, quer dizer, sem muletas ou dogmas, precisa ser trazido à nova ágora digital, ou não teremos contrapontos à atual rebelión de las masas, agora em sua versão 2.0 – digital e pós-moderna.

Em sua Autobiografia intelectual (1977), o pensador austríaco Karl Popper defendeu que não é possível imaginar uma sociedade humana em que não existissem conflitos; isso só seria possível “numa sociedade de formigas”. Achar que é plausível suprimir totalmente esses conflitos significa presumir que as vontades individuais podem se somar num projeto coletivo homogêneo, resultando num sistema social perfeitamente programado para atender aos anseios de todos os seus participantes.

Ainda segundo Popper, “há muitos problemas morais insolúveis, porque podem existir conflitos entre princípios morais” (POPPER, 1977, p. 124). Portanto, qualquer sistema político-social que impossibilite alternativas de arbítrio aos indivíduos não é ético, mas autoritário. Tal configuração social só pode ser viável numa sociedade fechada, que não tolere o dissenso e a contradição, e nunca numa sociedade aberta, composta de indivíduos livres, que podem se expressar e viver em paz mesmo quando se colocam contra os valores da tradição – contra as normas da própria “tribo”. A conclusão inevitável é a de que não existe a possibilidade de concordarmos em última instância sobre o que seria uma “moralidade superior” ou uma sociedade perfeita; portanto, a única coisa que podemos afirmar com segurança é que o que temos de defender são sociedades abertas e pluralistas.

A religião, a ideologia e, por vezes, mesmo a filosofia, apostaram na possível superação do relativismo e do pluralismo no âmbito dos valores humanos, como se pudéssemos retornar a uma espécie de passado mítico pré-babélico, em que a variedade de linguagens (e, portanto, de visões de mundo) ainda não nos tivesse sido imposta como castigo. Eu me inclino mais à visão de pensadores como Karl Popper ou Isaiah Berlin, que assumem que podem existir contradições insuperáveis entre princípios morais. E mais: desconfio de que a filosofia (a razão, o pensamento) não tem ou terá um dia a capacidade de nos conduzir a uma base racional comum que possa, definitivamente, acabar com o dissenso e nos redimir das contradições existenciais.

Os valores sociais, numa sociedade aberta e democrática, fincam suas raízes através não da determinação autoritária de um tipo de moralismo fixo e imutável, mas do diálogo e das polêmicas; da confrontação permeável e sensível da tradição recebida e de seus valores com os da cultura presente, com todas as suas demandas por um mundo mais justo e igualitário. Não se trata, pois, de suprimir os conflitos, mas de tornar possível o dissenso e as disputas retóricas dentro dos limites da civilidade. É interessante lembrar, nesse sentido, que Machado de Assis já falava no valor fundamental da urbanidade para a viabilidade e o amadurecimento do debate público e, em particular, da crítica literária no Brasil.

*** 

Tomando a lição machadiana como gancho e retornando aos nossos dias, suspeito de que o fracasso do diálogo e a corrupção da linguagem, frutos da radicalização que apontei acima, colocam em risco um campo particular da cultura em que a livre expressão do contraditório e a pluralidade de perspectivas é condição sine qua non de sobrevivência: refiro-me justamente ao universo da literatura, seja no âmbito próprio da criação literária como também na esfera da crítica.

E destaco esse domínio específico não somente porque seja minha área de estudos, mas porque acredito que o conhecimento literário – a educação pela literatura – é uma das formas possíveis de contraposição ao atual estado das coisas. Dito de outra maneira: o tipo de inteligibilidade do mundo proporcionado pela boa literatura e pelo bom debate crítico antagoniza essencialmente com o dogmatismo inflexível e frequentemente autoritário com o qual os problemas político-culturais que apontei anteriormente têm sido discutidos.

A excessiva politização dos estudos literários, algumas vezes motivada por considerações completamente alheias ao entendimento da literatura enquanto fenômeno artístico complexo – seja no âmbito da teoria literária produzida dentro da academia, seja na crítica literária praticada em jornais e revistas –, pode levar a excessos e, principalmente, ao estiolamento do pensamento e do debate verdadeiramente críticos.

Parto da observação de que uma parte considerável da crítica literária contemporânea adota determinados preceitos ideológicos como valores apriorísticos e como razão basilar de sua atividade. É curioso observar, por exemplo, a quantidade de estudos e artigos (sejam acadêmicos ou jornalísticos), que se apresentam como crítica de literatura, mas que nem ao menos estabelecem qualquer relação com obras literárias concretas, e que desconsideram a especificidade artística e estética do texto literário, pois se apoiam em critérios exclusivamente políticos para a escolha de temas e abordagens.

Em contraposição à tal tendência, endosso a perspectiva de que, em se tratando de arte – especialmente no que diz respeito à arte literária –, a ideologia não deveria servir como explicação ou motivação total e exclusivista, ainda que seja parte importante da visão de mundo do artista ou do crítico. A densidade e complexidade de um bom romance, por exemplo, transcendem a mera tentativa exclusivamente persuasória e doutrinária de qualquer discurso ideológico que, por vocação e natureza, presume-se portador de verdades e virtudes universais.

O militante político-ideológico, por supostamente conhecer de antemão o que é o melhor para o conjunto social, já tem objetivos pré-definidos e acaba recaindo numa forma de pecado intelectual bastante frequente: a submissão da consciência crítica ao que Miguel de Unamuno chamou de ideocracia, uma forma de abandono de si em troca da segurança e do conforto de uma visão esquemática da realidade.

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A literatura, pelo menos em sua versão estética e cognitivamente mais potente e relevante, não se reduz a um acessório da ideologia, como reivindicou Gao Xingjian em seu discurso ao receber o Prêmio Nobel de Literatura no ano 2000. Trata-se de afastar a crítica do debate político? Das questões sociais mais prementes do nosso tempo?

Pelo contrário: a literatura e a crítica, atividades impuras e submetidas a diversos usos legítimos, sempre estiveram metidas no mundo da vida, da agitação social. A criação ficcional, em particular, já nasce como uma espécie de insubmissão à realidade; e seu poder de contestação social e política é evidente na história – basta lembrarmos que as instituições de poder (políticas, religiosas e mesmo filosóficas) sempre tentaram, através da censura, da repressão e da pregação moral, exercer o controle ideológico desses textos. A ficção nos insinua que outra configuração da realidade é sempre possível e, quem sabe, desejável; ela pode desestabilizar o senso comum, os valores incrustados socialmente, disseminando o dissenso e o espírito crítico através do aprendizado de uma espécie de ironia polimítica.

Tentarei ser mais claro: nosso contato com uma multiplicidade de narrativas, de histórias, de imagens, de valores, de linguagens, de discursos e, por fim, de modos de vida, nos confronta com a variedade incomensurável das possibilidades do humano – da experiência humana –, irredutível a qualquer discurso dogmático ou teoria pretensamente universalista, que se arvore a estabelecer de uma vez por todas uma verdade absoluta sobre o mundo ou sobre o sentido da vida. A ficção literária aceita de antemão sua natureza ilusória e limitada; as ideologias, por outro lado, tentam na maioria das vezes se impor como a versão final da História, o caminho necessário da humanidade.

Considerar a literatura simplesmente como uma ferramenta política a nivela ao exercício de pregação moral ou religiosa, só que agora substituída pelo proselitismo ideológico, que é a perversão da reflexão ética. E recaem nessa forma de redução empobrecedora todos os que tratam, ainda que com as melhores das intenções, as manifestações artísticas – seja um filme, uma pintura ou um texto literário – exclusivamente como meio de doutrinação político-ideológico, ou somente como um documento social, um espelho da realidade. Este último ponto merece aprofundamento: as narrativas literárias não podem ser compreendidas meramente como reflexos ou representações exatas da vida social ou individual; a arte literária acrescenta algo ao mundo, algo que não existiria sem a obra; ela não representa, mas apresenta um determinado real.

Para José Guilherme Merquior, a agudeza da arte literária é justamente a de afastar-se do mundo para dele dizer algo mais: “Por uma espécie de astúcia da mímese, a representação do singular logra significação universal” (MERQUIOR, 1972, p.8). Essa parcial autonomia em relação à realidade na verdade seria um tipo de estratégia para redimensioná-la, reavaliá-la sob outras perspectivas e sensibilidades. J. W. von Goethe já havia formulado uma visão análoga a partir de um aparente paradoxo: a arte seria a forma mais segura para a evasão do mundo; mas, por outro lado, não existiria maneira mais segura de se aferrar a ele.

O humanista italiano Nuccio Ordine, num belíssimo livro sobre a importância da leitura dos clássicos, explica que fingir é um termo muito rico semanticamente: significa, por um lado, dissimular ou, mais artisticamente, representar; mas também pode significar dar forma, modelar. Assim, um pintor, diz-nos Ordine, enquanto pinta “estaria fingindo o objeto que está plasmando” (ORDINE, 2017, p.160). Voltamos aqui à discussão tão antiga quanto persistente (pois insuperável) a respeito da relação entre forma e conteúdo em arte. O poeta só pode dizer “verdades” mentindo, quer dizer, performando e modelando a realidade através da fantasia e do trabalho artístico. O poeta “fingidor” de Fernando Pessoa nos dá uma dimensão muito clarificadora disso.

***

O esforço criativo de transcender o que chamamos “realidade” – a desrealização artística – deve nos conduzir para a volta ao real, mas já de maneira diversa. Ao afirmar uma irrealidade, a ficção da arte desrealiza o real convencionado, e mostra que o sentido habitual das palavras, dos valores e das formas de olhar o mundo são pendentes justamente das crenças que habitam as narrativas que carregamos conosco.

A literatura não diz verdades, ela apresenta possibilidade de mundos, de modos de ver, de considerar e de estimar as coisas. E isso não é pouco: assim concebida, ela se coloca contra todas as formas de compreensão monomíticas da realidade – seja política, ideológica, religiosa, filosófica ou científica. Nessa perspectiva, as narrativas, a fantasia, as metáforas e os símbolos são parte iniludíveis da condição de inteligibilidade desse mundo em que valores e fatos, estética e ética, conhecimento e compreensão, são interdependentes. O mundo-humano é complicado precisamente nesse sentido, tipos diferentes de “verdades” coimplicam, pois estão existencialmente entrelaçadas.

Aquilo que chamamos literatura, em suas mais variadas formas, independentemente das convenções artísticas e estéticas de cada época, vem contribuindo durante séculos, de forma constante, para a ampliação de nossa capacidade de imaginação moral e para uma visão crítica da vida, seja pessoal ou em sua dimensão social. Ela é capaz de nos tornar mais receptivos e sensíveis na medida em que recrudesce nossa compreensão da diversidade dos indivíduos e da diferença inconciliável entre seus desejos e necessidades.

A literatura, assim compreendida, não é somente um esforço de evasão ou de distração diante das durezas da vida; nem, por outro lado, a busca de um puro ideal de beleza. As narrativas literárias são um esforço, sobretudo em suas formas mais potentes, de inteligibilidade do mundo, mas por outros meios, diferentes dos da religião, da ideologia ou da ciência, ainda que se aproveitando, em sua essencial impureza, de todos eles.

Cabe aqui uma advertência à visão talvez demasiado otimista que apresentei acima: a ampliação da imaginação moral pela frequentação literária não é garantia de aprimoramento moral, mas, pelo menos, de uma maior consciência e reconhecimento das incongruências, deslizes, paradoxos e ambiguidades da vida moral, como bem pontuava o crítico literário norte-americano Lionel Trilling, numa provocação ao ingênuo otimismo e ao maniqueísmo dos liberais de seu país, que não sabiam, segundo ele, lidar com a ambiguidade e complexidade, por vezes contraditória, dos valores humanos. A boa literatura – e a grande arte em geral – ensina, entre outras coisas, que a vida não é tão simples, porque a iniquidade, o mal, o ressentimento, o sofrimento, a imperfeição, as perversidades, o preconceito e a tragicidade da existência constituem temas literários (e humanos) insuperáveis, além de inevitavelmente recorrentes.

A ficção sugere simultaneamente a prudência cética de encarar com reservas o que a linguagem diz; e, simultaneamente, ensina que a linguagem é condição de possibilidade do mundo, ou, pelo menos, de sua inteligibilidade. As narrativas, lidas literariamente – ou seja, irônica e antidogmaticamente –, nos ensinam a participar de várias histórias sem que fiquemos presos a nenhuma com exclusividade. Quem lê é rico precisamente nesse sentido.

O crítico literário, por sua vez, não deve ser confundido com algum tipo de sacerdote: ele não tem acesso privilegiado à Verdade sobre o texto, nem muito menos sobre o mundo; mas ele conta, ou, pelo menos, deveria contar, com um repertório grande de relatos, de histórias, com os quais – e entre os quais – pode estabelecer analogias e jogar luz sobre os novos textos e sobre as circunstâncias e formas de vida presentes.

Os debates em torno da natureza e missão da literatura – ou da crítica literária – quase sempre são malcolocados desde o princípio, porque partem de uma visão essencialista sem correspondência pragmática no mundo concreto: a literatura e a crítica não têm uma só missão, não são realizadas para atender a um só fim – são atividades humanas que vêm sendo desenvolvidas na história com muitos propósitos distintos e até contraditórios, incluídos aí os de natureza político-ideológica. Mas elas – literatura e crítica – jamais nos redimirão ou nos salvarão de nossos males, misérias e imperfeições, porque tudo isso também nos constitui. 

EDUARDO CESAR MAIA, crítico cultural, professor do Programa de Pós-Graduação em Letras e professor da graduação em Comunicação Social, ambos da UFPE.

HALLINA BELTRÃO, designer e ilustradora, mestre em Design Editorial.


REFERÊNCIAS

MERQUIOR, José Guilherme. Astúcia da mímese: ensaios sobre lírica. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1972.

ÓRDINE, Nuccio. Clásicos para la vida: una pequeña biblioteca ideal. Tradução de Jordi Bayod. Barcelona: Acantilado, 2017.

POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Motta. São Paulo: Cultrix, 1977

TRILLING, Lionel. A imaginação liberal: ensaios sobre a relação entre literatura e sociedade. Tradução de Cecília Prada. São Paulo: É Realizações, 2015.

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