Perfil

A trajetória nômade de um regente

Lanfranco Marcelletti Jr. transitou da carreira de pianista para a de maestro, tem atuado profissionalmente em vários países e agora assume a direção artística da Orquestra Sinfônica do Recife

TEXTO Carlos Eduardo Amaral

01 de Março de 2022

Lanfranco em uma de suas apresentações

Lanfranco em uma de suas apresentações

FOTO Thiago Neves/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 255 | março de 2022]

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Quem segue o maestro Lanfranco Marcelletti Jr. no Instagram ou no Facebook eventualmente se depara com vídeos em que ele transmite seus recados e comunicados em inglês, espanhol, italiano e português, ou com fotos legendadas em alguma(s) dessa(s) línguas – muitas vezes de momentos na cozinha. Desses idiomas, o inglês tem sido o predominante. Isso porque, no último dia 12 de janeiro, Lanfranco passou a morar em Lubbock, no oeste do Texas, cidade a meio do caminho entre Dallas e a capital do estado vizinho do Novo México, Albuquerque.

Entre maio e julho de 2021, Lanfranco participou de um processo seletivo para o cargo de diretor para estudos orquestrais da Texas Tech University, instituição que possui mais de 40 mil alunos, sediada em Lubbock. Em agosto, veio o resultado positivo e a consequente convocação para assumir a função, que consiste em ministrar as aulas do mestrado e do doutorado em Regência Orquestral e coordenar as duas orquestras da universidade: a sinfônica, formada por alunos da Escola de Música, e a de cordas, constituída de estudantes de outros cursos (non-music majors).

Ainda adaptando-se à nova residência, no momento da entrevista concedida à Continente por chamada de vídeo – 10 dias após desfazer as malas no Texas –, a meta do maestro naquele momento era “entender meu novo trabalho e criar meus objetivos, além dos do curso de Regência”. Em virtude da mudança, Lanfranco se desligou, no final de setembro de 2021, da Orquestra Criança Cidadã (OCC), no Recife, e da Orquestra Sinfônica de Aguascalientes, no México, as quais dirigia desde janeiro e setembro do ano anterior, respectivamente.

Os três últimos meses do ano passado serviram para a transição domiciliar internacional – embora seus três cachorros de estimação tenham continuado em Aguascalientes – e para a finalização das conversações com a Orquestra Sinfônica do Recife (OSR), que estava com sede vacante desde o início da pandemia, devido ao desligamento de Marlos Nobre do posto de diretor artístico e regente titular.

NOVA FASE NO RECIFE
Em meados de 2020, integrantes de uma comissão representativa de músicos da OSR sondaram Lanfranco acerca de sua disponibilidade. Sem poder sair do Recife e então dedicado exclusivamente à OCC, o maestro respondeu favoravelmente à consulta, mas foi preciso acontecer a transição de gestão no Poder Executivo municipal para as tratativas serem retomadas.

Segundo o maestro, a Fundação de Cultura da Cidade do Recife (FCCR) solicitou à comissão representativa uma lista tríplice, reduzida apenas ao nome de Lanfranco após votação interna em que recebeu os votos de quase todos os presentes, com uma abstenção. O maestro, porém, já havia sido aprovado pela Texas Tech University, enquanto as tratativas com o Recife transcorriam, e a comissão sugeriu que ele indicasse um adjunto.

A primeira e única pessoa em que pensou, conta, foi José Renato Accioly, também indicado por Lanfranco como seu sucessor na coordenação musical da OCC. Eles se conheceram em 1992, no Conservatório Pernambucano de Música (CPM), onde José Renato leciona Regência desde 1988, e se revezaram na condução das peças do concerto que marcou a retomada de atividades da OSR, em 18 de dezembro passado – nove dias após a Prefeitura do Recife anunciar oficialmente a dupla à imprensa.

A apresentação, com o Teatro de Santa Isabel lotado, deu igual espaço a peças do repertório standard e a composições e arranjos de músicos pernambucanos, assinalando uma diretriz artística que deverá se firmar ao longo de 2022. A primeira metade do programa contou com a abertura de As bodas de Fígaro, de Mozart; o Batuque, de Lorenzo Fernández, a suíte de O quebra-nozes, de Tchaikóvski, e o Intermezzo de Cavalleria rusticana, de Mascagni.

A segunda parte incluiu a Serenata do Capibaribe, de Maestro Duda (com o próprio autor na plateia, agradecendo a homenagem e elogiando os novos rumos da orquestra), um arranjo de canções de Natal feito por Dierson Torres e dois bises: o Mourão, de César Guerra-Peixe e Clóvis Pereira, e Último regresso, de Getúlio Cavalcanti, em arranjo de Nilson Lopes e com solo surpresa de Spok.

Caberá a José Renato conduzir a maioria dos ensaios e os concertos em que Lanfranco esteja cumprindo sua agenda no Texas ou como regente convidado em outras orquestras. O contrato dos dois regentes com a OSR, a princípio, é de um ano, e os planos da nova direção musical já se encontram em avaliação pela FCCR.

Esses planos incluem uma seleção simplificada para ocupação temporária de vagas (o concerto de dezembro, por exemplo, teve o reforço de pelo menos 10 instrumentistas de cordas da OCC, dentre alunos e ex-alunos do projeto social), a abertura de concurso público (menos de 50 das 95 vagas do quadro de músicos estão preenchidas) e a volta à realização de concertos semanais, incluindo em escolas e igrejas.

PASSADO PIANÍSTICO
Libriano nascido em 5 de outubro de 1964, Lanfranco iniciou seus estudos musicais aos 12 anos, em 1977, como aluno de piano da escola de música Studio, em Boa Viagem, próxima à casa onde morava. Sua primeira professora foi a proprietária da instituição de ensino, Maria Auxiliadora “Cilinha” Hazin. Cilinha também ensinava no CPM e é mãe da atual diretora-geral do Conservatório, Roseane Hazin – que se tornou uma irmã de criação de Lanfranco, que ingressou no CPM em 1979 e embarcou rumo à Europa em 1982.

O objetivo: graduar-se em Piano na Universidade de Música e Performances Artísticas de Viena, o famoso Conservatório de Viena, cujo primeiro diretor foi Antonio Salieri (1750-1825), imortalizado – injustamente, a bem da verdade histórica – como o invejoso rival de Mozart no filme Amadeus, de Miloš Forman (1932-2018).Sem embargo, sua orientadora, a paulista Maria-Regina Seidlhofer (1942-2022), assumira a cátedra de Música Sacra e Lanfranco optou pelo curso de Composição, passando a ter aulas particulares com Maria-Regina.

A graduação ficou incompleta, porque, da capital austríaca, Lanfranco partiu em 1985 para realizar o mestrado em Piano na Academia de Música de Zurique (vinculada à universidade da respectiva cidade suíça), enquanto estudava em particular com Jürg von Vintschger. Concluído o mestrado, em 1987, o destino foi a casa da avó paterna, Mafalda, em Ancona, capital da região italiana das Marcas, na costa do Mar Adriático – a mesma residência em que já passava as férias de verão e as principais datas comemorativas durante o período em solo europeu.

Mesmo cursando Composição, o foco de Lanfranco continuou sendo o piano, instrumento que estudou com professores particulares na Áustria e na Suíça. O futuro maestro chegou a ganhar o prêmio Jovens Solistas de Roma, em 1988, mas, no íntimo, alimentava dúvidas acerca de suas habilidades e escolhas. A morte de D. Mafalda, no ano seguinte, desencadeou-lhe de vez uma crise existencial, que o fez voltar ao Brasil.

TRANSIÇÃO PARA A REGÊNCIA
Deprimido, Lanfranco partiu para a casa da irmã Blenda, psicóloga, em São Paulo, e ainda insistiu um pouco mais com o piano. “Comecei as aulas com Daisy de Luca, mas vi que eu não seria o pianista que eu queria ser. Um dia, eu tive uma crise e disse que ia deixar a música. Daisy me botou num concurso da Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo). Na primeira fase fui bem; na final, tive uns ataques de nervos e me dei mal”, conta.

A oportunidade de mudar os rumos se deu em 1990, quando a própria professora Daisy de Luca o levou para as gravações do programa Primeiro Movimento, apresentado pelo maestro Jamil Maluf na TV Cultura. Lanfranco foi avaliado pela produção do programa e foi chamado para ocupar uma vaga de assistente de produção. “Eu tinha de ter as partituras e indicar para os câmeras qual instrumento entrar. Além de ser assistente, eu tinha de contactar os músicos, mandar carro, estar na gravação…”, detalha.

O novo trabalho o despertou para a regência e Lanfranco procurou o maestro Ronaldo Bologna (1937-2021), adjunto de Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) na Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo. “Inventei que eu estudava Regência em Viena. Ele começou a fazer uns testes e fui mal em tudo. Então ele perguntou ‘Por que não começamos do início?’” Lanfranco concordou, mas disse que estava trabalhando na televisão e queria fazer Psicologia.

Três meses depois, Bologna o indicou para uma vaga de regente assistente da Orquestra Jovem da Legião da Boa Vontade. “Quando regi, vi que eu não sofria tanto como quando eu tocava”, constatou. Mesmo assim, Lanfranco desistiu de tudo outra vez e voltou ao Recife – sob protestos do professor, que insistia “Você tem um futuro como regente!”.

A VOLTA A CASA
No Recife, a meta passou a ser estudar para o vestibular de Psicologia. No entanto, o próprio pai de Lanfranco o persuadiu do contrário. “Foi ele que notou: ‘Não se engane, você só vive escutando música. Não deixe a música’”, rememora. “Eu escutava música clássica desde os oito anos. Comecei ouvindo uma coleção de discos da revista Reader’s Digest que ele tinha; o primeiro era de música sinfônica”, acrescenta.

Lanfranco durante o concerto oficial da OCR, em 2011, na Igreja da Madre de Deus, no Recife. Imagem: Milton Raulino/Orquestra Criança Cidadã/Divulgação.

Duas oportunidades contribuíram para que sua trajetória musical não se encerrasse. Uma foi o cargo de professor de Piano no CPM, que assumiu por convite de Cilinha Hazin em 1991. A outra foi como maestro assistente da OSR, função na qual ficou um ano e meio, de 1992 a 1993. Sim, sua atual jornada com o grupo é a sua segunda passagem por ele (tal qual na OCC, que dirigiu inicialmente em 2011 e 2012).

Naquele período, conta Lanfranco, a pianista recifense Maria Clara Fernandes de Lima veio da Áustria para tocar com a OSR, mas houve um desentendimento entre os músicos e o maestro que conduziria aquele concerto. Dias mais tarde, Maria Clara e Lanfranco fizeram um recital no CPM e ela, agora sabendo da migração do amigo para a regência, tomou a iniciativa de propor à OSR que ele dirigisse o concerto, encerrando o impasse interno.

A apresentação aconteceu com a presença do futuro maestro titular, Diogo Pacheco, que convidou Lanfranco para o posto de assistente. Pacheco permaneceu no de titular apenas ao longo de 1992 e coube a Lanfranco conduzir o processo de transição nos seis meses seguintes, quando os músicos da OSR elegeram Carlos Veiga (1940-2011). Findada sua missão, Lanfranco encontrou abrigo novamente no CPM, graças a Cussy de Almeida, diretor da instituição na época e que lhe ofereceu a cátedra de Música de Câmara.

Uma nova meta se estabeleceu em 1994: realizar um curso de Regência com Eleazar de Carvalho (1912-1996). O primeiro encontro entre eles havia acontecido três anos antes, em João Pessoa, em um ensaio de um concerto da Orquestra Sinfônica da Paraíba em tributo ao regente irlandês Eugene Egan (1954-1991). Ao final do ensaio, Lanfranco procurou Eleazar e se apresentou: “Olá, maestro, eu sou um jovem regente”. Foi rebatido sem piedade, como era típico do sisudo, mas bem-humorado maestro cearense: “Quem disse que você é regente?”.

NA AMÉRICA DO NORTE
Com a mediação de Diogo Pacheco, agora assistente de Eleazar na Osesp, Lanfranco obteve o aceite para o curso e arrumou recursos para a viagem a Itu, no interior de São Paulo, onde pretendia passar um mês se aperfeiçoando. Ao cabo de duas semanas, porém, veio o convite de Eleazar para cursar, sob sua orientação, o mestrado em Regência, na Universidade de Yale (em New Haven, Connecticut, EUA).

O mentor faleceu em 1996. No entanto, Lanfranco não regressaria de imediato ao Brasil. “Me chamaram para um obter um diploma em Artes (uma espécie de pós-graduação lato sensu específica para aperfeiçoamento artístico), fiquei mais um ano, e aí apareceu um trabalho, outro trabalho, e acabei ficando 17, 18 anos nos EUA (de 1994 a 2011)”, conta o maestro, que rodou por Amherst (Massachusetts), Ithaca e Albany (Nova Iorque) – residindo nas duas primeiras cidades – e assistiu projetos ao lado dos maestros Alberto Zedda (1928-2017), Gustav Meier (1929-2016), Anton Coppola (1917-2020) e Stewart Robertson; o primeiro, na Itália, e os demais nos EUA.

Já em 2006, Lanfranco estabeleceu seus primeiros laços com o México, ao conduzir a Orquestra Sinfônica de Xalapa (OSX) como convidado. As idas à capital do estado mexicano de Veracruz se estenderam até 2011, de forma eventual. Em 2012, Lanfranco fixou residência em Xalapa até 2019, quando expirou seu contrato como diretor musical da OSX – não sem antes ter trazido a orquestra para uma turnê no Brasil (vide entrevista na edição #190 da Continente).

AMOR À COZINHA
A trajetória nômade de Lanfranco explica a sua poliglossia nas mídias sociais, da qual falamos no início, mas não o seu amor pela cozinha, despertado pelos pais: o italiano do qual herdou o nome e D. Lucimar. Ele, natural da vila de Angeli – no município de Rosora, a uma hora de carro de Ancona –, e ela, potiguar de Natal. Ambos comandaram a Karblen, um ícone das décadas de 1980 e 1990 no Recife.

O nome Karblen veio das duas irmãs de Lanfranco (voltamos a falar do filho maestro aqui): Karla e Blenda (um ano mais nova que Karla e cinco anos mais velha do que Lanfranco; este, por sua vez, dois anos mais velho do que o caçula, Aldo).. Na célebre confeitaria e lanchonete, os quatro tiveram contato com um sem-número de receitas de massas e bolos.

Contudo, somente Lanfranco, dentre os filhos, fez-se um mestre-cuca, motivado pela necessidade nos tempos em que viveu sozinho na Europa. “Quando estou agitado, a melhor coisa pra fazer é ir pra cozinha e cozinhar”, declara, confidenciando, inclusive, que pensou em abrir um restaurante em São Paulo, na época em que abandonou a carreira pianística.

Para Lanfranco, “o prazer de fazer é muito grande, é maior do que o de comer”, e isso abrange a ida ao supermercado, para escolher e comprar os ingredientes; os prolongados bate-papos via celular, enquanto organiza e prepara os pratos à beira da pia e do fogão; as leituras de partituras com as panelas ao fogo (“estudo em pé na cozinha, não na mesa”); a satisfação de receber visitas para um almoço, de levar um bolo para os músicos (como fez na OCC quando a pandemia estava mais contida) ou de compartilhar fotos de suas refeições mais caprichadas nas mídias sociais, para seus amigos e familiares no Brasil, no México, nos Estados Unidos e na Itália.

CARLOS EDUARDO AMARAL, jornalista e biógrafo especializado em música erudita.

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