Reportagem

A literatura como um direito humano

No Brasil, a leitura enfrenta a perda de leitores nos últimos anos, causada por fatores que estão associados à dificuldade de acesso aos livros

TEXTO VALENTINE HEROLD
ILUSTRAÇÕES KARINA FREITAS

01 de Março de 2022

Ilustração Karina Freitas

[conteúdo na íntegra | ed. 255 | março de 2022]

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“Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável.”

“A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.”
(Antonio Candido)

O ano é 1988. Ainda a passos lentos, marcado pelas mais de duas décadas de perseguições, torturas e cerceamento de liberdades, o Brasil tentava se reerguer do período sombrio da ditadura militar. Ayrton Senna celebrava seu primeiro título mundial no Grand Prix do Japão, a teledramaturgia fazia história com a novela Vale Tudo (e a icônica pergunta “quem matou Odete Roitman?”), ambientalistas choravam o brutal assassinato de Chico Mendes e o mundo da cultura perdia o cartunista Henfil e o comunicador Chacrinha, geniais em seus respectivos campos de atuação. Mas é possível que nenhum desses fatos históricos seja inicialmente lembrado quando pensamos naquele ano, pois outro episódio ficou marcado na memória coletiva do país como “o” acontecimento de 1988: a promulgação da Constituição Brasileira. Foi justamente naquele contexto de abertura política e investidas para construir uma democracia forte que Antonio Candido escreveu o célebre ensaio O direito à literatura, publicado pela primeira vez naquele ano e cujos trechos estão na epígrafe desta reportagem.

Professor, sociólogo e um dos nossos maiores críticos literários, Candido revolucionou o olhar para a literatura ao jogar luz sobre sua intrínseca relação com os direitos humanos. Este icônico texto é o fundamento e a síntese de sua análise transformadora. Em menos de 30 páginas, ele elabora uma defesa da literatura enquanto direito de todos e dever do Estado, além de retratar com clareza os porquês da leitura ser uma ferramenta de desenvolvimento social e instrumento necessário para o pleno exercício da cidadania. O direito à literatura é, de certa forma, também um manifesto, ainda tão contemporâneo, sobre a desvalorização do livro e dos leitores por parte do poder público no nosso país.

“Todos sabemos que a nossa época é profundamente bárbara, embora se trate de uma barbárie ligada ao máximo de civilização”, escreveu Candido no início do ensaio. As questões políticas nefastas remanescentes da ditadura e os imbróglios da transição para eleições presidenciais diretas não eram o único sinal da barbárie apontada pelo crítico. O Brasil lidava com inflação descontrolada, PIB estagnado, desemprego e uma imensa dívida externa. Ironia do destino ou tragédia anunciada, se conjugarmos essa última frase no presente ela permanece desgraçadamente atual. O paralelo socioeconômico é de devastação, mas o artístico também, pois estamos sendo governados por uma administração federal que não esconde seu profundo desprezo pela liberdade e pelo caráter emancipador da arte.

No contexto de extinção do Ministério da Cultura e constantes cortes de verbas para o campo artístico, encontramos o setor literário desamparado. E as consequências desse abandono já vêm sendo sentidas e medidas através de números, como o da perda de 4,6 milhões de leitores, apontada pela edição mais recente da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil.  Mas teria muita coisa mudado mesmo nos últimos anos ou nunca fomos, de fato, um país leitor? Antes de buscar compreender como chegamos até aqui e quais as consequências dessa lacuna histórica, é preciso voltar a Candido e exercitar um olhar generoso em relação à função social da literatura.

“Pensar em direitos humanos tem um pressuposto: reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o outro”, escreveu o crítico. A afirmação parece óbvia, quando associamos o adjetivo “indispensável” a direitos vitais como água, alimentação, moradia ou acesso à educação. “Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoiévski ou ouvir os quartetos de Beethoven?”, continua. Essa provocação é o ponto de partida para um esclarecimento sobre o que ele chama de bens compressíveis e incompressíveis, a partir dos conceitos elaborados pelo padre dominicano francês e progressista Louis-Joseph Lebret.

Um bem incompressível equivale às necessidades básicas de todo indivíduo e um compressível àquelas não são essenciais para a sobrevida humana. Algo aparentemente fácil de ser diferenciado, só que na prática da defesa pelos direitos humanos a teoria é outra, marcada por uma linha muito tênue entre sobrevivência física e espiritual, em que a fruição artística é assimilada como um poderoso instrumento de transformação social.

Voltemos ao ano de 2021, meses após a divulgação da quinta edição da Retratos da Leitura no Brasil. Promovida a cada quatro anos pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural, a pesquisa é um termômetro do comportamento do leitor médio brasileiro. Além de mapear dados estritamente atrelados à atividade leitora, como quantidade de livros lidos, preferências de autores, gêneros e formatos (digital ou papel), e de revelar essa distribuição por faixas etárias, gênero, renda, escolaridade e estados de origem, entre outros critérios socioeconômicos, a pesquisa, nas últimas duas edições, também se propôs a entender certos hábitos diários dos entrevistados e como eles podem influenciar ou atrapalhar no foco da leitura.

Perguntas como “Qual fator mais influencia o sr., a sra. na hora de escolher um livro ou autor para ler?”, “Quais atividades mais gosta de fazer em seu tempo livre?”, “Quais dificuldades encontra para ler?”, “Quem foi a pessoa que mais o/a influenciou ou incentivou a gostar de ler?”, “Seus pais ou alguém da família já lhe deu algum livro de presente?” , “Quais atividades passa mais tempo realizando na internet?”, entre muitas outras, nos fornecem preciosos insights sobre o comportamento de leitores e não leitores do Brasil. Mais do que nos permitir entender os hábitos de leitura, a Retratos nos ajuda também a entender o próprio Brasil através dos costumes literários de sua população. Principalmente ao compararmos os resultados desta última edição com as anteriores.

Os dados mais alarmantes são com certeza os da perda de leitores, da diminuição do gosto pela leitura conforme o avançar da idade e do aumento de tempo dedicado às atividades virtuais. Mas, afinal, o que é um leitor para os critérios da pesquisa? Esqueçamos a ideia de alguém que emenda um livro no outro, ávido por novos títulos. O conceito utilizado abrange toda pessoa que leu, inteiro ou apenas alguma parte, pelo menos um livro nos últimos três meses. Ainda assim, temos apenas 100,1 milhões de leitores em todo o país, ou seja 52% da população. A média de leitura por ano é de 2,55 livros inteiros e 2,41 livros em partes.

“Muitas pessoas nunca sequer tiveram a oportunidade de ler um livro de literatura. Ou porque não têm acesso, pois ninguém nunca os apresentou, ou porque realmente não conseguem compreender o que está escrito. Dos 67% que responderam que não gostam de ler, 40% afirmaram que têm dificuldade para entender a leitura. Não podemos esquecer que ainda temos no Brasil um alto número de analfabetos funcionais e isso tudo nos aponta para um problema estrutural que passa pela educação”, ressalta a pesquisadora e coordenadora da Retratos da Leitura no Brasil, Zoara Failla.  “A possibilidade de ser leitor é um direito roubado de muitos brasileiros desde a alfabetização. Uma coisa é quem realmente não gosta de ler, mas teve o direito dessa escolha; agora, é muito mais complicado para quem nunca nem teve a possibilidade de dizer se gosta ou não porque nunca recebeu o estímulo e as condições materiais e intelectuais para isso.”

Socióloga e gerente de pesquisas do Instituto Pró-Livro, Zoara está à frente da Retratos da Leitura desde seu início, em 2001. Ao longo desses 10 anos, ela vem acompanhando de perto não só os resultados de todas as edições, como também o panorama literário do país, e afirma que os dados recentes não foram de grande surpresa. “Olhando para os últimos quatro, cinco anos, verificamos um desmonte das políticas públicas do livro envolvendo as bibliotecas, a desarticulação do Plano Nacional do Livro e Leitura, o enxugamento dos orçamentos de grandes espaços e de projetos voltados para a leitura. Também não podemos esquecer que temos cerca de 60% das escolas públicas do ensino básico sem bibliotecas, um número muito alto. A justificativa é a falta de verba, mas sabemos que passa primeiro por uma vontade política. E, claro, temos a presença forte do uso do celular”, pontuou em relação ao panorama.

Os dados da terceira, quarta e quinta edições da pesquisa em relação ao uso do tempo livre só fizeram confirmar o que empiricamente já estava sendo observado no dia a dia: as redes sociais e os serviços de streaming têm ganhado um espaço cada vez maior na vida dos brasileiros. Em 2011, 24% das pessoas entrevistadas pela Retratos da Leitura responderam que gostavam de navegar pela internet nas suas horas vagas. Quatro anos depois, esse número subiu para 47% e pulou para 66%, em 2019. O aumento das horas no Whatsapp também foi bastante significativo, já que os 43% de 2015 passaram a 62% em 2019 (em 2011, ainda não existia o aplicativo). Enquanto o Facebook, Twitter e Instagram ocupavam o tempo livre de 18% das pessoas no ano da terceira edição, o dado pulou para 35%, na quarta, e para 44%, nesta última. Tempos não tão distantes em que, inclusive, o TikTok ainda nem reinava nos smartphones das crianças e adolescentes.

Em paralelo a essas pesquisas de cunho mais sociológico (como também a Brasil que Lê), outros estudos relativos ao cenário do livro chegam regularmente às notícias. É o caso do Painel do Varejo de Livros no Brasil e da Pesquisa de Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, ambos realizados em parceria entre Sindicato Nacional dos Editores de Livros e a Nielsen Bookscan Brasil. Respectivamente mensal e anual, eles também apontam dados atrelados ao comportamento dos leitores brasileiros, mas com foco mercadológico.

O interessante é perceber que, muitas vezes, os resultados do Painel do Varejo e da Retratos da Leitura parecem totalmente antagônicos. Enquanto uma nos revela um esperançoso e muito celebrado aumento nas vendas dos livros mês a mês, a outra lamenta uma grande perda no número de leitores. Para o professor, doutor em Filosofia e ex-secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura, José Castilho Marques Neto, as pesquisas de vendas de livros se relacionam às dos hábitos dos leitores, mas não podem ser confundidas. “Ter um aumento na compra de livros não significa que o brasileiro esteja lendo mais. E um futuro aumento no número de leitores também não irá, necessariamente, envolver aumento de vendas.” Poder de compra não necessariamente significa assiduidade. Nesta equação livreira, as bibliotecas e os empréstimos entre amigos têm uma presença importante.

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“Toda literatura representa uma ação cidadã, porque ela é memória. Toda literatura preserva alguma coisa que de outro modo morreria com a carne e os ossos do escritor. Ler é resgatar o direito a essa imortalidade humana, uma vez que a memória da escrita é abrangente e ilimitada.”
(Alberto Manguel, em Encaixotando minha biblioteca)

Para entender o tamanho do desafio que é tornar o Brasil um país realmente leitor, é preciso mais uma vez recorrer à  História. Não só para os caminhos apontados por Candido 33 anos atrás, como também para um tempo mais distante, lá no século XIX. Segundo as pesquisadoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman, autoras do livro A formação da leitura no Brasil (Editora Unesp), podemos situar no ano de 1840 o início de uma sociedade brasileira leitora. Recém-independente, o país ainda estava empenhado em se desvincular da imagem de colônia, mas já possuía meios (ainda que mínimos) para produzir e fazer circular jornais, livros e revistas produzidos aqui. 

Tipografias e bibliotecas fundadas ainda sob a corte portuguesa contrastavam, entretanto, com escolas ainda precárias, a falta de livros verdadeiramente nacionais e com o avanço do mercado leitor na Europa. Por lá, a popularização da leitura datava das revoluções burguesas iniciadas no século XVIII e com a chegada de máquinas às fábricas. Segundo Marisa, para poderem usar esses novos instrumentos de trabalho, os operários precisavam ler as instruções, daí o desenvolvimento da leitura que veio a seguir. Por aqui, a tradição oral ainda tinha muita força e a alfabetização era luxo. O abismo social e racial entre quem era permitido estudar e quem era marginalizado já se instaurava.

Além de estarem em total descompasso com a realidade local, as obras trazidas para o Brasil com a chegada da família real em 1808 não eram nada novas. Em 1810 foi fundada a Biblioteca Nacional, então chamada de Biblioteca Real, aberta ao grande público quatro anos depois. Imponente, requintada e muitíssimo elogiada por estrangeiros de passagem pelo Rio de Janeiro, a biblioteca era um local ímpar.

Dentre seus frequentadores, estava o missionário norte-amerciano Robert Walsh. “Passei grande parte do meu tempo nesse nobre estabelecimento, e não o considero inferior a nenhum outro similar na Europa, tanto no tamanho quanto na amplidão das acomodações”, escreveu. Já a preceptora da princesa Maria da Glória, a inglesa Maria Graham, apontava para a carência de obras atualizadas: “Há algumas belas obras de história natural; mas, com exceção dessas, nada moderno; raramente um livro que tenha sido comprado há menos de 60 anos”. A falta de títulos nacionais talvez tenha passado despercebida aos olhares estrangeiros, mas é pontuada por Marisa e Regina no livro. Hoje gerida pelo governo federal, a mais antiga instituição cultural brasileira sofre com cortes de verbas e teve, nos últimos 10 anos, seu orçamento reduzido em 46%.

A crítica à falta de livros nacionais nas bibliotecas também era direcionada aos currículos escolares e o “abrasileiramento” da literatura, principalmente nos livros didáticos, vai acontecer somente do meio para o fim do século XIX, tendo o intelectual paraense José Veríssimo, fundador da Academia Brasileira de Letras, como um dos grandes defensores do antilusitanismo. Aqui também é preciso citar José de Alencar, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Euclides da Cunha e Maria Firmina dos Reis que, entre outros autores, retrataram com perspicácia em seus romances o Brasil que estava se formando nesse período da pós-abolição. É nessa mesma época que surgem com mais regularidade as publicações voltadas ao público infantil, como folhetins e revistas em quadrinhos.

Para Marisa Lajolo, que também é autora de livros infantis, professora de Literatura na Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisadora de Literatura Brasileira há mais de 50 anos, a educação está no centro dos problemas e das soluções da formação de jovens leitores. Já em 1996, na primeira versão de A formação da leitura no Brasil, ela escreveu junto a Regina que “o futuro escritor – e com ele, quantos leitores? – está fadado a ler na clandestinidade. Com efeito, raras vezes as leituras que produzem prazer circulam num ambiente sancionado, como a escola. (...) Essas leituras são clandestinas, porque nada têm de pragmáticas. A escola, prática e aplicada, considera-as indesejadas e bane-as, estabelecendo-se uma dicotomia intransponível e inconciliável. Se a escola patrocinar leituras que atendam apenas à imaginação e ao gosto, rompe o pacto educacional; se evitá-las, torna-se detestável (...)”.

Difícil não lembrar de Clarice Lispector e de sua memória literária de infância tão lindamente retratada no conto Felicidade clandestina. Após muito ir atrás, ela consegue emprestado um livro que estava ansiosa para ler e recebe, da mãe de sua amiga, a autorização para ficar com a obra o quanto quisesse antes de devolvê-la. “Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.”

Ou ainda pensar no jovem Professor, personagem criado por Jorge Amado em seu clássico Capitães da areia, um menino pré-adolescente que, pelas circunstâncias e abandonos da vida, teve que crescer antes da hora. A leitura, para ele, sempre foi esse espaço de refúgio. Ele furtava tudo para vender e comprar comida, só que o destino dos livros roubados era em um lugar bem-guardado, no trapiche onde dormia.

Após 25 anos, a análise de Marisa continua centrada na escola enquanto maior formadora de leitores, mais do que a família. Mas ela acredita que esse desencanto pelos livros entre os jovens acontece a partir do Fundamental II, momento em que a educação se torna mais canônica e impessoal, daí também uma explicação para um dos resultados surpreendentes da Retratos da Leitura que é o da faixa entre os 5 e 10 anos representar a maior porcentagem dos que dizem que gostam muito de ler. “Sendo realista, a escola continua com esse protagonismo. Claro que depende muito das famílias e das comunidades, mas se pensarmos no instrumento pedagógico mais disseminado na sociedade brasileira, temos as escolas. Agora, a prática da leitura é algo que vai mudando ao longo da vida. Atualmente, tenho achado interessante a presença dos booktubers! Eles têm quase a mesma idade dos jovens que queremos tornar leitores, se expressam de uma maneira que gera identificação e falam dos livros de jeitos muito diferentes dos professores”, aponta a pesquisadora.

Ex-aluna e orientanda de Antonio Candido quando foi estudar na USP, nos anos 1960, Marisa reverbera o pensamento do mestre até hoje em sua prática docente e em sua visão de mundo para com a defesa da literatura enquanto direito humano. “Lembremos que o direito à literatura inclui também o direito de escolha do que ler. A abolição das políticas do livro e o atual projeto de taxação são instrumentos de uma elitização inaceitável das práticas leitoras”, defende.

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“Nas mãos de um leitor, um livro pode ser fator de perturbação e mesmo de risco. Daí a ambivalência da sociedade em face dele, suscitando por vezes condenações violentas quando ele veicula noções ou oferece sugestões que a visão convencional gostaria de proscrever.”
(Antonio Candido)

Em maio de 1933, diversas cidades alemãs foram palco de uma queima pública de livros, episódio que iria se repetir ao longo dos anos subsequentes e que tem até um verbete próprio em alemão, Bücherverbrennung, de tão marcante que foi essa prática no período nazista. Era o começo do regime, iniciado com a chegada de Hitler ao poder apenas quatro meses antes, tendo sido a ação capitaneada pelo então ministro da Propaganda, Joseph Goebbels – a mesma figura que inspiraria o ex-secretário de Cultura do Brasil, Roberto Alvim, escolhido a dedo pelo presidente Bolsonaro em novembro de 2019.

Alvim durou pouco no cargo, sendo exonerado em janeiro de 2020 devido à repercussão negativa de um discurso que fez parafraseando Goebbels e referenciado o nazista com diversos elementos estéticos. Uma dessas queimas de livros dos anos 1930 que ficou para sempre marcada na história de Berlim é retratada com grande emoção no best-seller A menina que roubava livros (2007), de Markus Zusak. Esse mesmo gesto de repúdio aos livros havia sido referência para outra grande obra de ficção, que também toca no tema da censura literária por parte dos regimes totalitários, a distopia Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

No Brasil, livros também já foram alvos da fogueira dos reacionários, como aconteceu em 1937 quando, numa praça de Salvador, cerca de mil exemplares do já citado Capitães da areia foram queimados pelo Estado Novo de Getúlio Vargas devido ao caráter socialista da obra. E poucas décadas depois, a ditadura militar instaurou um sistema de censura que resultou na circulação clandestina e até mesmo no apagamento de incontáveis obras.

Agora, outra forma de ameaça contra o acesso livre à leitura paira no ar com o projeto de taxação do Ministério da Economia. Em julho de 2020, o ministro Paulo Guedes propôs uma reforma tributária que inclui a criação de um novo tributo. Para substituir o PIS e a Cofins – que hoje não são cobrados sobre os livros –, seria aplicada a Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), com uma alíquota de 12%. Com a mudança, os livros voltariam a perder isenção à cobrança de imposto o que, claro, acarretaria em um aumento no valor do produto comprado pelo consumidor. 

A relação do mercado do livro com o sistema tributário é uma verdadeira peleja que teve início em 1946. Na época, Jorge Amado liderou o debate que culminou a favor da isenção de impostos sobre o papel utilizado na impressão de livros, revistas e jornais, prevista na Constituição Democrática. Em 1967, essa imunidade foi ampliada para o próprio objeto livro e assim permaneceu até 1988, quando a Constituição reiterou a jurisprudência. Por último, houve a lei promulgada em 2004, que reduziu a zero a alíquota do PIS e da Cofins nas vendas de livros. Conquistas realizadas a passos lentos e com o envolvimento de muita gente, que estão agora ameaçadas novamente.

“Esse projeto de taxação gerou um grande debate sobre o impacto que esse aumento de preço causaria. Claro que nós, editoras, somos totalmente contra pois nos preocupamos com o futuro do mercado do livro. Essa alíquota de 12% acabaria sendo maior no preço de capa, representando um aumento de cerca de 20%”, explica a vice-presidente do Grupo Editorial Record, Roberta Machado. “Tudo influencia no custo de produção de um livro, desde a energia elétrica gasta na impressão até o preço da gasolina para o envio dos exemplares, passando pela alta do dólar, que está ligada à compra do papel e aos contratos de direitos autorais, no caso de livros traduzidos. É uma conta que envolve toda uma cadeia! Em 2004, quando entrou a alíquota zero, conseguimos diminuir bastante o preço do livro e observamos que isso acarretou um aumento de vendas, numa democratização maior da leitura.”

“É um desafio viver de vender livros, mas são em momentos como esses que estamos passando, tão duros, que vemos o quanto a arte nos salva”, continua. “Falando do que percebemos durante a pandemia, foi interessante ver um aumento na procura por obras de fantasias, clássicas, distopias e também de ficção nacional, escolhas bem significativas, que nos mostram o quanto a literatura está sempre em diálogo com a atualidade.”

Para entender como é definido o preço final de um livro, existe uma conta fácil de ser feita e que, para Roberta, é importante de ser propagada. Cerca de 50% do valor fica para os pontos de venda, 15% são destinados às despesas administrativas, outros 15% aos custos gráficos, 10% vão para os autores e os últimos 10% compõem o lucro da editora.

A atual proposta do Ministério da Economia chegou a surpreender muitos leitores que sequer sabiam que já existia essa isenção. A repercussão nas redes sociais nas semanas que seguiram o anúncio do projeto ecoou em todo o país, assim como muitas críticas ao já elevado preço do livro. Essa resposta por parte das entidades livreiras, de autores, profissionais do mercado do livro como um todo e da sociedade civil foi tanta que o texto não foi, até hoje, apreciado pelo Congresso. Em cerca de três meses, 1 milhão de assinaturas eletrônicas contra a taxação foram colhidas e entregues ao Senado. O projeto não é levado adiante, mas também não sai de vez da pauta.

“Nós não podemos entender esse projeto de taxação de maneira estanque, separada do conjunto do ataque destrutivo à cultura que está acontecendo nesse governo. É um item fundamental, porque mexe com o bolso dos brasileiros e com a sustentabilidade econômica da indústria editorial, mas ele faz parte de um conjunto de destruição ao pouco que ainda se construiu pela formação de leitores no Brasil. Não se pode esquecer que a primeira coisa que governos tiranos fazem é cortar a palavra”, analisa o ex-secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura, José Castilho Marques Neto. “Após o Golpe de 2016, como o impeachment da presidenta Dilma, na primeira semana do governo de Michel Temer tivemos dois atos importantes nesse caminho. Ele suprimiu o Minc e,  por pressão da sociedade, acabou voltando atrás, mas com um detalhe, rebaixando a Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas a um departamento.”

Nesse fluxo de sucateamento tido por muitos analistas como um projeto político contra a cultura, a visão que os atuais governantes têm da literatura preocupa tanto quanto suas ações. Ao defender o projeto de taxação, Paulo Guedes justificou a alíquota afirmando que quem paga por livros hoje no Brasil já seriam os mais ricos, então não haveria muita diferença na prática. Uma falácia que vai de encontro com a ideia elitista que a literatura é, em sua essência, voltada para quem tem mais renda.

“É uma alegação de um absoluto distanciamento do que é o Brasil”, contesta Castilho que, além de ter atuado com protagonismo na criação do Plano Nacional do Livro e Leitura, já dirigiu a Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. “É um absurdo enorme dizer que são os ricos que mais compram livros quando a própria pesquisa Retratos da Leitura nos mostra o contrário. Essa afirmação de Guedes foi de uma perversidade imensa, uma versão contemporânea da afirmação de Maria Antonieta mandando o povo comer brioche na falta de pão.”

Apostando na ciência para combater os argumentos rasos do ministro da Economia, o setor livreiro tem nas pesquisas uma poderosa ferramenta para construção de futuras políticas públicas. Dentre as informações mais substanciais da quinta edição da Retratos da Leitura no Brasil estão as que dizem respeito ao papel das bibliotecas e dos mediadores na formação de leitores e do quanto se precisa investir neles. Apenas 7% dos entrevistados afirmaram que sua principal forma de acesso ao livro é através do empréstimo em bibliotecas públicas ou comunitárias. A maioria também (56%) enxerga a biblioteca como um local voltado para os estudos, e não como um espaço público de fomento às atividades culturais.

Para Castilho, as bibliotecas são a maior e mais capilarizada rede de equipamento público cultural do país. Ou pelo menos deveriam ser. “Em um país com as dimensões do nosso e com uma pobreza ainda persistente, o acesso a um bem e a um direito como o livro depende muito do funcionamento de instituições públicas. E aí a comparação com a saúde é inevitável: o que seria do Brasil se, anos atrás, o SUS não tivesse sido transformado em política pública? Entendemos que a biblioteca é um equipamento cultural que fornece muito mais do que um livro emprestado, é um local de encontros, de debates, de formações, de preservar e publicizar a cultura. É um patamar e um local de transmissão de conhecimento e quem faz a cultura é a população. Então o que precisamos fazer aqui? Primeiro, voltar a rejuvenescer essas bibliotecas através de ações integradas dos eixos do Plano Nacional do Livro e Leitura. Não adianta só abrir as portas e passar um detergente para o piso ficar cheiroso”, defende o ex-secretário executivo.

Hoje, completamente desmobilizado, o PNLL foi criado em 2006 e é chamado por José Castilho de “pacto social” por conseguir conciliar os três níveis da federação e a sociedade civil. Elaborado a partir da escuta de demandas de bibliotecários, educadores, pesquisadores, empresas, governos estaduais e prefeituras, ele é formado por programas e projetos seguindo quatro eixos principais costurados pela democratização do acesso à leitura. O plano foi um marco que, em 2016, resultou na solicitação da lei da Política Nacional de Leitura e Escrita, instaurada dois anos depois.

De toda essa efervescente movimentação iniciada na metade da década 2000, nasceram programas emblemáticos, como o Vale Cultura (descontinuado em 2016), e grandes incentivos para a criação e manutenção de bienais e outras feiras literárias. Nos primeiros anos de implementação do PNLL, principalmente entre 2008 e 2010, a crença no projeto resultou em um aporte financeiro de cerca de R$100 milhões, investidos em reformas de bibliotecas, formação de agentes de leitura e promoção do Brasil em feiras literárias internacionais, entre muitas outras ações. Hoje, esses avanços parecem bem longínquos.

“Quando foi sancionada, a Política Nacional de Leitura e Escrita previa sua implementação a partir de 1° de janeiro de 2019, mas aconteceu o que acontece com grande parte das leis que afirmam nossos direitos de cidadãos: nada. Vindo de um governo que suprimiu e continua suprimindo todos os nossos direitos, inclusive nosso direito maior, que é o direito à vida, não devemos esperar nada de positivo. Devemos manter a resistência da sociedade civil e esperar um novo período político para que possamos implementar a lei e retomar nossos planos. Quando a situação histórica virar – e vai virar! –, novas iniciativas vão ocorrer e sempre terão o PNLL como ponto de partida”, contextualiza.

Outras demandas do setor livreiro ligadas a políticas públicas estão há anos e anos na pauta. A redução do IPTU para livrarias e o preço fixo do livro são duas delas, realidade já em muitos outros países. Espanha, Alemanha, Portugal, Coreia do Sul, Grécia, Japão e nossos vizinhos latinoamercianos Argentina e México são algumas das nações onde o preço único do livro é lei. São pouquíssimas até agora, menos de 20 no mundo todo, e uma das pioneiras nesse debate foi a França, que, em 1981, instituiu a Lei Lang, nomeada em homenagem ao então Ministro da Cultura, Jack Lang.

Já na época as discussões acerca da concorrência desleal de grandes redes em relação às pequenas livrarias estavam acaloradas e culminaram na instauração da lei que determina que o preço das editoras deve estar impresso na capa ou contracapa da obra e que o máximo de variação permitida é de 5% em cima daquele valor.

No Brasil, a movimentação acerca desse tema é liderada pela Liga Brasileira de Editores e pela Frente Parlamentar Mista em Defesa do Livro, Leitura e Biblioteca, na Câmara dos Deputados, que já redigiu inclusive o projeto da Lei do Preço Fixo ou Comum. O PL 49/2015 se baseia na bibliodiversidade e, apesar de bem-estruturado, ainda precisa ser amplamente divulgado.

Outra experiência além-mar única é o programa Books in Prescription, política pública de saúde inglesa baseada na biblioterapia. Desde 2013, pacientes portadores de doenças psíquicas recebem orientação médica para diminuir a medicação – ou até mesmo tirar, nos casos mais leves – e substituir antidepressivos e ansiolíticos por livros. O destino final após a consulta não é mais a farmácia e, sim, a livraria, com receita indicando as recomendações de leituras.

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“O prazer de ler um livro amortecia humilhações (...) Um livro trazia um mundo diferente dentro do qual eu podia entrar. Um livro era uma terra justa. Entre o mundo dos livros e a realidade, ia uma colossal distância. Os livros podiam conter sordidez, malevolência, miséria extrema, mas, a um certo ponto, havia neles uma redenção qualquer.”
(Isabela Figueiredo, em Caderno de memórias coloniais)

Na ausência de ações unificadas do governo federal, alguns governos locais vêm se esforçando no estímulo à leitura e no apoio a projetos de formação. Planos estaduais e municipais do Livro, Leitura e Literatura garantem direitos básicos e ações continuadas em diversos lugares do Brasil, mas ainda são movimentos tímidos em comparação à força das políticas públicas nacionais. A verdade é que ainda falta vontade política e muito orçamento para ir além.

A sociedade civil, com resistência e resiliência, acaba preenchendo essa lacuna e as bibliotecas comunitárias são um grande exemplo disso. O pedagogo pernambucano Gabriel Santana é autor, junto a André Cervinskis, da pesquisa Mapeamento das bibliotecas comunitárias de Pernambuco, iniciada em 2014, com financiamento do Funcultura. Ao longo de quatro anos, a dupla percorreu 10 cidades do Estado, do Litoral ao Sertão.

“Queríamos mapear experiências de leitura que estivessem fora da gestão pública mas, com nossos resultados, poder contribuir para o Estado pensar suas políticas públicas de leitura. Esses diagnósticos costumam incomodar os gestores, porque eles se veem confrontados com o tanto que falta a ser feito. Em muitas cidades, os prefeitos e secretários costumam enxergar política de leitura apenas como compra de livros”, relata Santana.

“Uma biblioteca comunitária tem uma concepção fluida que envolve muito mais do que empréstimo de livros e contações de histórias. Ela exerce uma função articuladora para com a comunidade e de acesso a informações relevantes no dia a dia dos moradores, como reunir contatos de costureiras, carpinteiros, ter uma conexão de internet à disposição e por aí vai. A biblioteca comunitária fomenta uma identidade local, valorizando uma raiz comum a partir de uma experiência de gestão compartilhada. Isso é valiosíssimo”, dimensiona o pesquisador.

Gabriel reconhece o PNLL como estimulador direto de muitos projetos sociais envolvendo o incentivo à leitura. Em 2007, um ano após a criação do Plano, ele fez parte da fundação da Releitura, uma união de bibliotecas comunitárias da Região Metropolitana do Recife, hoje integrada numa ampla rede nacional. A Biblioteca Popular do Coque, uma das mais conhecidas na capital pernambucana, foi fundada há quase 15 anos pela pedagoga Maria Betânia com a ajuda de seu filho, Rafael Andrade, que também participou da criação da Releitura.

Em 2007, quando tudo começou, não havia biblioteca no bairro, “até as das escolas estavam fechadas”, lembra Rafael. “Fundamos o espaço a partir de uma demanda da própria comunidade, que queria um lugar onde as crianças pudessem socializar. Hoje, nosso acervo é composto por títulos para todas as idades, mas o foco maior é na literatura infantil e juvenil. Ainda assim, temos atividades para todo mundo, pois entendemos que a biblioteca comunitária não pode estar desconectada dos problemas da comunidade. Fome, saneamento básico, condições sanitárias dentro de casa, acesso à internet… como poder ser leitor e investir tempo na leitura quando se está tomado por esses problemas?”, questiona.

Uma análise que conflui com a do direito à literatura de Antonio Candido, quando escreveu que “em princípio, só numa sociedade igualitária os produtos literários poderão circular sem barreiras, e neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil, onde a maioria da população é analfabeta, ou quase, e vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura. Por isso, numa sociedade estratificada deste tipo, a fruição da literatura se estratifica de maneira abrupta e alienante”.

Hoje, a Biblioteca Popular do Coque tem parcerias com um instituto privado que ajuda Maria Betânia e Rafael na manutenção do espaço. Foram alguns primeiros anos na base do voluntariado e de muita dedicação. Ao longo dos últimos 14 anos de atuação na biblioteca, Rafael pontua que a maior mudança foi o reconhecimento por parte dos moradores do espaço como central na comunidade. Ele observa que um dos grandes impactos positivos foi ajudar jovens a escolherem cursos técnicos e graduações, além de acompanhar o surgimento de autores dentre os frequentadores do espaço.

Toda essa discussão envolvendo a importância da leitura e de sermos um país leitor passa por fortes questões políticas e sociais, mas há aí um caráter de fruição que também é central. O prazer em escolher um novo livro e ter ao menos alguns minutos para se dedicar aquele universo ficcional é incomparável. Mas, às vezes, predomina uma sensação de isolamento que parte da solitude da atividade leitora.

A necessidade de conversar com outros leitores e partilhar experiências é comum e vem alimentando centenas de clubes de leitura Brasil afora. Um clube expressivo no Brasil contemporâneo é o Leia Mulheres, criado em 2015, em São Paulo, pelas amigas Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques. Rapidamente a ideia seduziu outras mulheres apaixonadas por literatura de autoria feminina de diversas localidades e hoje acontece mensalmente em mais de 100 cidades brasileiras. As mediadoras do clube são todas voluntárias e os encontros, totalmente gratuitos, características que Juliana Gomes faz questão de ressaltar.

“A democratização da leitura é muito importante pra gente, evitamos escolher um livro que custe mais de R$50 e prezamos por um ambiente de troca igualitária e respeito. Um clube de leitura não tem nada a ver com uma aula, é uma conversa, um intercâmbio de experiências de leitura que quase sempre estão associadas à história de vida de cada leitora, cada leitor”, pontua a fundadora e ativista pela leitura, que há 25 anos trabalha com literatura. “Ouvir outras pessoas sobre um livro que acabamos de ler potencializa a apreciação da obra e nos estimula a querer ler mais. Acredito que o aumento desses clubes também vem mexendo nos papéis dos autores, que precisam agora se acostumar com esses críticos que não são acadêmicos. O foco é no leitor, que sempre foi protagonista, mas por muitos anos visto como coadjuvante no mercado do livro.”

Em meio a essa mudança de paradigmas está a internet. Quando compartilhada com amigos e desconhecidos, em plataformas virtuais, a leitura parece ganhar uma força afetiva renovadora e revolucionária. A recente popularização das redes sociais e o consequente boom de perfis e canais dedicados a resenhas de livros no Instagram e no YouTube colocou os leitores no centro do debate.

Mais recentemente, o TikTok e o Twitch vêm igualmente se revelando populares palanques para a criação de conteúdo sobre livros e também para negócios. Existem já muitos influenciadores digitais deste nicho, com milhares de seguidores e contratos fechados com grandes editoras, como é o caso da booktuber Tatiana Feltrin, com mais de meio milhão de inscritos em seu canal, e Pedro Pacífico, jovem advogado que faz resenhas para uma comunidade de quase 400 mil pessoas no Instagram. Perfis voltados à literatura nessas redes acabam cumprindo um papel muito instigante na formação de leitores, em um diálogo pessoal e interações diretas. A paulistana Livia Piccolo é uma dessas criadoras de conteúdos com um percurso que começou no teatro e no cinema, se estendeu pela literatura e agora agrega essas três frentes de atuação na internet. À frente do canal da editora Antofágica no YouTube, Livia também pensa e escreve sobre literatura no seu Instagram e dá cursos sobre a arte das narrativas.

“A leitura é a melhor ginástica cerebral. Nascemos com genes que nos preparam para falar, mas não para ler, então ler é uma tremenda aventura, um esforço grande que nos faz olhar tudo de maneira mais complexa, mais rica. E por isso mesmo o livro exige que a gente esteja 100% no momento presente, focado. O que é meio paradoxal em relação ao nosso modo de vida atual, com estímulos o tempo inteiro, muitas demandas aceleradas, com nossa atenção sempre em disputa. Mas não acho que redes sociais e leitura sejam incompatíveis, muito pelo contrário, vejo comunidades de leitores sendo criadas no ambiente virtual. Agora, com certeza, é um desafio”, avalia.

Para Livia, um dos maiores erros envolvendo a prática leitora e a internet são as comparações com a aparente produtividade e ritmo de leitura dos outros internautas. “Ou a gente se sente uma porcaria porque está lendo menos, o que é falso, ou superior, o que é também falso. Comparações de um modo geral já são tóxicas e, em se tratando de leitura, que é uma atividade que deve ser prazerosa e focada nas demandas pessoais de cada um, elas são ainda mais perigosas. Cada leitor tem seu ritmo e devemos respeitar a qualidade da nossa leitura, não focar na quantidade.”

São inúmeros os caminhos a serem trilhados na construção de um Brasil de leitores. Alguns já foram desbravados e estão apenas à espera de serem retomados, outros já levaram um incontável número de leitores à linha de chegada. Mas ainda falta um tanto para ganhar novamente os 4,6 milhões perdidos nos últimos anos e conquistar mais e mais brasileiros na paixão pela leitura. Os caminhos podem ser múltiplos, terem como paradas as bibliotecas públicas, as escolas, projetos comunitários, livrarias, bienais e clubes, mas todos passam pela compreensão da literatura enquanto um bem social imprescindível e construído de forma coletiva. Voltando a Antonio Candido mais uma vez: “negar a fruição da literatura é mutilar nossa humanidade”.

VALENTINE HEROLD, jornalista, repórter de cultura e literatura.
KARINA FREITAS, designer, ilustradora e especialista em Projetos Digitais.

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