Entrevista

“O futuro já é ancestral”

O pianista pernambucano Amaro Freitas comenta sobre o disco 'Sankofa', processos de estudo, criação e recepção de sua obra na pandemia, e sobre a amplitude da diáspora negra

TEXTO Camila Estephania

01 de Setembro de 2021

Amaro Freitas traduz busca espiritual em novo ábum

Amaro Freitas traduz busca espiritual em novo ábum

Foto Jão Vicente/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 249 | setembro de 2021]

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Amaro Freitas considera mais valiosas as pequenas coisas da vida, como poder tomar o café preparado pelo pai de manhã ou contemplar a natureza. Seu conceito de privilégio é ter alcançado o reconhecimento mundial pelo seu trabalho no jazz sem precisar se mudar do Recife, onde deseja permanecer próximo da família e dos amigos. Porém, depois de quase cinco anos viajando com seus shows, o pianista agora também é um homem do mundo. Seu encontro com as culturas negras de outros estados e países o fez acessar uma camada mais profunda da sua identidade. O resultado é a busca espiritual que ganha forma de som em Sankofa, lançado em todas as plataformas digitais em junho, com patrocínio da Natura Musical e realização da 78 Rotações. O disco também chega ao mercado internacional através do selo inglês Far Out.

O ponto de partida do trabalho é a descoberta do símbolo adinkra, que dá nome ao álbum e é representado por um pássaro místico que voa com a cabeça voltada para trás. O desenho estampa a bata que Amaro comprou de um senegalês durante sua visita ao bairro nova-iorquino do Harlem, em 2019. O figurino foi usado na sua apresentação no Lincoln Center, dentro da programação do Brasil Summerfest daquele ano, e a imagem logo foi reconhecida pelos brasileiros nas redes sociais. “Sankofa me mostrou o quanto a nossa diáspora está espalhada pelo mundo e que onde eu chegar estarei em casa, porque sempre terá um meu”, observou ele em entrevista concedida à Continente, através da plataforma Zoom. Ao lado de outros signos de origem africana, a figura também compõe a indumentária usada por Amaro na pintura do Acidum Project para a capa do disco.

Constatar que há uma linguagem simbólica e comportamental comum a negros de diferentes nacionalidades é o tipo de experiência preciosa que motiva o músico a compor tal qual a mensagem por trás da sankofa: avançando, mas sem esquecer o passado que o trouxe até aqui. Autor de Sangue negro (2016) e Rasif (2018), nos quais traduziu ritmos da cultura popular como o coco, o frevo e o maracatu para a linguagem do trio de jazz, Amaro sentencia que “o futuro já é ancestral”. Com Jean Elton, no baixo acústico, e Hugo Medeiros, na bateria, o pianista pernambucano comanda uma obra nada convencional, explorando técnicas como atonalismo, polifonia, polirritmia e isorritmia.

Essas características musicais inseriram Amaro numa nova geração de músicos responsáveis pela renovação do estilo mundo afora. Ao lado de nomes como Shabaka Hutchings, United Vibrations e Nubya Garcia, que integram a celebrada cena de Londres, o pernambucano busca romper a ideia de que o jazz é um segmento de elite e ganha cada vez mais destaque internacional ao aproximá-lo da cultura negra brasileira. “Suas mãos carregavam histórias e verdades em cada frase. Sankofa seria sua última oferenda na jornada em direção à grandeza. Um rei”, definiu o trompetista norte-americano Christian Scott, depois de ouvi-lo no Montreux Jazz Academy.

No novo álbum, a abordagem regional dos trabalhos anteriores cede o protagonismo para celebrar a vida e a liberdade de expressão afro-americanas de um modo geral, como em Baquaqua. A faixa, escolhida para ser o primeiro single de Sankofa, homenageia a história de Mahommah Gardo Baquaqua que, após fugir para Nova Iork em 1847, tornou-se o único escravo africano a publicar um relato autobiográfico sobre a escravidão no Brasil. Outras músicas, como Vila Bela e Nascimento, celebram outros heróis nacionais, como a líder quilombola Tereza de Benguela e o músico Milton Nascimento, respectivamente.

A composição sobre o cantor mineiro veio inspirada pelo encontro entre os dois em 2020, quando Amaro tocou na regravação dele para Drão, de Gilberto Gil; e nas versões de Não existe amor em SP e Cais que integraram o projeto Existe amor, de Milton e Criolo. Mesmo tomado pela emoção de estar ao lado de um ídolo, Amaro não fica nervoso quando senta ao piano. Disciplinado, há anos ele dedica muitas horas diárias a estudar o instrumento, de modo que adquiriu confiança suficiente para saber que à frente das teclas é um profissional em alta performance.

Apesar da busca constante para aperfeiçoar a técnica, na entrevista a seguir o artista diz que o jazz não se resume ao virtuosismo e prioriza a música com alma. Enquanto artistas ingleses exploram cruzamentos entre o jazz e ritmos mais contemporâneos, como o grime (vertente britânica do rap), o jungle e o house, Amaro não limita seu horizonte musical. Na conversa a seguir, o pernambucano é quase didático nas respostas, quando fala sobre sua música, oferecendo repertório para que seus ouvintes prestem mais atenção às nuances da criação artística que fazem dele a camisa número 10 na seleção do jazz brasileiro atual.


Amaro Freitas foi artista convidado do projeto Existe amor, de Criolo e Milton Nascimento. Imagem: Will Etchebehere/Divulgação

CONTINENTE Como tem sido a pandemia para você?
AMARO FREITAS Acho que a pandemia colocou o dedo nas feridas expostas do Brasil e machucou ainda mais. Essa distopia do nosso país me deixa bem mal, a diferença social, a falta de planejamento, a quantidade de mortos a que chegamos. Sofri essa pandemia como todos os brasileiros. Perdi minha avó para a Covid-19 e isso foi muito doloroso, porque era minha última avó e não pude me despedir. Mas eu me considero uma pessoa que, de certa forma, teve privilégios. Pude ficar com a minha família, construí um trabalho sólido com a minha equipe e não faltou trabalho. Logo no início, não queria nem tocar, porque estava bem abalado, mas depois a gente percebeu que dava para fazer lives de uma maneira profissional e foi rolando um movimento de festivais e editais, aí acabei participando de coisas muito grandiosas durante esse período. Gravei no disco Existe amor, do Milton Nascimento e do Criolo, e foi um presente que vou levar para toda a vida, por estar ao lado do Milton com meu nome aparecendo como featuring (participação), por ter a liberdade de fazer o arranjo do jeito que eu achasse melhor. Houve também uma campanha de lançamento que abraçou algumas ONGs e conseguiu arrecadar três vezes mais o valor que se imaginava possível. Foi um processo muito bonito, acho que essa é a melhor forma de conexão entre as pessoas, porque a arte tem o poder de suspender a gente desse chão duro, como diz Gilberto Gil.

CONTINENTE O arranjo de uma música é parte dos símbolos que denotam sentido para uma composição. Como você se sentiu diante da responsabilidade de rearranjar essas músicas que já estão na memória afetiva do público brasileiro e acrescentar a sua interpretação e autoria nelas?
AMARO FREITAS Além dessa experiência com o Milton e o Criolo, teve a música Vivo, com o Lenine, e a versão de Drão (de Gilberto Gil), também com o Milton, gravada para a série Amor e sorte, da Globo. A produção do Milton gostou tanto dessa música, que resolveu lançar o single com ele cantando, eu tocando piano daqui do Recife, e a Orquestra de São Petersburgo, da Rússia, colocando violinos, cello e contrabaixo. Foi outro grande presente.

Sempre converso com a minha equipe o seguinte: precisamos ter intimidade e vocabulário naquilo que a gente se propõe a fazer na vida. O cara (no futebol) precisa ter rotina, disciplina e estudo para fazer um cruzamento que vai cair no peito do outro. Eu tento ter essa disciplina durante a semana, porque acho que o artista já tem esse olhar sensível de mínimas percepções da vida. Então, junto com isso, quando chego no piano me considero um artista em alta performance. Meu estudo ali no instrumento para tentar descobrir também outras sonoridades não está ligado somente a ser virtuose, mas a saber qual é aquela nota mínima que vai tocar. Quando eu chego para tocar com o Milton, o Criolo ou o Lenine, existe um processo criativo de tantos anos e o vocabulário já está tão extenso, que, na hora, eu não preciso pensar muito. Quando a voz deles vêm para mim, eu já sinto o que eu devo devolver para eles.

Para você ter uma ideia, o Milton Nascimento canta geralmente na região do médio para o agudo, então eu deveria tocar do médio para o grave, assim ele ocuparia uma região e eu a outra. Mas, nessas versões, eu estou tocando na mesma região do Milton e não ficou estranho porque existe uma camada da voz dele em que ele não faz esforço para cantar. Eu fico tocando bem pertinho da região de Milton e a gente se torna um único corpo, de modo que a voz de Milton parece que está soando dentro do meu piano. Isso só vai acontecer quando você realmente tem um processo de vida em cima do instrumento. Aí, pra ser bem sincero, isso (rearranjar as músicas) não pesou em nada para mim. Eu entendo que a gente também é uma potência e a única coisa que falta para a gente é ter acesso. Me pesou muito mais estar ao lado de Milton Nascimento, do que tocar com o Milton Nascimento, porque hoje eu já entendo que a música é uma extensão da minha alma.

CONTINENTE Quando você lançou Sangue Negro, ainda não tinha piano. Lembro que você praticava muito no piano do Restaurante Mingus, onde era residente. Como vão os estudos agora? Você comprou o seu próprio piano?
AMARO FREITAS A partir do momento em que a gente vai vivendo o processo com o instrumento é aquela coisa: você só tinha acesso a uma sandália, aí agora você tem uma sandália que é um pouquinho mais confortável, depois você descobre que existe um tênis que é realmente bom, até descobrir que existe o tênis da série do Michael Jordan. O piano que eu quero comprar hoje é um Yamaha C7, que custa R$ 320 mil. Geralmente, toco um dele alugado em todas as minhas apresentações. Aqui em Pernambuco, a gente não tem dele, então eu peço outro próximo disso. Hoje, eu estudo no Estúdio Carranca, que praticamente virou a minha residência, porque estou lá quase todos os dias usando os tempos que o estúdio tem livre. Lá tem um Yamaha C2 muito bem-cuidado. Esse modelo já saiu de série, o novo é um C2-X, que está custando uns R$ 190 mil. Então, eu pisei no tênis do Michael Jordan e não quero mais comprar a sandália, entendeu? Eu continuo sem piano, mas a estrutura melhorou bastante, inclusive de ter esse lugar de trabalho. Sair de casa e ir para o estúdio para trabalhar me traz esse foco, essa disciplina.

CONTINENTE Desde o princípio, você marca seu lugar como homem negro no seu trabalho. Como foi para você compor e lançar um novo disco nesse contexto em que ficou mais evidente o abismo social no Brasil e no mundo? Você chegou a pensar em não lançar?
AMARO FREITAS Durante a pandemia, a gente fez dois lançamentos antes desse disco, que foram bem importantes também. Um foi o lançamento do vinil Sangue negro, em parceria entre a 78 rotações, que é a empresa que me representa, com a Assustado Discos. Depois, a gente lançou a versão deluxe do Rasif, em parceria com o Três Selos, que foi outro presentaço e um susto, porque, quando a gente anunciou o vinil, vendeu metade em 24 h e o restante na mesma semana. Surgiu demanda de vários lugares do Brasil e eu não tinha noção do que estava acontecendo nessa proporção. Foi algo que mostrou que o mercado estava rolando.

Nós ainda adiamos o lançamento de Sankofa, mas para o mercado internacional não era interessante que a gente lançasse mais para frente. Lá fora, as coisas estão andando diferente daqui do Brasil e, como a gente é representado pela Far Out (selo inglês) e já tinha o patrocínio da Natura, era só acertar qual era o melhor momento. De certa forma, estamos todos em uma pandemia sem poder fazer muita coisa, então os estúdios estão vazios e até sobra tempo. A gente teve muito mais tempo de laboratório para viver um processo realmente de minúcias, muito mais aprofundado. Acabamos tendo muito tempo de planejamento também. Tem o ensaio fotográfico que está incrível, o primeiro clipe no Teatro Amazonas, a potência da entrega lá fora, as playlists de jazz no Spotify… A gente estava batendo mais de um milhão de plays com Rasif, tem noção disso? Música instrumental com um milhão de plays sem precisar se vender nem nada! Aí, com menos de uma semana, Baquaqua já estava com mais de 50 mil plays. Era algo que a gente estava planejando para dar o nosso melhor.

CONTINENTE Sangue Negro e Rassif são discos em que você destaca bastante sua identidade enquanto nordestino, explorando ritmos como frevo, coco e maracatu. Sankofa também tem essa preocupação, mas a identidade que você traz é mais abrangente, parece ser sobre o homem negro que vem antes do homem nordestino. Você diferencia os trabalhos dessa forma?
AMARO FREITAS Acho que os trabalhos são uma continuidade. É como se a própria obra que está sendo construída me representasse em fases da minha vida. Sankofa tem uma abrangência a partir do momento que eu penso diáspora não limitando só ao meu território, mas pensando nesses negros e negras que ocupam vários lugares do mundo. Isso acaba sendo algo que me toca muito, porque eu encontro (o símbolo) sankofa no Harlem. Eu fui à terra do jazz, dos pianistas pretos, como Art Tatum e Thelonious Monk, e ainda fui abençoado com a minha ancestralidade através de um alfaiate senegalês, chamado Ali. Isso para mim foi muito potente, sankofa me mostrou o quanto a nossa diáspora está espalhada pelo mundo e que onde eu chegar estarei em casa, porque sempre terá um meu. O disco nasce disso, eu começo a compor nesse resgate, baseado nessa representatividade de só deixar esse black para cima e já ser uma atitude política, um posicionamento de quem eu sou. Perceber isso e viver ali com o Christian Scott no Jazz Academy, o homem é todo no ouro, porque a família dele tinha uma tradição, que parece muito com o maracatu daqui, me mostrou que existe essa conexão de energias. Se você pensar no que está acontecendo com a cena de Londres hoje também, com o Shabaka (Hutchings), a Nubya Garcia e outros, é toda uma cena jazzística de músicos pretos que se conectam com o Caribe, Cuba, Brasil. Quando a gente atenta para essa onda, conecta-se com isso e começa a ativar coisas também. Eu acho que esse é o poder da energia de se voltar à ancestralidade e perceber que o futuro já é ancestral. E que pra eu ser hoje um dos pianistas mais reverenciados do nosso país, chegando lá fora e fazendo tão bem como qualquer outro no jazz, muitas pessoas vieram antes.


Capa do disco
Sankofa, lançado este ano, traz pintura realizada pelo Acidum Project. Imagem: Acidum Project/Reprodução

Durante todo o processo da escravidão quiseram nos tirar a alma, mas existe humanidade e espírito dentro da gente. Então, nesse disco eu queria celebrar Baquaqua, por exemplo, que tem a capacidade de descrever o que foi a escravidão e dizer em sua autobiografia que o negro tem alma. Depois ele quer voltar para a África e conscientizar a maioria dos pretos possíveis. Acho que ele está nesse contato com a juventude, assim como Sankofa, que significa esse olhar para a ancestralidade para se entender no seu processo e pensar como é que podemos ter um futuro melhor.

CONTINENTE Pode-se dizer que Sankofa é um disco de celebração mesmo, não é? Isso fica bem evidente em Ayeye, que é uma faixa mais festiva, mas todo o disco parece trazer essa proposta de celebrar a vida negra para devolver a identidade e a dignidade que a escravidão tentou apagar e o racismo ainda tenta…
AMARO FREITAS Com certeza, esse disco é pura celebração. Ayeye é uma palavra em iorubá que significa celebração e nela busco as notas que, para mim, trazem essa sensação. Eu encontro essas notas junto de Jean e Hugo e fazemos um improviso, onde a gente só precisa se conectar e deixar fluir. É o momento do brinde, mas esse disco todo vem nessa intenção de celebrar e abraçar também todos aqueles que eu não pude abraçar. Quando eu faço uma homenagem à grandiosa Tereza de Benguela e à região que ela liderou em Vila Bela é uma forma de dizer: “Muito obrigado por tudo que você fez pelo nosso povo. Eu só existo hoje porque você existiu antes”. Quando a gente toca Batucada, que é um trabalho de desconstrução e construção através da isorritmia, polirritmia e da polifonia em cima do samba de partido-alto, é mostrando que esse samba ainda existe dentro de nós e vai continuar existindo.

 O disco busca celebrar a ancestralidade também na natureza. Talvez, se todos os brasileiros conhecessem o Norte do país, a gente tivesse mais respeito com a nossa mata e com o rio. Entenderiam que, antes de tudo virar concreto, existia uma grande plantação e os indígenas, que eram vários mundos. Até hoje a população de lá têm uma outra relação com a natureza e tem lugares na Europa que não vão contemplar a beleza do que é aquele lugar. A gente tem uma ideia superficial de lá, por isso pedi para ficar em Manaus mais alguns dias. A música Cazumbá vem no sentido de homenagear esse encontro e celebrar esse boi místico, que vem da periferia do Maranhão, mas também acontece em Manaus, por essa projeção de Parintins. A partir dele começa uma festa e percebo a resistência desse lugar.

CONTINENTE Cazumbá tem uma agressividade e uma atmosfera de suspense que parece ter a ver com o boi. Além dela, as outras músicas também homenageiam outros personagens, como você constrói a narrativa dessas histórias com a música instrumental?
AMARO FREITAS É um pouco subjetivo, porque eu posso querer passar uma impressão, mas você, ao escutar, pode ter outra referência. Esse é o lugar que mais me fascina na música instrumental. Acho que Cazumbá traz essa agressividade, esse rock’n’roll do início, o universo urbano de Manaus, que não é só uma mata, é uma metrópole como qualquer outra, mas ainda é tradição. Eu fui a dois encontros do boi e fiquei flertando com essa dança na música, até que tem uma hora que me desprendo, que estou na agitação do porto e vou me afastando disso, vou entrando na água e a música começa a ficar mais incidental. É um passeio.

Para mim, o processo não pode ser extremamente pensado. Ele tem que vir a partir do sentir, mas nem sempre isso vai te dar toda a música e nem sempre a música já te dá o roteiro. A gente já está no processo de composição dessas músicas há três anos. Para qualquer lugar de maturação, você precisa de tempo, porque as ideias têm o processo natural delas. Não é fast food para você comer rápido, é para você degustar mesmo. Quando vem a história de Baquaqua, percebo que, na minha cabeça, eu já tinha construído uma música que tem a ver com ele. Eu estou tocando a mesma tecla em tempos travados, com vida, com alma, contemporâneo, ancestral, a virada acontece, eu estou mais velho, e estou na mesma tecla ainda. A gente está falando sobre a mesma coisa ainda e ninguém está ouvindo. E quando eu vejo a história do Baquaqua penso que é sobre isso. Existe uma narrativa que é muito subjetiva, que as pessoas só vão entender por completo do meu ponto de vista se eu contar para elas, mas também estou muito interessado em que as pessoas tenham sua própria experiência e se questionem sobre o título, pesquisem sobre aquilo e encontrem suas próprias respostas.


Hugo Medeiros (bateria) e Jean Elton (contrabaixo) acompanham Amaro desde
Sangue negro (2016). Imagem: Jão Vicente/Divulgação

CONTINENTE Você permanece com o mesmo trio desde Sangue negro. Os músicos que lhe acompanham o desafiam a sair da zona de conforto?
AMARO FREITAS Eu fui muito abençoado em ter Jean e Hugo. Foram processos diferentes com cada um. Com Hugo acabou sendo mais objetivo, enquanto que com Jean foi um processo mais de laboratório. Essa coisa que eu te falei de colocar a voz do Milton dentro do piano, por exemplo, a primeira experiência veio com o Jean. Depois de dois anos tocando com ele, um dia ele disse que estava sentindo o baixo dele dentro do meu piano. Isso nada mais é do que você perceber como o outro atua, para que você possa atuar em harmonia com ele. Os caras são apaixonados por música, eles escutam, estudam, assistem músicos toda hora. Ao mesmo tempo que eu sou influenciado pelas coisas da vida, pela história da minha ancestralidade, por essa dedicação e o processo criativo no meu laboratório, eu também sou muito influenciado por esse trio e ele é tão importante quanto o resto, porque são eles que vão fazer essa sonoridade virar matéria comigo. Eu acho que Sankofa é uma celebração inclusive de uma trilogia que fecha uma ideia do Amaro Freitas com o Jean e o Hugo e representa uma continuidade da nossa afinação como amigos. Já estamos tão íntimos, que o disco é essa explosão sonora.

CONTINENTE Muitas críticas internacionais e nacionais se mostraram surpresas com você. Quando se trata de jazz, você acha que rola um reducionismo do Brasil à bossa nova e ao samba? E, no Brasil, há uma subestimação em relação ao Nordeste?
AMARO FREITAS Eu acho que isso já começa quando eu quero viver de música instrumental e escuto que não dá para viver de música direito e de música instrumental pior ainda, porque a gente tem que se desdobrar e sempre há uma supervalorização dos músicos que vêm do Sudeste. Então, eu já tive que vencer isso e acreditar. Existe uma surpresa da crítica nacional, mas acho que um grande crítico de jazz que pode observar o meu som e foi um dos primeiros a achar inovador foi o Antonio Carlos Miguel. A partir da matéria dele, outros jornalistas leram e rolou uma discussão aqui sobre essa renovação que o meu som trazia. O que eu percebo de diferença entre a crítica nacional e a crítica internacional é que lá fora sacaram logo isso e eu tive algumas matérias falando que o Brasil não é só samba jazz e bossa nova. O samba jazz ganhou um lugar de destaque e isso é uma coisa boa, mas, ao mesmo tempo, a gente não tem a mesma desenvoltura para outras coisas. Quando eu chego para tocar no Unterfahrt Jazzclub, na Alemanha, por exemplo, todo mundo achou aquilo novo, ninguém sabia o que era coco, maracatu, frevo. De certa forma, nossos ritmos tradicionais não participam muito desse universo jazzístico.

 As bandas brasileiras que ocupam esse lugar internacional são as bandas do Rio, como João Donato, Marcos Valle e Azymuth, que têm essa sonoridade bossa nova. Também rola essa sonoridade loucona do Hermeto Pascoal, o choro de Hamilton de Holanda e do Yamandú Costa e a gente teve o Naná Vasconcelos, que tocou por vários desses lugares, mas meio que de lá pra cá a gente foi perdendo essa representação internacional. Eu não quero que seja só eu fazendo isso, tem que ser várias pessoas para que a gente consiga trazer uma dimensão do que é nossa música. Percebo que a crítica internacional está dando muita atenção para esse momento e entendendo o que é a minha música. Das críticas que saíram pela Europa, percebi que eles têm uma cultura jazzística de tanto tempo, que eles têm um vocabulário mais afiado para falar dela. Fiquei de cara com a capacidade deles de perceber tanto o meu território, quando falam de coco, ciranda, maracatu, como também quando falam da complexidade dos padrões rítmicos. A imprensa brasileira fala bem, mas geralmente vai muito por esse lugar da superação, do “menino preto que saiu de Nova Descoberta e hoje é um ícone do jazz”. Fico pensando: caramba, será que não podiam falar da minha música aqui também? Eu sinto falta disso.

CONTINENTE Independentemente da sua história, a sua criação artística é potente por si só…
AMARO FREITAS É, porque tem esse lugar de “se ele conseguiu, você também pode” e a gente acaba maquiando toda a falta de estrutura mesmo. O meu exemplo é o que se pode chamar de fora da curva. Eu fui lá, insisti, acreditei, mas seria muito mais fácil se eu pudesse ter essa estrutura logo no início. Acho fantástico o movimento do passinho, do brega, porque é a periferia exalando a arte da periferia, mas essas pessoas estão fazendo isso porque elas têm acesso. Talvez se eu chegar na periferia e perguntar a um garoto se ele sabe o que é um piano, ele vai dizer que não.

Mas, quando vejo uma matéria de superação dessas, entendo que não é só o crítico, é parte do sistema em que ele está inserido. Em várias entrevistas que já dei, já cheguei a pedir para as pessoas pararem de falar da minha superação para falarem mais da minha música. Tem gente de todo lugar do mundo fazendo jazz potente, eu estou escutando muita gente e estou nessa mesma onda aí.

CONTINENTE Acredito que isso acontece porque o Brasil não tem tanta tradição de jazz, mas acho que você é um dos principais expoentes que tem tornado o estilo mais acessível, inclusive rejuvenescendo o público. Isso se reflete até na programação de alguns festivais que têm proposta mais pop e que convidam você, como o No Ar Coquetel Molotov, do Recife, e o Radioca, de Salvador. O que você acha disso?
AMARO FREITAS Pois é! Nem toda hora isso foi pensado, mas hoje eu penso nisso: ao mesmo tempo que trago complexidade, esse negócio da música mais cabeçuda, eu também trago lirismo, melodia, conforto. A minha música não é só atrito, porque eu também não sou só isso. Para mim, não existe nenhum problema em acessar esses lugares que vão ter uma comunicação mais direta com o público. O que eu sinto às vezes é que hoje a gente se aprisiona a um sistema onde a gente tem que construir uma música que tem um certo nível de complexidade, que é para poucas pessoas. Mas não tem que ter um grande entendimento de música para consumir a minha música, não é esse o grande lance. Eu acho bonito quando os críticos percebem a complexidade do meu som, mas eu quero que ele seja acessível às pessoas. Eu quero que a juventude acesse isso e quero fazer esse resgate do jazz por um homem preto, quase como um romantismo, sabe? Porque os grandes nomes do jazz brasileiro, que tiveram grandes patrimônios, foram pessoas brancas. Você vai lembrar de Vinícius de Morais, João Gilberto, Tom Jobim. E Johnny Alf, um homem preto que foi praticamente o pai da bossa nova, não foi reverenciado como deveria. O jazz foi embranquecido e virou artigo de luxo. Eu quero é que todo mundo compre o meu vinil e escute a minha música e que eu possa tornar essa música mais plural e alcançar mais pessoas. Eu acredito nisso.

CONTINENTE Seguir pelo caminho do atonalismo, da polifonia, da polirritmia, da isorritmia é reflexo do desejo de fazer uma música mais liberta?
AMARO FREITAS A gente gosta de chamar de música sem rótulo. Existem vários caminhos de liberdade e eu me encontrei nesse, por conta até dos parceiros. Jean e Hugo são muito sinceros quando eles trazem a música deles. E eu quis trazer também essa verdade para minha vida. Isso exige de mim uma dedicação, mas que ao mesmo tempo é sincero. Nenhuma hora é uma parada que eu estou querendo fazer para impressionar pela complexidade dos ritmos. É um estudo também do que eu quero causar nas pessoas. Nem o lirismo, nem a complexidade e nem o virtuosismo é mais valioso que o outro. Não existe uma só coisa valiosa, existe a entrega. Eu percebo que essa entrega do público com a nossa música, ao mesmo tempo que se sente um ar de renovação, também se sente uma sinceridade naquilo que está sendo feito. No fim das contas, as pessoas só estão sentindo e esse é o ponto mágico. Por mais complexo que tenha sido o processo, se não houver intenção, não tem graça. Se você dá um beijo em uma pessoa sem intenção, fica nítido. Na música é igual, nós estamos colocando as nossas intenções, nossa alma, a gente realmente se abre e se derrama ali, o resultado pode parecer louco, mas tem toda uma bagagem.

CONTINENTE Você andou ouvindo coisas específicas para a preparação de Sankofa?
AMARO FREITAS Ultimamente, vinha ouvindo muito os discos do Moacir Santos, do John Coltrane… Tem discos que escuto muito porque me acalmam, mas não têm nada a ver com o meu trabalho, como Quem é quem, do João Donato, e Saudades de casa, do Ivan Lins. Tenho ouvido muito a cena de Londres e da nova geração que está vindo dos Estados Unidos, como Christian Scott, Marcus Gilman, Kamasi Washington, Robert Glasper. Tem The Bad Plus, tem um mais antigo que é o Brad Mehldau. Também estou ouvindo muito a Orkestra Rumpilezz do Letieres Leite, e o Naná Vasconcelos. Inclusive, já estou montando uma outra coisa inspirada por Naná, é um momento bem mais místico e intimista com o piano. Acho que vão até me confundir com o piano quando esse novo projeto sair, de tão dentro dele que eu estou. Ele está cheio de parafernália: prendedor de varal, jogo de dominó, caixa de ferro… O que me espanta é a sonoridade, porque você pensa que isso vai gerar um bocado de coisa abstrata, bizarra, mas não, ficou um som bem doce. É bem interessante o que está vindo.

Além disso, tenho ouvido muito coco, como o Bongar, e também os hinos da igreja. Esse é um período que tenho ficado muito com meus pais e a gente sempre escuta muito os hinos da minha infância. Acordar cedo e tomar o café do meu pai é um momento importante para mim, aí ele coloca Ozéias de Paula, que é um dos meus cantores evangélicos preferidos. Tem até uma referência de um hino evangélico em Baquaqua também. De certa forma, todas essas influências acabam saindo no piano, só que com o meu toque.


Amaro Freitas no Teatro Amazonas, durante as gravações do clipe de
Baquaqua, em março de 2020. Imagem: Divulgação

CONTINENTE E como fica a sua espiritualidade entre essas referências religiosas do Terreiro de Xambá, onde tem o Bongar, e da igreja evangélica?
AMARO FREITAS Eu tive uma convivência mais próxima com Xambá agora, também participei de alguns eventos da igreja, e vi a celebração em todos eles. Vi gente se manifestando dentro da igreja como se manifesta no terreiro, vi gente dançando na igreja como dança no coco. Parece que a dança já está no negro, isso faz parte de um modelo de vida, de como você celebra ela, está no nosso DNA. É muito diferente quando você vai a uma igreja de periferia, como em Nova Descoberta (onde vive a família de Amaro, no Recife), e quando você vai a uma igreja em Boa Viagem, onde fica todo mundo comportadinho. Na igreja da periferia é barulho, dança, confusão. É uma injeção de ânimo para que as pessoas tenham orgulho de viver, mesmo não tendo nada. É muito doido, porque você não tem nada para comer amanhã, mas você é tão feliz, e, ao mesmo tempo, você está sendo alienado. Quando faço Ayeye, eu falo de todas essas celebrações. Se você olhar de fora, está todo mundo se manifestando do mesmo jeito. Mas é muito difícil sair da caixinha, sabe? Também tenho meus traumas, mas tento me blindar desses preconceitos para poder existir como um ser pleno, ter minha música mais pura, mais eu, mais liberta desses padrões.

CONTINENTE Durante a pandemia você também produziu o disco Aquenda, da poeta Luna Vitrolira. Como foi essa experiência?
AMARO FREITAS Foi muito bonito, porque eu estava à disposição de entender o universo dela. Luna também estava se descobrindo dentro desse universo musical e eu apresentava algumas opções e ela trazia para mim aquilo que ela entendia como principal que tinha que estar como sonoridade. A gente viveu muitos processos para tentar entender isso e trazer para o mundo um trabalho que fosse sonoramente Luna. Acho que o resultado final ficou incrível, fico feliz por ela. Eu não sou muito de estar produzindo discos, porque realmente eu sou bem-focado no meu trabalho, mas essa foi uma excelente exceção que eu fiz.

CONTINENTE Você já disse em outras entrevistas que buscou fazer um piano mais suingado, meio inspirado por Herbie Hancock, para flertar com o universo hip hop durante o canto de Criolo em Não existe amor em SP. Há gêneros que você ainda não usou, mas pretende explorar?
AMARO FREITAS Eu acredito que a gente realmente fecha uma trilogia desse trio com Sankofa. Outras possibilidades estão começando a se apresentar para mim, que não sou só jazz. O disco de Luna prova bastante isso, porque gravei os sintetizadores, os beats e os pianos, é uma sonoridade totalmente diferente da que vem do meu trio. Acredito que, para ser um grande pianista, eu preciso continuar focado, estudando, então essa vai ser sempre a minha prioridade, mas vai ser muito bom experimentar esses outros lugares, porque traz um frescor e isso está relacionado à dinâmica da vida. Têm umas coisas bem babado para acontecer neste ano que eu não posso dizer ainda, mas são lugares em que as pessoas jamais me imaginariam. Eu só quero ter tempo para fazer as coisas de forma muito profunda e bonita. Do mesmo jeito que eu tenho trabalhado a liberdade na minha música, eu também quero ter a liberdade para trabalhar em outros lugares, não só no jazz ou no que for considerado conceitual, mas naquilo que eu sentir verdade e que eu achar interessante flertar junto.

CAMILA ESTEPHANIA, jornalista.

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