Artigo

Raymond Williams, esperança radical como projeto intelectual

Um dos fundadores da Nova Esquerda Britânica, ele foi fundamental na renovação de conceitos sobre cultura

TEXTO RITA VON HUNTY
ILUSTRAÇÕES FILIPE ACA

01 de Setembro de 2021

Ilustração Filipe Aca

[conteúdo na íntegra | ed. 249 | setembro de 2021]

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Em seu prefácio para a edição brasileira de Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade, Maria Elisa Cevasco (um dos principais nomes no Brasil para o campo dos Estudos Culturais) retoma o célebre historiador E. P. Thompson, que afirmava: Raymond Williams “é o melhor entre nós”. Este “nós” referia-se à formação da Nova Esquerda britânica, uma geração cujos trabalhos em uma série de áreas, entre as décadas de 1960-1990, produziu uma guinada no cenário intelectual anglo-saxão e, por influência, em diversas outras partes do mundo.

Movida pela necessidade de superar um engessamento ortodoxo às voltas com uma crise dogmática dos partidos comunistas europeus, tal geração empenhou-se num mote de William Morris, de que era preciso “formar socialistas”. A pungência dessa geração moveu a Grã-Bretanha de um cenário de isolamento provinciano e conservador para um de destaque como centro de produção de obras canônicas para o pensamento da esquerda mundial. Nomes como E. P, Thompson, Eric Hobsbawn, Raphael Samuel, Christopher Hill, Perry Anderson, Robin Blackburn, Ralph Miliband e Stuart Hall (em sua primeira fase) integraram o movimento que se comprometeu com tal formação.

No aspecto bibliográfico, vale pontuar algumas características que fazem de Williams uma figura central da Nova Esquerda britânica. Neto de pequenos agricultores e filho de um trabalhador de ferrovias, ele cresceu no seio dos movimentos operários de luta e reivindicação contra as políticas que excluíam sua classe dos acessos a bens materiais e culturais. As organizações trabalhistas dos anos 1930 (de acento marcadamente comunista) são seu primeiro contato com a política e as letras, e um incipiente programa de bem-estar social concede-lhe uma bolsa de estudos que possibilitaria sua formação em Cambridge, onde ele se diplomou em Literatura, nos anos do segundo pós-guerra.

Foi na universidade que Williams integrou-se ao Partido Comunista, mas desencantou-se com os limites intelectuais estreitos impostos pela consolidação ideológica da época. Posteriormente, ele contaria que, dentro do partido, seu grupo recebia a alcunha de “estetas”, uma definição pobre, se pensarmos nos impactos de seu trabalho, mas importante, se compreendermos a estética como campo de estudo, intervenção, produção e consolidação de valores/significados através das artes.

Parte decisiva da contribuição de Williams a esses campos se dará no “corte epistemológico” que seu trabalho produziu. Williams também (como Paulo Freire) atuou na educação de jovens e adultos – tal feito gerou no autor a percepção de que apenas uma outra forma de olhar para o campo da cultura poderia resolver um impasse decisivo de sua época, a qual ganhou posição de destaque em sua obra, o fato de que A cultura é comum (título do primeiro ensaio que o tornaria uma referência em seu campo de estudo, publicado originalmente em 1958).

O plano de trabalho de Williams – que está muito claro no ensaio – constitui-se em três movimentos: (I) uma reformulação teórica; (II) a correspondente reavaliação da tradição que esta reformulação obriga; e (III) a constituição de um novo campo, uma ação decorrente desta reavaliação. De forma esmiuçada, Williams se contrapõe a uma tradição que pensa cultura como um reino de luz e doçura, apartado da vida cotidiana e, aparentemente, sem disputas. Tal tradição esteve em voga na Inglaterra pelo menos desde o século XVIII e teve como um de seus mais conhecidos expoentes Frank Raymond Leavis (1895-1978), que formalizou (em Mass civilization and minority culture (1930), por exemplo) uma visão elitista e excludente de cultura. Para Leavis:

“Em todos os períodos, a apreciação discriminada da arte e da literatura depende de uma minoria muito restrita: apenas muito poucos são capazes de um julgamento espontâneo à primeira vista (exceto em se tratando do muito simples ou do familiar). Uma minoria ainda restrita, apesar de um pouco mais numerosa, é capaz de endossar esses julgamentos originais através de uma resposta pessoal genuína. (…) Nosso poder de aproveitar as experiências humanas mais significativas do passado depende dessa minoria, que mantém vivos os aspectos mais sutis e mais frágeis da tradição. Dela dependem os padrões implícitos que ordenam as formas de vida mais refinadas de uma época, o sentido de que algo aqui é mais valioso que outra coisa acolá, que devemos ir nesta e não naquela direção”.

Entender “cultura” como algo definido por uma minoria é um grande problema, contra o qual lutamos até hoje. No ponto de vista de Leavis, a consolidação de valores e significados depende de uma minoria que sabe em que direção devemos caminhar como sociedade, não pode haver nada menos democrático do que isso. A perspectiva radicalmente oposta de Williams é a de que todos estamos o tempo todo produzindo e reproduzindo valores e significados em sociedade, e estes valores seguem em eterna disputa enquanto forem vistos como tais, e não como dados estáticos e não passíveis de transformação.

A constituição do novo campo de estudos proposto por Williams emerge de tal percepção, os “Estudos Culturais” passam a debruçar-se sobre toda produção humana em um determinado recorte, e não apenas ao cânone preservado pelos valores de uma minoria. Ver cultura como algo “comum” é abrir espaço para a participação democrática de todos os corpos na disputa dos rumos (comuns e individuais) de uma sociedade. O elemento fundamental dessa ideia de cultura é fazer dela um instrumento de avaliação da qualidade e dos propósitos gerais da vida de uma sociedade. Quem controla o sentido de cultura arbitra sobre valores. Williams sabe que o esforço representado por Leavis em definir “cultura” de forma elitista e excludente é uma reação às inúmeras mudanças que transformam a sociedade britânica a partir da Revolução Industrial. Era preciso forjar um espaço autônomo, onde poderiam ser preservados os valores que definiriam os rumos comuns e individuais daquela sociedade (em que tudo o que era sólido se desmanchava no ar, para usar a boa descrição de Marx). Essa visão idealista da cultura traduz uma visão de mundo conservadora, que impulsiona um movimento estratégico para preservar um determinado modo de vida.

***

2021 configura-se em um ano de destacada importância para aqueles comprometidos com o exercício da imaginação constitutiva de outras realidades, em outras direções. Em todo mundo, mas com notas especiais de crueldade desumana e negligente no Brasil, atravessamos uma crise sanitária e humanitária sem precedentes. A pandemia da Covid-19 explicitou contradições flagrantes de nossos modos de vida: a insustentabilidade de um modelo civilizatório que degrada e depreda (à medida que avança sobre) nossos ambientes; um sistema econômico que tem empilhado desigualdades, gerando um cenário que assemelha-se aqueles de distopia plutocrática, onde alguns poucos viajam ao espaço, enquanto outros muitos fazem fila por restos de ossos; e o desapreço e a desvalorização das vidas humanas, manejadas como “recursos” facilmente “renováveis” dentro de uma lógica que calcula seu valor em relação a “quanto elas trazem no bolso”, como diria o velho Marx.

No entanto, este ano configura-se também em um cenário no qual ocorrem disputas, e existem elementos a serem levados em conta como Recursos da esperança. Temos visto a reestatização de hospitais e unidades de saúde em países onde a “livre iniciativa” parecia tripudiar sobre o Estado de Bem-estar Social (França, Espanha, Itália e Alemanha, por exemplo), iniciativas de solidariedade transnacionais que contestam as lógicas das fronteiras em momentos de crise (a doação de cilindros de oxigênio feita pela Venezuela para Manaus, por exemplo) e o debruçar incansável de setores internacionais da intelectualidade sobre a urgência da transição de nosso modelo econômico para um que possibilite a existência humana em um séc. XXII (é o caso dos debates acerca da Economia Circular, do Ecossocialismo e do Bem-Viver, por exemplo).

2021 marca o centenário de dois pensadores fundamentais para as discussões em torno de ensino-aprendizagem, recepção e crítica cultural, mas, acima de tudo, de esperança, imaginação e organização como ferramentas políticas imprescindíveis para a transformação de nossas realidades: Paulo Freire e Raymond Williams. A convite da revista Continente, preparei este texto no intuito de destacar, ressaltar e pontuar a contribuição e o legado do professor, escritor e crítico literário britânico que mudaria para sempre a forma de entender e analisar cultura a partir de uma perspectiva histórico-materialista, marcadamente política e compromissada com uma realidade de plenos acessos.

Assim como Paulo Freire nos ensinou que a esperança deveria ser entendida como substantivo proveniente do verbo “esperançar”, não como espera, mas como a construção ativa de uma alternativa que renderia (através do empenho e do trabalho coletivo) frutos futuros, Williams produziu uma análise e uma argumentação, em 1980 (8 anos antes de seu falecimento) intitulada A política do desarmamento nuclear, que o autor conclui da seguinte forma:

“Para construir a paz, agora mais do que nunca, é preciso construir mais do que a paz. Para recusar as armas nucleares, temos de recusar muito mais do que as armas nucleares. A menos que as recusas possam ser conectadas a tais construções, a menos que o protesto possa ser conectado e suplantado pelas construções práticas significativas, nossa força continuará insuficiente. Então, é tornando prática a esperança, em vez de tornar o desespero convincente, que continuamos e mudamos e ampliamos nossas campanhas”.

O entendimento de que a verdadeira radicalidade política (no sentido marxista, de ir à raiz das coisas) reside em tornar a esperança mais possível do que o desespero convincente é um dos legados de Williams mais urgentes em tempos sombrios como os nossos. A desesperança deve ser entendida e combatida como um sentimento reacionário. É ela que nos coloca prostrados frente aos desafios de uma conjuntura acachapante, é ela que nos induz a uma interpretação mecanicista da História, cegando-nos para as possibilidades de contra-ataque, de organização e de transformação das nossas realidades. Um grupo desesperançoso é facilmente controlável, ou, como Deleuze colocou brilhantemente: “(…) os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes”. A manutenção das lógicas que legitimam seus poderes depende disso.

Parte fundamental do legado deixado por Raymond Williams reside no entendimento de que nossas sociedades caminhavam para uma era de primazia da cultura (como defendido por Frederic Jameson), e que, se nosso trabalho como resistência e combate de uma hegemonia superexploratória e desumana não estivesse atento e focado neste campo, tampouco haveria possibilidade de luta nos demais campos, ou, de forma mais brilhante, como colocado por Jameson, chegamos a uma era em que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo e do modo de vida que ele determina”.

É importante entender que a imaginação à qual nossos autores se referem (e em especial Williams) é outro instrumento político imprescindível em nossa luta. Não se pode caminhar em sentido desconhecido, é impossível que mantenhamos nossas campanhas sem mantermos vivas nossas utopias, mas não é apenas isto. O autor refere-se a uma capacidade a ser aprendida e ensinada, a fim de que entendamos que nossa própria visão de mundo é resultado de um processo de dominação política. Em um ensaio de 1975, intitulado Você é marxista, não é?, Raymond Williams defende sua posição como marxista e o propósito de sua construção teórica, ele pontua o seguinte:

“(…) sei que existe um trabalho a ser feito profundamente necessário em relação aos próprios processos de hegemonia cultural. Acredito que o sistema de significados e valores que uma sociedade capitalista criou deva ser derrotado no geral e nos detalhes por tipos mais sustentados de trabalho intelectual e educacional. Esse é um processo cultural que chamei ‘a longa revolução’ e, ao chamá-lo assim, quis dizer que era uma luta verdadeira, a qual era parte indispensável das batalhas pela democracia e da vitória econômica para a classe trabalhadora organizada. (…) a tarefa de um movimento socialista bem-sucedido incluirá sentimento e imaginação tanto quanto fato e organização. Não imaginação e sentimento em seus sentidos fracos – ‘imaginar o futuro’ (o que é uma perda de tempo) ou ‘o lado emocional das coisas’. Pelo contrário, devemos aprender e ensinar uns aos outros as conexões entre uma instituição política e uma econômica, uma instituição cultural e uma educacional, e talvez a mais difícil de todas, as instituições de sentimento e as de relações, que são nossos recursos imediatos em qualquer luta”.

Aos que desejam a mudança, cabe-nos ter clareza de como se organiza a cultura que queremos derrotar – e nesse aspecto é fundamental saber “ler” a produção de significados e valores de nossos dias – e lembrar que cada geração dá a sua contribuição possível à longa revolução. Penso que nosso momento, de maior ou menor resignação e conformismo, de perda do sentido de possibilidade, e da ausência de alternativas demanda a retomada do pensamento de Williams e de seu projeto intelectual, que tinha como objetivo ressignificar as palavras-chave que usamos para discutir cultura e sociedade, e, com elas, os parâmetros que regem como formulamos nossos significados comuns e individuais e construímos nossos valores. Seu objetivo era implementar um novo modo de vida, e transformar o ato de pensar em mais um recurso para o combate do que está posto, como está posto.

Concluo meu texto retomando uma das citações que me são mais caras de Williams, que, em 1958, encerra Cultura e sociedade: de Coleridge a Orwell da seguinte forma:

“A crise humana é sempre uma crise de compreensão: só podemos fazer o que genuinamente compreendemos. Escrevi este livro porque creio que a tradição que ele registra é uma contribuição importante para suas extensões necessárias. Há ideias e modos de pensar que têm neles as sementes da vida, e há outros, talvez na profundeza de nossas mentes, que têm as sementes de uma morte geral. A medida de nosso sucesso em reconhecer esses dois tipos e em dar-lhes nomes, possibilitando assim seu reconhecimento coletivo, pode literalmente ser a medida de nosso futuro”.

Aspiro estar à altura do legado deste intelectual fundamental em minha formação, e que atuando na educação e na comunicação eu possa ajudar pessoas a reconhecerem e nomearem quais projetos estão lhes sendo vendidos e sob quais nomes; que eu possa me somar a uma longa lista de trabalhadores da cultura atentos às brechas para transformação de uma cultura hegemônica em uma cultura democrática, para mudança e para as possibilidades sempre otimistas, esperançosas e imaginativas de formar subjetividades que construam outro caminho, em outra direção.

RITA VON HUNTY, professora, apresentadora de TV, atriz, colunista e youtuber. Em seu canal Tempero Drag, discute, através dos Estudos Culturais, temas centrais da sociedade brasileira.

FILIPE ACA, designer e ilustrador.

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