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Os ventos que movem Tibério Azul

Depois de uma temporada morando no Rio de Janeiro, o músico pernambucano prepara-se para voltar a viver no Recife e lança um novo álbum, 'Catábase', gravado meses antes do início da pandemia

TEXTO Cleodon Coelho

01 de Setembro de 2021

Ao longo desses sete anos no Rio de Janeiro, o cantor realizou shows em espaços como os míticos teatros Ipanema e Rival

Ao longo desses sete anos no Rio de Janeiro, o cantor realizou shows em espaços como os míticos teatros Ipanema e Rival

Foto Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 249 | setembro de 2021]

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Era uma tarde de muita chuva, no Recife dos anos 1980, quando Maria Edite chegou do trabalho e deu de cara com o pequeno Tibério em um canto do terraço da casa, tentando com muito esforço proteger uma folha de papel dos grossos pingos que o vento jogava para dentro. “Venha para a sala, meu filho”, sugeriu. Ao que ele, meio afobado, respondeu: “Mãe, aqui é o meu cantinho da inspiração”. Tibério mal tinha aprendido a escrever e já estava fazendo poesia. “Não sei de onde veio e nem como surgiu esse meu interesse. Não havia ninguém na família com qualquer talento artístico”, comenta. Entre o garoto que demorou a ler e o artista de talento, cujos álbuns têm a literatura como norte, o apego à palavra sempre se fez presente. E seu novo trabalho, Catábase, não foge à regra.

Esse estranho nome escolhido como título pode ser entendido, segundo ele, como “uma descida ao reino dos mortos”. Uma sensação que todos nós, que ainda atravessamos uma pandemia, sentimos. “Na jornada do herói, maneira clássica de se contar uma história, esse é o momento em que ele vai literalmente a essa dimensão para conseguir o elixir para a solução final”, traduz Tibério. “Seria como dar um passo para trás para poder dar dois para a frente. Você cai um pouco para se reconfigurar, para voltar ainda mais forte.” Para ele, o título é sempre o ponto de partida para um novo trabalho. “Dessa vez, eu queria falar sobre a morte simbólica, a morte da transformação, a morte mágica. Foi em torno disso que tudo se desenvolveu.”

Meses antes de a Covid-19 levar todo o mundo para dentro de casa, o cantor pernambucano recorreu a outra espécie de isolamento. Trancou-se em um sítio em Araras, região serrana do Rio de Janeiro, na companhia de três músicos e do produtor Domenico Lancellotti. Nesse retiro inventivo, aconteceu o processo de gravação do disco. “Depois do café da manhã, eu pegava o violão para mostrar meu material e cada um já ia pensando no que poderia fazer no estúdio. Foi um fim de semana intenso e muito rico”, rememora. Eis que, na fase de pós-produção, o coronavírus paralisou o planeta. “Deixei ele de lado, esperando as coisas se ajeitarem”, alega. Terceiro álbum solo de Tibério, Catábase agora finalmente chega, quase dois anos depois, ressignificado. Afinal, o mundo já não é mais o mesmo.




Acima, Tibério com a esposa, Carina, e abaixo com as filhas Branca e Cora. Imagens: Acervo pessoal

O cantor, que completa 42 anos neste mês de setembro, vive uma fase de reconfiguração. “A pandemia me deixou muito sensível”, pontua. Depois de oito anos no Rio, prepara-se para voltar a morar no Recife. O novo endereço já está garantido: uma casa no Poço da Panela, bairro tão bucólico quanto Laranjeiras, o bairro da capital fluminense que chama de seu. A ida para lá, aliás, não surgiu exatamente de uma ação racional. Ele tinha acabado de se tornar pai de Branca e andava questionando o modo com que a sociedade tratava a paternidade. Depois de uma série de acontecimentos aleatórios (a máquina de lavar quebrou, a geladeira deu defeito, um trabalho importante foi cancelado), começou a sentir um vento soprando. “As coisas estavam se travando de forma orgânica, até que um dia eu acordei com um passarinho pousado no meu peito e pensei: é hora de voar!”

A troca de endereço residencial não aconteceu de imediato, mas o vento continuou a favor. “Carina, minha mulher, trabalhava em uma multinacional, em um cargo muito confortável. Mesmo assim, pedi para ela ficar atenta aos sinais. Uma semana depois, ela me deu a notícia de que a sede da empresa no Recife iria fechar. E embarcou nesse sonho comigo”, relembra. Os dois agendaram uma viagem de 15 dias para o Rio, na intenção de encontrar uma casa ou um apartamento. Se nada rolasse, tentariam São Paulo. Perto de voltar, ainda sem perspectiva de moradia, comentaram sobre a sensação de frustração com um amigo. “Relaxem, pois a casa também está esperando por vocês”, respondeu ele. Tibério então foi dormir mais tranquilo e, ao acordar, recebeu uma mensagem de outro conhecido, indicando um apê que tinha achado a cara deles. “Nosso coração vibrou ao entrarmos lá. Para completar, o dono era carioca, mas morava no Recife e conhecia meu trabalho. Não houve nem burocracia. Com um aperto de mão, o negócio estava fechado.”

Com uma reserva financeira que garantiria seis meses de tranquilidade, o casal partiu para enfrentar a cidade maravilhosa. E com a nova integrante na família. “A gente já estava casado há cinco anos quando Branca chegou”, situa Carina. “Foi um desejo nosso passar um tempo sem filho, mas, ao descobrirmos que ela estava a caminho, tivemos uma crise de riso que durou horas, de tanta felicidade. Eu sempre digo que a gente engravidou junto e que pariu junto. Tibério esteve presente e atuante em todo o processo. Foi uma experiência linda”, relata ela. Branca nasceu de parto normal, no Recife, pouco antes da mudança.

Em Laranjeiras, aproximaram-se de outros pais durante os passeios matinais com a bebê. E Carina acabou incluída em um grupo de mensagens chamado “Santa Mãe”. Buscando modelos diferentes de ensino para os filhos, algumas participantes desenvolveram a ideia de criar uma escola autônoma. Tendo a pernambucana entre as empreendedoras, o que poderia ser apenas um experimento transformou-se em uma arrojada iniciativa, graças a uma considerável demanda de pais e mães que também queriam romper com os modelos vigentes. E, assim, um casarão no Bairro de Botafogo virou a Casa da Mangueira, hoje referência em educação no Rio, com mais de 100 alunos e até lista de espera. Não adianta procurar site ou perfil nas redes sociais. Para conhecê-la, só tocando a campainha do número 67 na Rua das Palmeiras.


Domenico Lancellotti, Alberto Continentino, Tibério Azul, Vitor Araújo e Guilherme Lírio, durante a gravação de Catábase, num sítio em Araras (RJ). Foto: Rogério Von Kruger/Divulgação

Enquanto dava suporte na fundação da escola, Tibério não deixou a arte de lado. Ao longo desses sete anos cariocas, realizou shows, em espaços como os míticos teatros Ipanema e Rival. Produziu o disco Líquido, com participações de Clarice Falcão e Pedro Luís, comandou o programa Pescaria na Rádio Roquette Pinto e bateu ponto em atrações como o Encontro com Fátima Bernardes. Também foi indicado ao Prêmio da Música Brasileira, na categoria melhor cantor popular, perdendo “gloriosamente” – como ele mesmo adora frisar – para o rei Roberto Carlos, em noite de gala no Theatro Municipal. E ainda publicou um livro, Líquido ou o homem que nasceu amanhã. “Ele precisou retomar o seu trabalho, mas continuou participando ativamente da escola, sempre opinando. Sem Tibério, ela simplesmente não existiria”, resume Carina.

***

Os múltiplos interesses do cantor e compositor esbarram no mesmo ponto de partida: a paixão pela palavra. Foi assim que ele resolveu cursar, quase ao mesmo tempo, Jornalismo e Publicidade. A universidade abriu outra janela: a de apresentador de TV. Foi durante um estágio no Curta PE, idealizado pela jornalista e cineasta Clara Angélica, na TV Universitária, que ele exercitou essa faceta. “Desde muito novinho, ele sempre teve uma maneira muito delicada de enxergar as coisas. Para todas as áreas que direciona seu talento, a sensibilidade está presente”, avalia Clara, que também teve o hoje cineasta Gabriel Mascaro no mesmo time de estagiários. “Tibério era sempre inquieto e envolvido em muitas questões diferentes. E sua angústia criativa apontava para várias frentes, todas ao mesmo tempo: música, literatura, cinema”, reforça. Não por acaso, o diretor de filmes premiados como Boi Neon assinou o primeiro clipe do cantor: Veja Só. “Enterrei-o na areia, sob um sol de rachar. Mas quem foi parar no hospital fui eu, por causa de um grão que entrou no meu olho. Já ele saiu da terra todo contente e sorridente”, diverte-se Mascaro.

Pouca gente sabe, mas a música só apareceu de fato na vida de Tibério quando ele estava com 15 anos. Um dia, mexendo no guarda-roupa da mãe, encontrou o violão do padrasto, morto precocemente em um acidente de carro. “Foi a minha herança”, diz. Sem entender nada do assunto, mas completamente enfeitiçado pelo instrumento, começou a dedilhar, ou melhor, a massacrar suas cordas e também os ouvidos dos dois irmãos mais velhos, Cleodon e Karoline. Para que a paz voltasse a reinar entre os filhos, Maria Edite comprou aquelas revistas de cifras, que traziam as canções mais tocadas nas rádios. “Minha mãe era filha de um cara semianalfabeto, que lia e escrevia de forma rudimentar, mas que tinha muito conhecimento. Mesmo que a arte não tenha tido espaço em sua formação, ela me deixou livre para descobrir esse mundo”, situa.


Tibério Azul em lançamento do disco Líquido, no Teatro de Santa Isabel. Foto: Flora Negri/Divulgação

Ainda no colégio, Tibério montou sua primeira banda e, empolgado, avisou à mãe que não faria vestibular. Os três integrantes estavam decididos a ir para São Paulo. E Maria Edite o apoiou. Na capital paulista, ele passou cerca de seis meses insistindo no sonho de viver de música, realidade que só chegaria alguns anos mais tarde. “Quando a gente veio passar as festas de final de ano no Recife, um dos meus parceiros sofreu um sequestro-relâmpago e morreu. Meu mundo caiu”, recorda o cantor, que retomou os estudos. Foi na época da universidade que, ao lado do amigo Castor Luiz (até hoje seu parceiro), finalmente criou a Mula Manca & A Fabulosa Figura, com a qual experimentou um outro papel: o de pop star.

Também na companhia de Castor, veio a cultuada Seu Chico, com a qual mergulharam na obra de Chico Buarque. “Para quem sempre amou a palavra, o universo de um compositor como ele é um parque de diversões”, ressalta. “Os trabalhos de Tibério sempre tiveram boa aceitação, mas o sucesso do CD e do DVD desse projeto é inquestionável. Até hoje, eles continuam sendo bastante procurados”, avalia Fábio Cabral de Mello, dono da Passa Disco, especializada em música pernambucana. “Ele é um artista que a loja viu surgir e crescer. Faz parte de uma geração que orgulha a música pernambucana”, completa.

Enquanto o clássico Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, inspirou o nome de sua primeira banda profissional, Tibério buscou nos poetas Manoel de Barros, Cora Coralina e Alberto Caeiro (um dos heterônimos do português Fernando Pessoa) a base para sua estreia solo, o álbum Bandarra. Já em Líquido, o trabalho seguinte, quem serviu como bússola foi o escritor moçambicano Mia Couto. “Antes de aprender a ler, eu vivia correndo atrás do meu irmão com livros e gibis, para que ele me contasse aquelas histórias”, relembra o artista. Hoje, ele tem uma legião de fãs sempre atenta ao que tem a dizer. O cantor Mazuli, da novíssima safra pernambucana, é um deles. “No Carnaval de 2020, Tibério me chamou para participar de dois shows. Estrear na folia ao seu lado foi muito significativo. O jeito de cantar, as composições dele, tudo isso me influencia. É realmente uma das pessoas mais importantes na minha trajetória”, vibra.


O disco Catábase foi gravado no Rio de Janeiro e lançado este ano.
A capa é assinada por Daniel Edmundson. Imagem: Reprodução

Esse casamento entre o som e a palavra ganha um novo capítulo com o lançamento de Catábase. O terceiro álbum pode representar uma reconfiguração, como o próprio título sugere, mas também funciona como uma respeitável saideira. Afinal, foi no Rio de Janeiro que canções como Melhor um sonho bom e Dentro da vida, outra vida foram compostas. Para realçá-las, o produtor Domenico Lancellotti reuniu um poderoso power trio nos dias de confinamento em Araras: o baixista Alberto Continentino, o guitarrista Guilherme Lírio e o pianista Vitor Araújo, conterrâneo e parceiro de Tibério desde os tempos da Seu Chico. Na mixagem, ele contou com Daniel Carvalho (filho do lendário Dadi), responsável pela qualidade de som de artistas que vão de Marisa Monte e Caetano Veloso a Los Hermanos e Lia Sophia.

A volta para terra natal deve acontecer em definitivo até dezembro. Uma casa no Poço da Panela já está sendo preparada para receber, além dos três, a caçula Cora. “Temos uma filha que nasceu no Recife e logo foi para o Rio e vamos voltar com uma carioquinha que vai crescer em Pernambuco”, festeja. “Tenho muito orgulho do pai que eu sou. A minha melhor versão é a que está dentro de casa. Como pai e como marido”, exulta. “A paternidade alcança um caminho de cura. Quando eu crio as minhas filhas, estou criando a minha criança também”, completa. “Tibério tem um olhar muito encantado e muito encantador. Eu não imaginaria um pai diferente do que ele é. Ele vive isso de forma muito plena”, enfatiza Carina.

O tão bem-sucedido projeto de uma escola autônoma vem junto na bagagem do casal. E vai ganhar forma nos arredores do Sítio da Trindade, com bastante espaço para manter todos os ideais da matriz, com liberdade para a garotada brincar e desenvolver seu olhar. “É um local cheio de mato e de plantas, com galinhas soltas no quintal”, antecipa. Essa decisão de regressar surgiu da mesma maneira que a ideia de ir. “Comecei a ter uma sensação de que o vento estava soprando novamente. Vivemos uma linda aventura, mas chegou a hora de voltar para casa. É uma saudade da raiz mesmo”, atesta Tibério. Que sejam bem-vindos. De novo.

CLEODON COELHO, jornalista.

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