A publicação dos Diários completos do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) no Brasil pela editora Todavia é motivo de comemoração. Ainda mais com a tradução exemplar de Sergio Tellaroli, que já verteu para o português obras de Elias Canetti, Robert Walser, Thomas Bernhard e Freud. Vale lembrar que Contemplação e O foguista – as primeiras traduções de obras de Kafka direto do alemão no Brasil, feitas por Modesto Carone – saíram em 1991, 30 anos antes da publicação na íntegra do seu diário. Afinal de contas, não é todo dia que temos acesso à vida privada de um autor da envergadura dele. O alcance, a potência da sua obra, é incomparável na literatura.
Kafka influenciou Walter Benjamin, que percebia nele “a modernidade tratada como um conto de fadas desencantado” (ao comparar sua escrita a do suíço Walser). O poeta inglês W. H. Auden achava o escritor tcheco “o espírito particular” de nosso tempo. Para o crítico de literatura norte-americano Harold Bloom, ele era o “escritor individual” mais representativo do século XX, ao lado de nomes como Freud, Proust, Joyce, Virginia Woolf, Beckett, Borges e Pessoa. Bloom reforça que o termo kafkiano assumiu o sentido do fantástico, o que Freud chamava de “uma coisa ao mesmo tempo conhecida e também estranha para nós”, que remete ao famoso texto do psicanalista, de 1919, Das unheimliche (O estranho/O inquietante).
Os diários só vieram a público pela primeira vez em 1937, 13 anos após a morte de Kafka em uma edição feita por Max Brod, seu melhor amigo. Mas a versão realmente completa só foi publicada em 1951, também organizada por Brod, quase três décadas depois que o autor morreu. Kafka escreveu seus diários em 12 cadernos sem pauta de cerca de 25 x 20 cm, cada um deles contendo de 20 a 58 páginas. Ele é responsável por algumas das obras-primas da literatura universal como O processo, A metamorfose e O castelo, só para citar algumas. Textos, narrativas curtas, às vezes de apenas uma página, repletas de conflitos, personagens e situações/missões terríveis, de brutalidade física e psicológica. Como esquecer, por exemplo, o personagem de Na colônia penal, que tem sua pena comunicada não verbalmente, mas por uma agulha que risca a sua pele.
Por intermédio do seu diário, descobrimos que Kafka se sentia totalmente à vontade com as irmãs, e era muito bem-humorado. Que ia muito ao teatro, que adorava Flaubert, e do impacto que lhe causou a leitura de Temor e tremor, de Kierkegaard (1813-1855). Que, em março de 1911, ele assistia a palestras de Rudolf Steiner (1861-1923) em Berlim, no mesmo período em que assistiu a apresentações do iconoclasta Karl Kraus (1874-1936) e do arquiteto Adolf Loos (1870-1933). Que no mesmo ano conheceu, em Praga, o escritor Knut Hamsun (1859-1952), e que escrevera em 1914 para o grande escritor austríaco Robert Musil (1880-1942), que estava editando uma revista, e pedira a Brod o endereço de Kafka.
Musil “reprovava” em Kafka a semelhança com Robert Walser (1878-1956) e via na obra do tcheco, Contemplação, ecos do escritor suíço. Também sabemos que ele conheceu e conviveu com o pintor e desenhista Alfred Kubin (1877-1959), de quem escreveu nos diários possuir “um rosto bastante forte, mas de certa monotonia de movimentos, músculos tensionados da mesma maneira descrevem as coisas mais diversas. Aparenta idade, estatura e força diferentes, dependendo de estar sentado ou de pé, de terno ou de sobretudo”.
Para Kafka, a vida era um malogro que persistia todo dia. Em 1911, dizia que não chegaria aos 40, e não chegou, morreu pouco antes de completar 41 anos, em 1924. Na leitura do seu diário é possível entrever rascunhos, inícios ou mesmo micro-histórias, pequenas narrativas que se descortinam em poucas linhas, em um parágrafo, quase sempre insólitas.
Ele menciona a revisão das provas da sua novela O veredicto (1912), descreve como a história que “saiu de mim como num verdadeiro parto, coberta de sujeira e muco”. E comenta que o personagem Georg tem o mesmo número de letras de “Franz”, seu primeiro nome. Ele tinha insônias recorrentes e relata em seu diário diversos sonhos. “Não consigo dormir. Sonho apenas, não durmo”. Afirma que odeia tudo que não tenha a ver com literatura. “Não sou nada além de literatura.” Em agosto de 1913, escreve: “Sou uma pessoa fechada, quieta, associal e insatisfeita”. E reforça que “toda vez que me interroguei de fato, sempre respondi”.
Capa da versão brasileira dos Diários de Kafka.
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POLIFONIA DO EU
O diário em si é uma representação polifônica do Eu. Na linguística, a polifonia textual é uma característica dos textos nos quais estão presentes diversas vozes. O termo, nos estudos linguísticos, foi criado pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975), e significa a pluralidade ou multiplicidade de vozes presentes nos textos que, por sua vez, estão fundamentados em outros.
Nos diários de Kafka essa polifonia se desdobra não só no narrador, um humano, ele próprio, autor incontornável da literatura mundial. Em Kafka, e na sua obra, outras vozes são “ouvidas”, lidas. A de uma barata, a de um macaco ou de animais híbridos que misturam raposa, canguru, gato ou cordeiro. Kafka personificou em sua obra um bestiário muito peculiar, sobrepondo composições que se estruturam no âmbito literário e no não literário.
O conceito de diário remete ao gênero confessional. Escritos na primeira pessoa, como as autobiografias ou as memórias, os diários demoraram muito tempo para se consolidarem como eixos importantes no cânone literário. Eles abrigam questões de foro íntimo, as coisas corriqueiras do cotidiano, reflexões pessoais que, dependendo do autor/narrador podem ser absolutamente banais e irrelevantes. Afinal, são registros usuais para revelar aos leitores as vivências pessoais do autor, com um caráter de introspecção, ou com uma dimensão axiológica (ética, moral, estética e espiritual). O diário literário emula, representa o real como manifestação artística. É uma obra que sempre fica no limite entre a ficção e a não ficção. É uma narrativa que abriga em si contradições, paradoxos.
Ao escrever um diário, o autor escreve com o objetivo de publicá-lo? Para Kafka essa não era a intenção, visto que pediu para o amigo Max Brod queimar todos os seus escritos após sua morte. Sua obra – que persiste em romances, narrativas, cartas, diários e fragmentos – não seria nunca publicada, não fosse a desobediência de Brod a seu último pedido. Ao escrever seus diários, Kafka procurava materializar sua escrita de modo que, intencionalmente ou não, contemplava a presença de um leitor implícito. Um relato fracionado, um conteúdo muito variável, mas que singulariza e revela, por escolhas particulares, vida e obra.
Ao passar do âmbito privado para o público, o diário – escrito em isolamento e tendo um estatuto de confidencialidade – revela-se uma contradição entre o privado e o público. O filósofo francês Georges Gusdorf (1912-2000) dizia que a literatura do “eu” abriga uma perspectiva fenomenológica, mas não ontológica: “retrata o homem curioso de si e curioso dos outros”. E assim era Kafka. Seu diário expõe uma tessitura de natureza polifônica na qual o texto literário se materializa e se equilibra entre o privado, o literário e o público, em que o registro diarístico se transforma em expressão literária da mais alta qualidade.
Kafka deixa claro em seu diário que a única aliança que acreditava ter era com a sua literatura. Havia um sol que era a escrita, escrever era sua obsessão. Seu trabalho, o escritório, as mulheres, o noivado ou o casamento orbitavam em torno dela, da sua literatura, do seu sol. Mas isso não quer dizer que Kafka foi um ser soturno, ao contrário. Deleuze comenta Max Brod, cujo relato dava conta de que os ouvintes eram tomados pelo riso quando Kafka lia O processo em voz alta para eles.
No diário, sabemos que o escritor teve uma vida sexual ativa e era “torturado” pelo desejo sexual. Tinha interesse por pornografia, frequentou bordéis a maior parte da vida, e foi um “mulherengo” que tinha medo de “um fracasso sexual”.
Kafka formou-se em Direito aos 23 anos, e tinha um “emprego insuportável”, sendo funcionário por mais de 10 anos de uma companhia de seguros de trabalhadores. Vivia em um embate constante com o escritor que queria ser e viria a se tornar. O “escritório”, o lugar onde despendia muitas horas preciosas do seu dia, representava os labirintos burocráticos presentes em sua obra. Para Deleuze, tanto Kafka quanto Beckett criaram uma obra “verdadeiramente nova e simples, fácil e alegre”. O humor diante do absurdo, o risível que brota da (ir)realidade do cotidiano, das nossas pequenas e grandes angústias, terrores. O que Deleuze chama do “riso-esquizo”, a alegria revolucionária, porque há “no fundo de toda razão, o delírio, a deriva”.
Obras clássicas do escritor tcheco em recentes edições
brasileiras. Imagens: Divulgação
FABULADOR
Kafka foi um grande “fabulador realista”, que unia naturalidade e estranhamento, trazendo à tona o absurdo que há no cerne da vida cotidiana. Ele traz para a literatura do começo do século XX a tradição literária das fábulas, que, ao longo dos séculos, teve autores como Ovídio (e suas metamorfoses de homens em animais), La Fontaine e Goethe. Gênero narrativo criado por Esopo, um escravo que viveu na Grécia no século VI a.C, a fábula é uma história em que os personagens são animais. Por meio de diálogos entre bichos e de situações nas quais se envolviam, a fábula objetivava principalmente transmitir sabedoria de caráter moral ao homem, e geralmente abrigava aspectos moralizantes.
Em Kafka, o que importa e causa estranhamento não é, por exemplo, o fato de que Gregor Samsa acordou uma manhã metamorfoseado em uma barata, mas como os personagens reagem a isso, como se fosse algo absolutamente natural/normal. É a “trivialidade do grotesco”, da qual falava o ensaísta e jornalista alemão Günther Anders, que foi casado com a filósofa Hannah Arendt.
Para Anders, Kafka aborda em sua obra temas que vão além da literatura e da filosofia, relativos sobretudo à moral, à religião, à história e à sociedade. “A fisionomia do mundo kafkaniano parece desloucada. Mas Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso mundo louco, para tornar visível sua loucura”. Na obra do tcheco, os acontecimentos não habituais se tornam habituais, normais. Em Comunicação a uma academia (1917), um macaco explica por que se tornou um homem, em Investigações de um cão (1922), um cachorro de caça se manifesta para o narrador, e em Josefina, a cantora, de 1924 (ano da sua morte), a história é contada por um rato.
Autor de Carta ao pai e O castelo (acima) é responsável
por algumas dos cânones da literatura.
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Se, para Heidegger, viver significa “estar-no-mundo”, para Kafka era diferente. Anders dizia que o existir, o “estar-aí”, para Kafka, significava “chegar eternamente sem jamais chegar”, em suma, “não-estar-aí”. Um não ser mais. “Por que não permaneço em mim?”, perguntava em seu diário em 1909, aos 26 anos. Quase 10 anos depois, em seu conto O caçador Graco (1918), Kafka descreve o nascer como um morrer, como um “morrer-para-estar-dentro-do-mundo”.
A dimensão existencial de sua obra vai além das interpretações reducionistas que resvalam sempre nas análises psicanalíticas freudianas da sua produção. É recorrente em seu diário a expressão “o pequeno habitante das ruínas”. Kafka queria “reter tudo que pode do mundo que se desfaz”. Em anotações de 1910 ele diz: “Se me deito aqui embaixo, nesta sarjeta, a estancar com a boca a água da chuva ou se, com os mesmos lábios, bebo champanhe lá em cima, não faz diferença nenhuma, nem mesmo o gosto diferente”.
Coincidentemente, nos tempos que correm, a familiaridade com o termo kafkiano, sinônimo de incompreensível, se torna quase lugar-comum. Nos últimos anos, temos sobrevivido em uma atmosfera surreal, abusiva, onde tribunais, processos, metamorfoses, sonhos e realidade se misturam. Parece que o Brasil é um Kafka sem saída. Seu diário reverbera a sinfonia dissonante que foi sua vida e obra. “Ouço as consoantes raspando metalicamente uma na outra, e as vogais que as acompanham cantando”. Até hoje o teor corrosivo da sua escrita se equilibra entre a ficção e a não ficção, na “desordem suportável”. Como ele mesmo dizia, “Você não vai alcançar coisa nenhuma saindo de si mesmo”.
JURANDY VALENÇA, jornalista e curador.