Relato

Por uma ‘gordosfera’ nordestina e antirracista

Produtora cultural idealizadora do projeto ‘Bonita de Corpo’ fortalece ação e pensamento antigordofobia

TEXTO E FOTOS ALINE SALES

02 de Agosto de 2021

Maya Santos, jornalista e produtora cultural da Aqualtune Produções

Maya Santos, jornalista e produtora cultural da Aqualtune Produções

Foto Aline Sales

[conteúdo na íntegra | ed. 248 | agosto de 2021]

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“Não é só a gente se amar; vivemos numa sociedade e a sociedade não ama a gente.”
Joana Xeba, professora e musicista

Há tempos, venho buscando entender quais são os atravessamentos da gordofobia e do racismo que atingem diretamente a vida das mulheres gordas racializadas. Quais violências são racismo, quais são gordofobia, quais estruturas raciais e gordofóbicas impõem ações que incentivam a construção do auto-ódio e quais estruturas sugerem a outrem comportamentos opressores sobre nossas vidas. Esse processo parte da necessidade de efetivação de direitos básicos negados aos nossos corpos.

E quando entendemos que a negação desses direitos, da afetividade e do cuidado com a nossa existência está diretamente ligada à gordofobia e ao racismo enquanto estrutura; e buscamos estratégias de recolocação dos nossos corpos nos espaços que ocupamos – e que também nos são negados –, somos costumeiramente deslegitimadas. Ouvimos que nos falta amor-próprio: “Eu tenho uma amiga gorda e ela nem liga, visse? Ela usa até biquíni… Tu devias te amar mais”.

É fundamental compreender que a ordem precisa inverter: não é sobre as considerações pessoais que são atributos, ou não, na vida de mulheres gordas, mas sobre determinações sociais que oprimem e desmontam as vidas das mulheres gordas, diminuindo ou impossibilitando os direitos humanos e a não solidão.

Não existe amor-próprio capaz de destruir as opressões estruturais que interferem diretamente nas vidas de mulheres gordas e que, quando somadas à negrodescedência e a regionalidade nordestina, tais opressões tornam-se ainda mais violentas e danosas.

Portanto, o corpo gordo que tem sua existência invisibilizada pela sociedade tem vivências pautadas em não cuidado e em não direito e raramente possuem um posicionamento de destaque numa concepção não pejorativa.

E se, além da gordofobia, esse corpo precise lidar com as opressões instaladas pelo racismo e xenofobia, restará à mulher gorda, negra e nordestina a necessidade de luta excessiva e exaustiva provocando adoecimento desses corpos e a falta de dignidade em sua existência.

Logo, é chegada a hora de pautar um debate de políticas públicas para os corpos de mulheres gordas racializadas, para que possamos avançar em nossas ações, uma vez que estamos buscando acessos de sobrevivência já existentes para os não gordos. É importante categorizar a raça nas discussões antigordofobia devido às ações excludentes de uma sociedade extremamente racista que continuará invisibilizando as gordas negrodescendentes, se não pontuarmos a nossa presença. Não é só sobre ser uma mulher gorda, é sobre ser uma mulher gorda e negra do Nordeste.


A poeta Joy Thamires

ESMIUÇANDO O SADISMO
O sadismo se inicia com a negação de direitos básicos às mulheres gordas, especificadas em duas esferas: corpos gordos maiores e corpos gordos menores, da catraca do ônibus à permanente luta diária, seja ignorando o descaso com esses corpos, seja na falta de condição hospitalar, de emprego, de remuneração salarial condizente com o trabalho ofertado ou na falta de afeto pela crença, por parte da sociedade, de que não somos capazes ou merecedoras: somos atingidas em proporções diferentes pelas mesmas violências. Isso segue vigorando através das imposições de diferentes instituições de saúde e embelezamento que ainda colaboram com a política de controle desses corpos, perpassando pela invisibilização, punição, desacolhimento e dor, ou seja, nos provoca punição, dor e desprezo, exatamente nesta ordem.

Para as mulheres negras, existem as heranças dos impactos escravocratas e o sadismo vigente ofertado pela branquitude, o que nos possibilita observar inúmeras vezes esses corpos sendo referenciados e expostos a condições desumanas e sexistas.

A luta por sobrevivência torna-se uma constante na vida de mulheres negras, e a manutenção da miséria parece ser um objetivo ainda existente por parte das estruturas opressoras racistas.

Chegado o entendimento de que essas ações estabelecem a construção do auto-ódio e que tais condições são emblemas institucionais, sociais e não individuais, há o despertar do protagonismo independente, composto por uma gordosfera (termo criado pela filósofa Malu Jimenez para referenciar acolhimento e afeto entre gordes) antirracista, erguendo uma rede de mulheres gordas e negras em posição de destaque.

Um sistema constituído por estruturas racistas e gordofóbicas, além de causar punição, dor e desprezo às corpas que destoam do padrão estabelecido por ele próprio, humilha-as. O mesmo se dá na relação entre outras regiões a nós, nordestinas, quando somos postas em um lugar hostil pelo estigma da pobreza, sujeira, não inteligência e fome.

Partindo de uma política de extermínio de um corpo que se mantém vivo, pergunto-me em quais condições e relações sociais estão inseridas as mulheres negras, gordas e nordestinas. Uma vez que essas corpas mantêm-se vivas, se olharmos a modo esmiuçado enxergamos a existência de políticas utilizadas para o apagamento de nossa existência. Ou seja, mesmo que imensas, faz-se de conta que não existimos. E quando pautam a nossa existência é de maneira repugnante e patológica. 

NÃO SEREMOS SÓ LUTA
Tenho relacionado a luta antirracista e a antigordofobia à minha experiência com o boxe. Nas minhas experiências anteriores com artes marciais, eu sempre fui firme nos movimentos das minhas pernas, sabendo exatamente o momento e a precisão no ataque durante o combate. Entretanto, a minha recente experiência com o boxe me ensinou que a falta de sagacidade na esquiva faz meu corpo ser um alvo facilmente atacado.

Os movimentos circulares de aquecimento do corpo, os ataques e contra-ataques sem descanso levarão esse corpo à exaustão. Isso serve de metáfora aos movimentos de reação constante que fazemos, que nos levam a não termos forças para seguirmos, sendo mais uma estratégia do sistema estrutural racista, gordofóbico e de preconceito regional.

Ataques, esquivas e contra-ataques, em seguida, um descanso. Esse descanso nos é negado, já que – por sermos grandes, negras e nordestinas – devemos pautar nossa existência na ideia de que somos um povo guerreiro, incansável, o que nos leva ao constante sofrimento. Não aguentar ou, sobretudo, não querer aguentar não é “dengo”, é um direito.

Apontar a nossa luta como um ato de exibicionismo, ou uma disposição obrigatória, é uma prática da branquitude e dos seus corpos padronizados que, certamente, não sabem que, para os corpos de mulheres negras, gordas e nordestinas “transitar e ter uma vida na sociedade já é violento”, como narra a poeta marginal Joy Thamires.

Os nossos corpos necessitam de cuidado e descanso, não por ineficiência ou escassez de habilidades, mas por direito. Caracterizar como luta e sucesso a busca por um corpo magro é uma concepção de valores elitistas, facilmente reproduzidos e caracterizados como os unicamente corretos. E se caracterizarmos como sucesso a nossa sapiência pela não manipulação em massa coordenada pela indústria extremamente lucrativa? Alguém perde, né? E, dessa vez, não somos nós.

A composição da sociedade branca, narcisista, sulista e ocidental, em sua necessidade absurda de acreditar e impor que todos devem seguir o seu conceito de sucesso e beleza, deverá lembrar a existência de uma gordosfera antirracista e nordestina com sua própria categorização de poder.


A professora e musicista Joana Xeba

GORDOFOBIA RECREATIVA
O debate antirracista tem uma proporção maior que o debate antigordofobia, por ser um tema discutido há muito mais tempo e por haver uma legislação que “impede” a sociedade de praticar o racismo e, ainda assim, diariamente vivenciamos e visualizamos atos racistas sobre o nosso povo e nosso corpo com consequências demasiadamente sérias. Como não há criminalização dos atos gordofóbicos, é possível perceber a naturalização dos ataques provocados às pessoas gordas.

Durante esse período de pandemia do novo coronavírus, ficaram ainda mais evidentes inúmeros conteúdos gordofóbicos produzidos e compartilhados, sem nenhuma responsabilidade, diante dos distúrbios alimentares gerados pela ansiedade, por exemplo. Comentários invasivos e desrespeitosos relacionando a quarentena ao excesso de comida, e esse excesso a um corpo gordo; como também o disparo massivo de memes que salientam o temor social de se ter um corpo gordo ou de ser equiparado a ele. Essas validações geradas pela gordofobia recreativa são prova do negacionismo dos efeitos nocivos provocados no indivíduo e a construção de uma cadeia de problemáticas sociais, sendo a mais urgente: a saúde mental da população negra e gorda.

Denota-se que uma “simples” brincadeira, como o disparo massivo de memes, pode induzir essas mulheres ao suicídio, por estarem inseridas numa conjuntura pré-estabelecida patológica e repulsiva. Sobretudo no período de isolamento social, quando não há acolhimento e as pessoas já se encontram numa situação de esgotamento mental. A partir disso, é importante pensarmos quais são os corpos que estão inseridos na política de extermínio em vida para que não sigamos contra nós mesmas.

A falta de ar é uma constante, não somente em decorrência do vírus. Quando se trata das mulheres negras e gordas, estamos postas em condição de cuidado e serventia à branquitude desde o colonialismo, a exemplo das amas de leite, que, além de amamentar, eram fonte de lucro para seus senhores.

Além disso, tenho a sensação de que são elencadas as opressões nas quais o sujeito está inserido, e posteriormente eliminado; como se, para fazer parte dessa sociedade abusiva, cada sujeito tivesse que fazer uma checklist nas opressões e, assim, isolar-se enquanto sujeito múltiplo e heterogêneo.

Por exemplo, uma mulher que é negra, mas não é gorda, pode pensar: essa luta não é minha. Tudo bem colocar sua existência na condição de superioridade e assim reprimir as outras mulheres negras por serem gordas ou mulheres gordas sem preocupar-se com a racialidade, porque não está inserida na somatização das opressões oferecidas pela supremacia branca.

Essa mesma linha de raciocínio aplica-se às instituições que afirmam dialogar com a diversidade de corpos, a partir do movimento de ativismo gorde, que dificilmente sai do eixo Sul-Sudeste e nunca se afasta da brancura nem do padrão vigente. Vale salientar que, muitas vezes, os corpos de mulheres gordas também são padronizados, geralmente possuem cintura fina, pernas grossas, mas não têm barriga.

A mídia é um importante dispositivo para análise da autoimagem. Podemos notar que, através dos anos, o negro foi apresentado em situação de delito, escravidão e vulnerabilidade, enquanto que o nordestino, como um personagem exótico, sempre ilustrando trabalhos braçais, fome e pobreza. Na contemporaneidade, os memes têm um papel importante na construção de uma sociedade gordofóbica, causando autonegação, provocando impactos diretos na sociedade e impossibilitando a manifestação da própria potência de pessoas gordas.

E mais: colocar-nos, numa condição de existência hostil, incapaz e não merecedora, faz com que contribuamos para o enriquecimento dos nossos algozes. Esse plano coloca nosso povo como favorecedor de um sistema que não nos é lucrativo e nem saudável, e acabamos, por esgotamento ou desilusão, ajudando a branquitude sadista.

Em O mito da beleza, Naomi Wolfi, relata que a “menina aprende que as histórias acontecem às mulheres lindas, sejam elas interessantes ou não” e isso só colabora com o perigo em compartilhamentos de conteúdos “engraçados” que distorcem a imagem das gordas negrodecendentes nordestinas, já que as grandes instituições midiáticas, de saúde e de embelezamento distribuem uma beleza majoritariamente branca e magra.


Autoretato de Aline Sales

SOLIDÃO AFETIVA
Outro aspecto recorrente dessa situação, o amor em reciprocidade é uma constante negação na vida das mulheres negras e gordas. Como expressa o trecho do Poema da mulher, de Nikki Giovanni (1968):

“é ser um objeto sexual se você é bonita
e sem amor
ou ter amor e não sexo se você é gorda
pra trás mulher negra gorda seja uma mãe
avó coisa forte mas não mulher
mulher para diversão mulher romântica necessitada de amor
caçadora de homem comedora de pau sugadora de suor
necessitada de foda mulher necessitada de amor”.

Todas as opressões herdadas historicamente são ainda mais fortes quando a mulher negra é gorda. A solidão de nossos corpos traz a grande possibilidade de entrada para relacionamentos tóxicos e psicologicamente abusivos, já que as dívidas históricas diminuem ou suprimem as chances de termos nossos corpos desejados numa engrenagem comprometida e respeitosa. Aqui, não me refiro ao conceito conservador implantado pela religião, eu me refiro a experiências, poucas ou nenhuma vez, vivenciadas por mulheres negras e gordas.

Os diversos diálogos que mantenho com essas mulheres sobre relações afetivas trazem a conclusão de uma repetição contínua e agoniante de preterimento. Não faltarão parceiros sexuais que não estarão dispostos ao comprometimento numa relação com uma gorda racializada.

Existe uma conjuntura muito recorrente oferecida a nós, sendo ela, a disponibilidade à posição de amante, a que proporciona o prazer, mas para a qual serão devolvidas a humilhação, as ameaças e o abuso psicológico. Embora, digam, isso não tem nada a ver com raça e nem gordofobia.

É muito mais fácil culpar uma mulher gorda e negra, que carrega consigo um carrinho cheio de bagagens compostas por efeitos dos preconceitos diariamente vivenciados, do que reconhecer um sistema patriarcal, ditatorial e tóxico. Afinal, para as pessoas não gordas há um equívoco de que a resolução é definida para um emagrecimento mantida por uma “boa” alimentação (o que levanta demanda para uma outra escrita).

A gordofobia, posta na condição patológica e repulsiva, assim como o racismo, tem como objetivo fazer com que gordas e negras sofram, sobretudo, em silêncio.  Causar sofrimento, abandono, humilhação, vulnerabilidade, solidão e dor é uma necessidade narcísica do sistema branco patriarcal, perigoso e destrutivo, que colabora diretamente com o gerenciamento da supremacia branca. Por isso, a importante construção do debate sobre a solidão da mulher negra e gorda para que saiamos das idealizações de senso comum de que falar de afeto é sobre um coitadismo da “repulsiva mulher gorda romântica e rejeitada”. Esta linha de raciocínio é ultrapassada pela não articulação de avanço nos direitos para uma equidade social e pela egocêntrica visão limitada da branquitude.

A solidão, transformada em raiva pela tomada de consciência, tem conduzido nossos corpos à não aceitação de migalhas afetivas que nos são facilmente ofertadas, criando possibilidades de cura e restaurando o senso de pertencimento, engrenando para novos modos de vida não violentos.

MECANISMOS DE CURA
A tomada de consciência e o autoconhecimento são dois principais mecanismos de cura para a comunidade gorda negrodescente que pode movimentar todas as estruturas individuais com o conhecimento da força transformadora do autoamor.

O autoconhecimento é um mecanismo eficaz para construção de caminhos mais confortáveis, capaz de nos ensinar que o não cabimento dos nossos corpos imensos nos espaços é imposição sistemática, coordenada para a realização da morte dos nossos corpos em vida, que torna as indústrias substancialmente lucrativas. Viver espremendo-se, numa tentativa incansável de diminuição, para circular em sociedade é destruidor. 

Portanto, olhar para essa conjuntura com nossos próprios olhos e não mais com os olhos do padrão da supremacia branca, entendo a necessidade de pautar debates de políticas públicas de acolhimento e circulação dos corpos das mulheres negras e gordas, e a criminalização da gordofobia.

Assim como é importante cobrar dos espaços midiáticos que nossos corpos estejam não só presentes enquanto personagem, mas também ocupando os espaços de poder para construção de narrativas acerca de nossas próprias histórias, o que seria caracterizado como um passo para a desconstrução dos estigmas equivocados das mulheres negras, gordas e nordestinas, afinal não somos e não seremos só dor.

Por fim, entendo que, quando acessarmos os direitos básicos e conseguirmos dar conta da escassez, marcada pela solidão e a punição sobre nossa existência, conseguiremos um caminhar ameno.

ALINE SALES, fotógrafa, produtora cultural e idealizadora do Bonita de corpo, projeto de debate antigordofobia.

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