Resenha

Marina Lima, um ‘songbook’ para a obra

Compositora carioca lança trabalho com 175 músicas, incluindo quatro inéditas do EP ‘Motim’

TEXTO Camila Estephania

02 de Agosto de 2021

'Marina Lima – música e letra' está disponível gratuitamente no site da artista

'Marina Lima – música e letra' está disponível gratuitamente no site da artista

Foto Candé Salles/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 248 | agosto de 2021]

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Aos 65 anos de idade, Marina Lima se sentiu pronta para lançar o seu primeiro songbook. Décadas atrás, a compositora carioca chegou a recusar várias ofertas do falecido músico Almir Chediak, o “mestre dos songbooks”, porque ainda considerava o seu trabalho indefinido. “Eu não sabia o que eu iria fazer ainda, nem quantos discos iria lançar”, explica. Modesta, a cantora só percebeu que já havia construído um legado na música brasileira ao contabilizar 21 álbuns lançados até 2019, quando convidou o violonista Giovanni Bizzotto para traduzir em cifras e partituras para o violão todas as músicas que ela já gravou. O resultado é o livro Marina Lima – Música e letra, que está disponível gratuitamente no site da artista desde abril deste ano. O material traz 175 músicas, incluindo as quatro inéditas que integram o EP Motim, que tem participação de Mano Brown e foi lançado nas plataformas digitais na mesma ocasião.

“Vinte e um discos é uma obra; e eu gosto da minha obra. Mesmo que possam existir alguns defeitos em um disco ou outro, eu dei o melhor de mim”, avalia, sem se poupar da autocrítica. Embora o songbook não seja um projeto usual entre cantoras, para a carioca foi um caminho natural. “As cantoras que só cantam, pelo menos no Brasil, até agora têm tido outras preocupações. Mas quando você compõe, como é o meu caso, a amplitude é diferente. Eu sempre soube que faria o meu tesouro nos discos, que a minha história seria contada através deles.” Essa trajetória também é celebrada na autobiográfica Pelos apogeus, que abre o novo EP e destaca a habilidade de Marina com o violão.

Como estudiosa constante da composição, a artista sempre se preocupou em contar histórias não só através da sua poética, mas também pela sua forma de arranjar, inserindo novas melodias e timbres no cancioneiro nacional. Esse interesse instrumental se manifestou ainda na infância, quando Marina começou a manusear seu primeiro violão, aos cinco anos. O instrumento foi um presente que os pais lhe deram para aplacar a saudade que ela sentia do Brasil, quando a família vivia nos Estados Unidos, na década de 1960. Depois de ter aulas do instrumento com uma vizinha chilena, a menina passou a ouvir rádio e comprar songbooks para seguir praticando acordes e afastar os momentos de melancolia. “O violão transformou a minha existência de cinco anos de idade para sempre”, diz ela que, agora, se sente presenteando e confortando estudantes de música com seu próprio songbook.

Ao terminar o colégio, Marina ingressou em uma escola profissional de música, ainda nos EUA, para estudar violão clássico, planejando um dia se tornar “maestro”. Mas seu caminho tomou outro curso quando musicou despretensiosamente um poema de Antônio Cícero, seu irmão, que hoje ocupa uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras. Intitulada Alma caiada, a música em questão chegou a ser gravada por Maria Bethânia em 1976, mas foi censurada pela ditadura militar. A estreia reprimida pelo regime político então vigente no Brasil poderia ter sido desmotivadora, mas foi só o início de uma longeva parceria entre os irmãos, que cristalizaram seu universo de composição a partir de Simples como fogo, primeiro disco de Marina, lançado em 1979.

“Eu pensava em ser maestro, mas na realidade queria ser os Beatles, queria ter uma banda. O fato de ter um irmão junto foi um elemento catalisador”, comenta. Por isso, deu voz ao desafio de compor e cantar a vida de uma mulher livre sem que sua expressividade fosse castrada por governos, preconceitos ou pandemias. “É preciso muita paixão para continuar trabalhando com música por 40 anos”, reconhece os obstáculos a artista, que, mesmo em tempos tão sombrios, permanece criando músicas, por ser este um exercício intrínseco a ela. “Compor é minha aptidão, isso nunca vai esgotar. Se eu me dedico a uma coisa, ela sai pelos meus poros, e eu sei que sempre vou ter muitos assuntos, profundos até, porque o que é mais profundo é mais humano em nós”, esclarece.

TRAMANDO O MOTIM
Como reflexo da sua dedicação à música, durante a quarentena, para ocupar o tempo de isolamento, ela comprou violão e teclados novos, explorou as possibilidades dos instrumentos e voltou a estudar os sintetizadores através da linguagem MIDI, que a fascinou na época do disco Pierrot do Brasil (1998).

Essa imersão eletrônica é resgatada em Kilimanjaro, que também integra Motim, produzido por Marina e Alex Fonseca. “Música é um poço sem fundo, quanto mais você souber, mais fundo você vai. Com a pandemia, me perguntei: o que eu posso fazer para não ficar louca? Estudei mais música. Então, eu compus muito, mas não achava que seria bom lançar meus 21 discos online, através do songbook, e mais um álbum cheio novo. É muita informação e o mundo digital mudou as relações do mundo. Ninguém tem tempo mais”, justifica ela, sobre a escolha do EP com apenas quatro músicas que sintetizam a sua carreira.

O trabalho promete inaugurar uma nova fase para Marina, que está se desobrigando do compromisso de lançar álbuns longos a partir de agora. “Tudo isso era bom, mas eu sou uma pessoa muito curiosa a respeito do tempo em que vivo. Então, meu temperamento é de procurar novos formatos e tentar entender como posso pegar alguém pela minha música. Sou muito ligada no que acontece e não é à toa que tenho tanto fã jovem”, explica ela, que atualmente admira artistas brasileiros como Alice Caymmi, Letrux e Liniker. Nomes que dão continuidade a sua obra com a construção de uma música brasileira mais cosmopolita, cujos discursos de empoderamento e diversidade Marina lamenta ainda serem minoria entre a população.

“Eu acho que o Brasil encaretou de alguns anos para cá. Descobri um Brasil que não conhecia. Não sabia que tinha bancada evangélica, não sabia que tinha essa bancada de bala. Foi um susto muito grande descobrir que o meu país está assim. Já conheci governos mais de direita, mais de esquerda, conheci um monte de coisa, mas não conheci uma realidade social mais justa no Brasil. Tá aí uma coisa que eu ainda quero conhecer… Acho que o PT fez muito, mas não fez o bastante, não foi tão ligado na cultura do Brasil. Cultura é um negócio que vem com mais base e acho que, junto com o básico (saúde e educação) é o que faz o país ser o que é. Temos um talento enorme para o futebol e para a música, mas há tantas coisas em que a gente poderia ser genial e não nos é dada a chance de estudar isso. Então, eu espero, até o final da minha existência, conhecer muitos talentos no Brasil, que ainda não tiveram a oportunidade”, deseja.

PARCERIAS E SURPRESAS
Sobre o funesto cenário atual e a esperança em dias melhores, Marina compôs para o EP a eletrônica Nóis, que conta com a participação de Mano Brown. “Eu tinha essa música pronta e achei que ele ia gostar. Fora tudo o que ele representa, ele tem uma voz linda, tipo Milton Nascimento, e eu não sabia disso. Ele veio aqui em casa algumas vezes e ficou fazendo vocalizes enquanto ouvia a minha música e eu fiquei louca! Ele me seduziu como uma sereia”, relembra ela, que escreveu a letra de modo oferecesse espaços para a voz do rapper.

A aproximação entre a cantora e Brown remonta às gravações de Clímax, em 2011, pouco meses depois de Marina se mudar para São Paulo. No entanto, os dois se conhecem desde 1998, quando se encontraram em uma premiação da MTV. Na ocasião, a emissora articulou para os Racionais MCs fazerem sua primeira aparição na TV durante o evento e separou um espaço mais reservado para o grupo, do qual Brown faz parte. Em determinado momento da noite, Marina foi surpreendida por ele e a esposa, Eliane, que foram até ela só para dizer que eram seus fãs. “Fiquei abismada e alegre que um dos Racionais gostava de mim.”

Esse carinho e retorno do público foi o que deu gás à compositora para seguir adiante na carreira. “Eu só me dei conta que era uma artista aqui no Brasil quando comecei a viajar. Aonde eu ia, conheciam as minhas músicas, cada encontro era uma emoção”, diz ela, que fez sua primeira turnê através do Projeto Pixinguinha, em 1979, como convidada de Zezé Motta e Luiz Melodia. “Achava que era desconhecida, mas fui formando um público enorme que cantava tudo! Vi que era importante no meu país e que eu fazia a diferença na vida daquelas pessoas. Disso eu não abro mão e estou esperando voltar”, comenta, ansiosa pelos shows.

Porém, Marina não gosta de ser colocada em um pedestal, por isso foge do lugar da diva em que tentam lhe enquadrar. Quando se sentiu mais perto disso, como protagonista da superprodução do show de Abrigo (1995), a autora ficou deprimida. “Não me reconheci. Eu não seguia uma linhagem de cantoras, me via como uma pessoa esquisita que compunha, tocava violão, gostava de música eletrônica. Eu me via como uma nova música pop, já que não havia muitas”, observa.


Capa do EP lançado este ano, composto de quatro
músicas-síntese da carreira de Marina. Imagem: Divulgação

Sempre sincera, a artista prefere assumir as fragilidades e permitir um diálogo mais direto com os fãs, seja através de obras mais introspectivas, como o disco O chamado (1993), ou através de baladas mais populares, como Fullgás ou Virgem. Aliás, romances profundos e superficiais também marcaram a carreira da cantora, que agora homenageia essa faceta com a faixa-título de Motim. “Estou aprendendo que amor é uma coisa muito diferente do que eu imaginava”, adianta ela, sobre escrever sobre o tema na atual fase da vida.

“A primeira coisa com que entrei em contato foi o desejo, depois vivi algumas paixões, depois algumas relações que não eram tão apaixonadas, mas eram muito interessantes, tinha o sexo, uma intensidade. Descobri pessoas que eram gênios e não queriam tanto transar comigo, mas que eu era louca para ter a oportunidade de transar. Conheci muitas coisas na vida. Agora eu estou casada há oito anos com uma mulher que amo, que é interessante, inteligente, bonita, que não é óbvia, que sabe me levar. Pelo meu temperamento, que sou uma mulher que gosta da vida, acho que hoje tenho mais qualidade do que quantidade nas relações, no amor e até no sexo. Acho que tudo para mim é muito e pode ser ainda mais profundo. Eu sou uma eterna fascinada pela vida. Não sei quanto tempo isso vai durar, mas agora aos 65 anos é isso”, pontua.

CAMILA ESTEPHANIA, jornalista.

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