A gaúcha de 43 anos, porém, descarta o adjetivo meticuloso para definir seu modus operandi de recorta e cola na tela do computador. “Eu uso alguma coisa como ponto de partida e depois vou buscando aproximações estéticas”, afirma. “E acontece muita coisa ao acaso.”
Designer de formação pela Ulbra (Universidade Luterana do Brasil), inclusive exercendo a profissão até hoje, Letícia gosta de mencionar a importância das eventualidades na vida profissional. Para começar, a decisão de procurar mais uma faculdade, a de Artes Visuais, não vinha da provável busca em adicionar uma área de atuação a suas habilidades. “Tinha interesse em trabalhar com ilustração e queria desenvolver melhor a expressão gráfica”, relembra. Mas no meio do percurso havia uma velha curiosidade, a fotografia.
Sempre considerada um hobby pela então estudante, a técnica era uma das disciplinas da graduação na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e, aos poucos, foi ganhando espaço na agenda. Tanto que, por sentir a necessidade de reforçar os estudos e pegar macetes com a prática, procurou cursos extracurriculares. Nas atividades externas das escolas de foto, para fazer retratos em ambientes rurais ou urbanos, deu-se uma mudança de rumo, que não esperava. “Entrei nas artes querendo fazer desenho, só que nunca me achei no desenho”, conta ela. “E a fotografia começou a ser uma maneira natural de trabalho.”
Random City #17 (Melbourne - Porto Alegre - Xangai - Boiçucanga - Fortaleza), formatos variados, 2018
Random City - instalação, impressão sobre papel em formatos variados 13 x 2,5 m, Espacio de Arte Contemporáneo – Montevidéu, Uruguai, 2019
DESCOBRIR-SE ARTISTA
A cada dia mais confiante com a câmera, entendeu uma coisa. Ou melhor, duas. A primeira delas foi perceber a que campo fotográfico se associava. Uma conclusão rápida, até. “Não me identificava com um olhar mais comercial, porque meu interesse era poético.” E assim, em vez de enviar para uma revista ou um banco de imagens o material que começara a produzir, decidiu inscrever seu trabalho no Salão Jovem Artista, concurso promovido pelo Grupo RBS e o governo do estado do Rio Grande do Sul. Era 2006 e o fato acendeu uma luz na cabeça. “Puxa, então é isso?”, recorda hoje o sentimento da época, ao ver a foto com duas portas fechadas entre as escolhidas para a mostra da premiação.
Consolidava-se ali a identificação com a fotografia e, por tabela, tomava corpo o segundo entendimento em relação a si mesma. Encarado no início como uma “pós-graduação informal”, o curso de Artes Visuais passou de caixa de ferramentas a propósito primordial. “Eu já trabalhava, estava formada (em Design Industrial) e era quase uma ‘turista’. Ia fazendo as disciplinas. Mas como o curso tem de te instigar a ter uma produção, fui experimentando e, de repente, as coisas começaram a fazer sentido”, situa.
Segundo ela, o processo lento – demorou oito anos para concluir a faculdade – e orgânico envolveu principalmente a intuição. Nesse sentido, descobrir-se artista equivaleu a uma viagem de trem. De estação em estação, primeiro, compreendeu certa intencionalidade no material criado, depois, foi tentando organizá-lo e intitulá-lo.
O trajeto desembocou na série com a qual ganhou sua primeira exposição individual, em 2008, na Galeria dos Arcos, na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre. Em (des)construções, Letícia começa a trabalhar com colagem a partir de fotos tiradas em bairros da capital gaúcha, algo que seria recorrente em sua carreira. São 19 montagens reunindo partes de casas e prédios, transformados ora em castelos ora em sobrados repletos de janelas, grades, pessoas e roupas empilhadas. Há até uma com enfoque em placas e letreiros, em que se leem inscrições como “Jesus breve voltará – Leia a Bíblia”, “corsário ou legging estampada desde: 15,90”, os clássicos anúncios de “aluga” e propagandas da revista Caras. O interesse na tensão entre caos e organização da cidade nasce naquela coleção por obra, sim, do acaso.
Arqueologia da vida privada, formatos variados, fotografia, 2015
Entusiasta das cores, designer que é e tendo um livro chamado Escala de cor das coisas (2009), ela se viu tendo de abdicar das paletas para uma atividade da faculdade de Artes Visuais. “Naquele momento, achei que o único tema de que podia dar conta de fazer um trabalho em preto e branco seria a cidade.” E como a ideia era apresentar o resultado em formato maior, além da imposição do modo analógico, logo pensou que, se tirasse várias fotos, conseguiria um trabalho de tamanho avantajado. Deu certo e as peças, com proporções de 95 cm x 123 cm, por exemplo, viraram grandes colagens. “Foi fazendo muito sentido essa coisa da camada, do improviso, da falta de planejamento, de como é a cidade”, explica Letícia.
A partir daí, ela nunca mais largou o tema citadino, pelo qual diz ter sido “sugada”. Tampouco o ato de flanar, verbo originário da palavra francesa flâneur e que significa passear pelas metrópoles sem rumo certo, observando o movimento das ruas.
Mesmo algumas influências vêm de nomes que voltaram as atenções à metrópole. No texto de apresentação da exposição Conhecidos de vista, a gaúcha cita um trecho do romance A especulação imobiliária, de 1957, do escritor italiano Italo Calvino (1923-1985), assim como elenca entre as referências a Nova Babilônia, projeto urbanístico futurista de autoria do pintor e escultor holandês Constant Nieuwenhuys (1920-2005). Também é fã do legado de Gordon Matta-Clark (1943-1978), norte-americano considerado um anarquiteto, que ficou conhecido por cortar e fazer incisões em edifícios, em intervenções urbanas registradas em fotos e vídeos, e levar a museus partes de pisos, paredes e tetos retirados de construções.
ANDANÇAS E PREMIAÇÕES
Letícia Lampert cruzou os mares com seu trabalho. Morou e expôs na Austrália, participou de programas de residência artística como o do The Swatch Art Peace Hotel, em Xangai, na China, em 2015, o da FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado), em São Paulo, em 2017, e o do Píer-2 Art Center, em Kaohsiung, em Taiwan, em 2018. No quesito reconhecimento, foi finalista do Prêmio Fola – Fototeca Latinoamericana, de Buenos Aires, na Argentina, em 2018, e indicada ao brasileiro Prêmio Pipa, na 11ª edição, em 2020.
Uma de suas obras mais celebradas é Conhecidos de vista. Na série, iniciada em 2011 como projeto para o mestrado em Poéticas Visuais pela UFRGS, a artista flagra uma situação habitual na crescente verticalização dos grandes centros, a dos prédios em que a única vista pode ser a janela do vizinho. Clicadas em Porto Alegre, em visitas a cerca de 50 apartamentos, as imagens são um estudo da vida urbana moderna, no qual se vê um homem arrumando a cama e uma mulher estendendo roupas em um varal improvisado.
E não só: ao dar alguns passos para trás com a câmera, tirando o foco da vida alheia, destaca ainda o ambiente interno das casas de quem observa, revelando variados ambientes domésticos e estilos de vida. Desde cômodos tradicionais e bem-arrumados, em que se destacam, por exemplo, uma sala com piano e sofá (onde descansa uma muleta), aos mais improvisados e mesmo “rebeldes”, em que avistamos intervenções de pichação nas paredes.
Conhecidos de vista – interiores, impressão pigmento mineral sobre papel mate 150 x 100 cm, 2012-2018
O ensaio foi editado em livro com encadernação sanfonada, publicado em 2018, e remete a filmes, entre os mais evidentes Janela indiscreta (1954) e O homem que copiava (2003). Para Letícia, a obra é um microcosmo das relações humanas e do quão estas podem ser surpreendentes. Chegou a essa conclusão ao falar com os moradores com quem manteve contato, perguntando se conheciam os moradores da frente de suas residências. “Em uma das primeiras casas, uma mulher respondeu ‘ah, é uma senhorinha de idade e eu me preocupo com ela. Todo dia de manhã olho para ver se ela abriu a janela, para ver se está tudo bem’”, conta. Emocionada com o depoimento, a artista decidiu gravá-los e incluí-los no trabalho.
Impacto semelhante causariam as temporadas da artista em dois países da Ásia. Tomar o expresso do Oriente a caminho da China e de Taiwan a fez pensar em quanto “o ambiente influencia o processo criativo” ao mesmo tempo que percebia os contornos dessa influência em si mesma. Na nação mais populosa do mundo, ela encontrou o que chama de “realização tridimensional das minhas colagens”. Xangai virou sua cabeça com mudanças bruscas de estilos arquitetônicos a cada bairro (e até esquina) e levou definitivamente para o seu trabalho questões que gostaria de discutir, como a padronização das cidades pelo mundo e o colonialismo.
Random city vem dessas experiências e cria simultaneamente metrópoles imaginadas e parecidas com a realidade. Assim, observa-se São Paulo, Xangai e Belém (PA) em simbiose, tornando difícil distinguir onde está uma e outra. Ou o mural da vereadora carioca Marielle Franco (1979-2018), na capital paulista, em meio às montanhas de La Paz (Bolívia). A série vem sendo desenvolvida pela artista desde 2015 e pode ser vista no perfil @city.random, no Instagram.
Na mesma Xangai, Letícia se deparou com outro contexto urbanístico comum pelo mundo, a gentrificação. Em 拆 [chāi], livro lançado em 2016, a artista registra imóveis antigos prestes a serem demolidos para dar lugar a novos empreendimentos em áreas, de repente, valorizadas – o termo mandarim chāi pode ser traduzido para o português como desmantelar. Letícia observou que o caractere 拆 era pintado nas paredes das casas condenadas. “Eu andava à tarde num quarteirão, procurando um cartaz, alguma coisa que ficou”, diz, quanto às fotos feitas durante os seis meses na cidade, em 2015.
Já em Kaohsiung, em Taiwan, foi a vez de a artista se deter em cartazes e placas de publicidade. Ao manipular as imagens, ela retirou os textos dos anúncios, deixando neles apenas os rostos das pessoas, sejam políticos em campanha ou modelos anunciando produtos e serviços. Na série The silent city (2018), as palavras saem de cena e evidenciam o excesso de propaganda.
The silent city, formatos variados, impressão sobre lona, 2018.
Autora do texto curatorial de uma das exposições de Letícia Lampert, Exercícios para perder de vista (2017), a pesquisadora e curadora Luísa Kiefer, vê na artista “a sutileza do olhar, a procura por algo que não está dado na camada visível das coisas”. Ela diz sentir vontade de desmontar paisagens ao observar os trabalhos. “É uma obra comprometida com o seu fazer, que contém humor, diversão e uma visão bastante crítica.”
FERNANDO SILVA, jornalista.
*Imagens: Letícia Lampert/Divulgação