O atravessamento entre vida pessoal e história é também mostrado em seus impactos sobre a vida de Sueli Carneiro. Em novembro de 1982, aconteciam as primeiras eleições livres no Brasil após o início da redemocratização. Durante as campanhas, o movimento feminista reivindicava mais autonomia e participação, resultando na criação do Conselho Estadual da Condição Feminina em São Paulo — composto por 15 mulheres, das quais nenhuma era negra. As críticas à composição, lideradas pela conhecida radialista negra Marta Arruda, levaram a filósofa a se tornar uma das fundadoras do Coletivo de Mulheres Negras, grupo formado para representar essa população e pautar suas questões específicas.
A trajetória de Sueli foi traçada pela luta por espaço: fundadora e coordenadora executiva do Geledés — Instituto da Mulher Negra, representou a instituição em 2010 diante do Supremo Tribunal Federal (STF) em defesa da constitucionalidade da política de cotas raciais. Com o dispositivo em prática, Bianca avalia: “os silenciamentos, os apagamentos históricos são muito questionados por quem está hoje na universidade. Isso provoca uma série de tensões extremamente positivas, porque os docentes precisam se deslocar, precisam conhecer um referencial teórico mais amplo, precisam dar conta dos apagamentos históricos. E isso me parece um dos movimentos mais importantes no Brasil hoje”.
Ao exemplo do Geledés, instituto que desempenha projetos próprios em defesa de mulheres, negros e contra todas as formas de discriminação, Sueli centraliza o seu trabalho na atuação autônoma, e não nos cargos políticos. No livro, ela fala sobre a importância disso: “falta no Brasil uma sociedade civil ampla, poderosa, que pressione, de fato, os poderes instituídos”. Construindo bases para o fortalecimento de outras iniciativas de organização civil, suas muitas pesquisas mapearam a forma como o racismo e o sexismo impactam relações sociais. Esses textos foram reunidos em coletâneas como Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil (2011) e Escritos de uma vida (2018).
Bianca Santana conta ter sentado no chão para ouvir Sueli em boa parte das 160 horas de entrevistas realizadas. Nessa posição de aprendiz, ela narra as transformações sociais acompanhadas pelo livro. As vozes da biógrafa e biografada muitas vezes se misturam, em adesão a posicionamentos de Sueli Carneiro ao longo da sua vida, das mobilizações políticas às polêmicas. Na mesma medida, a autora também se faz presente como importante voz crítica na interpretação dos possíveis desdobramentos dos movimentos sociais brasileiros.
“Entre a esquerda e a direita, sei que continuo preta”, disse Sueli Carneiro, em 2000, em entrevista à revista Caros amigos. O trecho, transformado em título da biografia, alerta sobre o atual debate sobre a representação dentro da política partidária. Fora e para além dela, iniciativas como o Projeto Memória Negra, da Casa Sueli Carneiro, aprofundam o movimento de resgate. “Tantas vezes, as pessoas negras buscam enraizamento para conseguirem força para seguir em um país racista como o Brasil, e parte dos silenciamentos, dos apagamentos, nos nega essa história”, diz Bianca, hoje integrante do projeto. E afirma: “Ter um lugar de encontro enraizado numa trajetória negra forte como a da Sueli me parece muito bonito, importante e necessário”.
MARINA PINHEIRO é jornalista em formação pela UFPE e estagiária da Continente.