A vida, como a fotografia, retirada de uma extrema ebulição. Arrancados da rotina, permanecemos tensos e ainda ofegantes. Seria assim a superfície de uma fotografia? Algo que, ainda tenso, se coloca em estado de suspensão? Será que somos capazes de perceber aquilo que nela permanece ofegante? O corpo quente aguçando os sentidos, o espírito que, em desalinho, segue alimentando uma visão crítica.
Uma das imagens da série é a paisagem do conflito vivenciado na Praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo. A polícia militar de São Paulo viola mais uma vez a Cracolândia. A praça firma-se na verticalidade de uma estátua monumental e, ao chão, espalham-se barracos pegando fogo.
Retirados os fragmentos de um vídeo postado na internet, um breve segundo escondia 24 frames de toda a confusão em torno do despejo. Sobrepostos, formam esta paisagem. Cada um deles com a transparência necessária para que a sequência torne-se uma só imagem, acumulando essa história.
Paisagem que parece reter o encontro anacrônico de uma batalha entre um general a cavalo empunhando sua espada e imune ao fogo que arrasa as moradias provisórias da comunidade alijada. Monumento gigante de um dito herói nacional, o Duque de Caxias, montado e suspenso por um pedestal para que, assim, atinja a altura de 48 metros. Abaixo, o cerco dos barracos ardendo em fogo.
A fotografia também nos olha. Ela nos devolve à utopia. Percebe as ruas pelo tempo da História. O instante impregnado dos acontecimentos nos lança a entendimentos ainda mais duradouros. A pausa abrupta e o estado de suspensão provocado pelo isolamento social nos faz fotografia.
Acordei Juca, com quem moro, vivo, durmo e sonho. Há 18 anos existimos juntos. Uma história, um tempo já eterno e três filhos. O nome que chamo em silêncio várias vezes ao dia: Ju-ca! Quem filtra meus atos. Os pensamentos que precedem minhas falas. As dúvidas sobre afirmações, política e diálogo. Encaixe. Ar que sai do corpo para que entre outra respiração. Aquilo que completa e não basta. A razão sobre os impulsos, o que me faz não ter razão. O acordar provisório somente para reencontrá-la. Quem ensina a expressar verdade.
O tempo suspenso como se a vida fosse uma superfície fotográfica. Uma coisa que me aproxima dos sonhos é essa forma de remontar histórias que misturam testemunhos com criações. Esse medo todo reduz ao entendimento de que aqui, no Brasil, o pior é sempre infinito. E tentei respirar, mas sentia a falta.
Falta que convocava imagens. Elas são como estamos: suspensas. Retêm sonhos. Fotografias despertando uma espécie de alucinação: seja ela como documento histórico, utópico, eterno na afirmação do desejo de que nada disso se repetirá. Ou, o espaço de acúmulo, onde a vida se adensa e cria reservas, para qualquer desejo ou ação futura.
Revi um acervo gerado em caminhadas pelo centro de São Paulo. Essa prática me faz ter um arquivo de fotos que guardo para edições futuras. Lente curta, próximo às pessoas e mediado por algumas tensões do espaço público, mas sem a pressa de defini-las como imagens finais.
Agora, afastado dos momentos em que tirei tais fotos e sem nenhuma fidelidade às composições originais, apaguei quase tudo da imagem, exceto a feição do retrato que resta. Um escuro avesso encobre, na imagem, o que era rua ou cidade para manter essencial a presença. A dos personagens que parecem expressar um lamento único e presenciado.
Respirar. Suspensos, como se fotografia fôssemos, transbordaremos. E, um dia, olharemos para elas com a mais fundamental certeza de que aquilo foi, mas continua pulsando, agindo, em um estado que se define como sendo. E vibra ruidoso um será. Todos os tempos juntos enquanto nossas vidas se tornam fotografias.
Quando assisti ao vídeo da reunião ministerial, em 22 de abril de 2020, pensei: é a cena de um crime. E não sei do efeito em dizer: isso é um crime! Mas sei, e fotografias sabem, que a História não apagará essa violência. Eis uma conquista da imagem, a de que não será possível esquecer.
A fotografia não anula o movimento, ela o coloca em suspensão. É um espaço de acúmulo, onde a vida se adensa e cria reservas. Suspensos, como se fotografia fôssemos, transbordaremos. E, um dia, olharemos para elas com a mais fundamental certeza de que aquilo foi e não se repetirá.
Desejo que irrompe potente: isso tudo significará! O sonho que me reteve, as fotos que teimo em fazer da cena de um crime. Mantra que se manifesta da ideia de que, com uma fotografia, não se pode dizer tudo, mas haverá sempre a possibilidade de tudo ser dito novamente. A fotografia resistindo à atual certeza de que diante as estruturas sociais que nos determinam em nosso país o pior, sempre, será sempre infinito.
PIO FIGUEIROA, fotógrafo e diretor de filmes. Premiado recentemente na Academia Brasileira de Cinema, como um dos diretores da série Quebrando o tabu, exibida no canal GNT. No campo da arte, seus trabalhos integraram mostras importantes, como Ver do meio – Instituto Tomie Ohtake (São Paulo, 2015); Marcha, no Masp (São Paulo, 2013); Retiro, Pinacoteca (São Paulo, 2012), entre outras. É diretor de cena no time da Piloto Tv e atua em projetos audiovisuais de entretenimento e de comunicação com marcas, fazendo da sua experiência na arte e no jornalismo uma assinatura estética que preza pela qualidade da informação, sem abrir mão de uma fotografia poética.