UM PROJETO DE CRÍTICA
É na primeira parte do volume que se encontra A crítica triangular, ensaio que pode ser considerado quase um programa. Nele, Rios defende três pilares fundamentais da atividade crítica: o caráter axiológico, o desejo pedagógico e o perfil hermenêutico. Nesse primeiro ensaio, já se apresenta a questão da valoração da literatura como um dos grandes problemas a serem enfrentados pela crítica contemporânea; que será revisitado em vários outros textos da coletânea. De fato, essa é uma questão de grande relevância para o debate sobre o papel da crítica hoje e de como ela deve se colocar diante da obra. Principalmente, para aqueles que pensam que a crítica literária deve ultrapassar os limites da universidade. Converte-se o convite, então, em aposta. Jovens críticos como Peron apostam no ensaio, ou no tom ensaístico, como uma linguagem adequada para equilibrar certo rigor de pensamento e comunicabilidade. Some-se a esse rigor acessível, um estilo ora límpido, despojado de cientificismo, no diapasão de conversa; ora poético, simbioticamente entrançado com a própria literatura e poesia dos textos que aborda e analisa.
O caráter axiológico (axio = valor + logia = estudo) se refere, nas palavras do autor, à “atitude valorativa como uma ação inevitável do jogo literário”. Em resumo, qualquer gesto nosso ao selecionar, ler ou comentar textos literários traz embutido um juízo de valor. O exercício da crítica seria uma tomada de consciência dos mecanismos de valoração, e de como eles agem sobre a sensibilidade dos leitores e do próprio crítico. Desconsiderar a noção de valor das obras é “subtração ilusória” que reforçaria, em último caso, a objetividade do manejo com a literatura, pois suprime a dimensão subjetiva e particular que participa das formulações de valor.
Segue-se a essa questão do valor a importância pedagógica que a crítica pode assumir para os autores, num diálogo provocador e fértil, principalmente se ela – a crítica – se constituir enquanto expressão da “urbanidade” de que falava Machado de Assis, no famoso artigo Ideal do crítico, e a que Rios faz referência. Crítica não como ataque, mas conversação polida; diálogo franco entre jogadores de um mesmo time. Dessa perspectiva, crítico e autor não são adversários, mas colaboradores, no sentido em que contribuem para a difusão e espessamento da experiência literária, o que não exclui os momentos em que a crítica é mais contundente e questiona o valor e potencial de uma obra.
E, por fim, Peron ressalta o caráter criativo da crítica, aquilo que ele mesmo define como “perfil hermenêutico”. Nas suas próprias palavras: “o crítico é criador: da ausência de um sentido em circulação gera-lhe vida e o faz transitar (…)”. Essa pode ter sido uma lição aprendida com os mestres que ele vai expondo ao longo de seus escritos, mas também com sua atuação na antiga revista Crispim, da qual também fiz parte juntamente com Eduardo Cesar Maia, Artur de Ataíde, Brenno Kenji e Cristhiano Aguiar, e que tinha como proposta justamente unir crítica e criação literária.
Já no modo de compor o livro e abordar os problemas literários, o autor deixa ver a dimensão criativa de sua crítica. Além disso, expõe a sua família intelectual. A dinâmica de sua espiral crítica tem como uma de suas fontes o método que Lourival Holanda chamou de “volteios de urubu”, em seu livro Sob o signo do silêncio (1992), estudo fundamental de Vidas secas de Graciliano Ramos. Lourival, que é referência comum da geração a que pertence Rios, é também modelo de uma crítica que desperta o prazer da leitura não apenas pela pulsão da inteligência, mas também pela força encantatória da escrita, ampliando os significados da obra que comenta, e reforçando o caráter hermenêutico da aventura crítica. Mas honrar as figuras exemplares de sua formação não impede Peron de pensar com as próprias lentes; já ciente que a melhor forma de reconhecer o valor de um pensamento é questionando-o, convocando-o para o debate inacabável que é a crítica.
Discordo de um aspecto que ele expõe nesse texto programático: ao tratar da ideia de cânone literário (a tradição literária consagrada de um país, uma cultura) e das reivindicações que visam a sua abertura, com o objetivo de considerar o que ficou à margem dessa consagração e das normas que a regem; afirma que isso “só faria sentido se tais normas de fato fossem petrificadas e ele fosse irremovível”, já que, ao contrário, elas são, nas suas próprias palavras, “provisórias e moventes”. Aqui vejo como amplamente justificáveis as pressões revisionistas sobre o cânone, já que não faltam aqueles que, de maneira reacionária, parecem encará-lo justamente como uma entidade perpétua e fixa. Mesmo porque, por mais que tenhamos uma visão efetivamente aberta sobre o complexo e imprevisível funcionamento dessa consagração, inevitavelmente ela se constitui como princípio e imagem de autoridade. Chegando até, muitas vezes, a se revestir de uma linguagem de cunho religioso, que tende a encarar os “ataques” ao cânone como blasfêmia, heresia, transgressão. Peron está, evidentemente, longe dos paladinos da tradição petrificada. Em sua crítica, o cânone adquire sentido pleno: uma força capaz de dar forma ao presente e um parâmetro para o começo de conversa, sem a pretensão de acomodar seus pontos de vista na mordaça da palavra final.
Professor Peron Rios traduz a crítica literária para vários públicos, incluindo a sua dimensão criativa. Imagem: Divulgação
COMO DEBATE
A qualidade do debate que Peron Rios propõe com seu livro se reflete nas discordâncias e questionamentos que apresenta tanto aos críticos que o formam (maneira oblíqua de homenagem) – como é o caso de Antônio Carlos Secchin, Leyla Perrone-Moisés, João Cezar de Castro Rocha, Lourival Holanda – como aqueles que ocupam uma perspectiva distante da sua. Nesse último caso, destacaria o artigo sobre Terry Eagleton, com o irônico título de O crítico em liquidação. A maneira contundente com que Rios refuta o ponto de vista radicalmente relativizante de Eagleton é muito interessante.
O artigo começa propondo uma discussão que ultrapasse a polarização que ronda a (im)possibilidade de construir uma definição para literatura hoje, o que está na base da especulação do crítico britânico em dois capítulos de seu The event of literature: “se os culturalistas festejam diante da especulação, muitos prefeririam que ela nunca estivesse na agenda reflexiva, o que parece lastrear dois equívocos extremos”, já nos diz Peron no início de seu artigo.
O que Eagleton sustenta e Rios põe em xeque é a ideia de que não há nenhuma característica específica no discurso literário; de que não é possível considerar o mínimo de estabilidade nisso que chamamos de literatura ao ponto de o esforço teórico só encontrar indefinições. Desse ponto de vista, a teoria e a crítica não seriam capazes de reconhecer nenhum traço que estabeleça diferenças mínimas entre o texto literário e uma lista de compras, por exemplo. Esse relativismo extremo “liquida” a teoria e o esforço crítico em nome de um fluxo de ideias mais acomodadas a certa noção de pós-modernidade, e que nas palavras do próprio Rios, pode configurar uma “letargia teórica que entrega afagos à preguiça mental, impedindo a criação de mapas que orientem, lucidamente, escolhas e projetos”.
Contra o ponto de vista de Eagleton em The event of literature, Peron argumenta que a permanência de certas obras no âmbito da tradição reflete justamente o papel inovador, revitalizante, que elas desempenham tanto para as línguas em que foram criadas como para as visões de mundo que fundamentam a cultura. Para tal é preciso enxergar que conceitos como o de estranhamento, oriundos do formalismo, não deixam de ser uma tentativa de traduzir um fenômeno que não é recente, mas antigo. Se a linguagem utilizada para fins estéticos, como ocorre na literatura, desvia-se do registro corriqueiro de nossa comunicação, é porque ela também participa “de um evento psicológico mais amplo, que é o de ressignificar a experiência, higienizar os hábitos, fabricar o novo”, afirma Peron Rios.
Concorda com ele o historiador Carlo Ginzburg para quem, no ensaio Estranhamento: pré-história de um procedimento literário, o mecanismo de estranhamento da linguagem literária deve ser compreendido a partir de fontes muito antigas, oriundas justamente da retórica antiga para qual, como bem vê o próprio Peron, “o tópico da invenção” rondou desde sempre a natureza artística. Eis, então, a faixa mínima de terra em que podemos nos apoiar para definir humilde e provisoriamente a literatura: sua capacidade de (re)invenção.
Pertence a esse time de críticos mais distantes da perspectiva abraçada por Rios o Martim Vasques da Cunha de A poeira da glória. E como ocorre com o diálogo com Eagleton, o título do artigo registra ironicamente o desencontro de olhares tão diferentes. A expressão “pulverização crítica” que o compõe já denuncia o rebaixamento da crítica a uma espécie de investigação moral dos vícios que atravessam a literatura, transformada pelo olhar reacionário de Vasques da Cunha numa ameaça social. Peron é certeiro ao julgar nessa avaliação da literatura brasileira uma nostalgia pelo século XIX, hostil às proposições mais interessantes da teoria literária moderna. Diante de um crítico marxista ou de um conservador, Rios impõe um valor mais alto do que o das cartilhas ideológicas: a capacidade de encarar a literatura “de olhos livres”, para usar a metáfora oswaldina que ele usa ao definir a atuação de João Cezar de Castro Rocha. Inscreve-se aí também uma nítida posição política: como a literatura, a crítica deve ser um lugar de ressonância da pluralidade contemporânea, um edifício atravessado pelo vozerio interminável de pensamentos diversos. Ou seja, literatura e crítica compõem um lugar de resistência contra a tendência recente ao discurso maníaco, às certezas precocemente esclerosadas e ao gosto pela indigência intelectual fascistoide.
COMO POESIA
O tom ensaístico de Peron Rios é parte fundamental de seu projeto de crítica. A linguagem ensaística se apresenta como um despojamento de certas convenções do cientificismo acadêmico, e nos melhores momentos se transforma em espaço de criação também. Quando uma imagem, uma metáfora, aclara mais do que um conceito. Os exemplos de tal lição são muitos: Julio Cortázar, buscando diferenciar romance e conto, define o primeiro como uma luta de boxe ganha por pontos, o segundo por nocaute. Lezama Lima define a escritura como o oposto à “horticultura da preguiça”. As imagens e metáforas cumprem na crítica ensaística uma dupla função: sintetizam e seduzem. Economia e força. Misto de inteligência, ou agudeza; e surpresa, conquistada com engenho.
Ao tratar do jogo rítmico da poesia de Mariana Ianelli, Rios afirma que “À emissão da voz, que torna o homem participante da vida, segue-se a sabedoria do inaudível, porque é no enleio ondulatório entre o som e o silêncio que todo ritmo se elabora”. Se quisermos analisar o ritmo da frase do próprio Peron, já percebemos que o discurso crítico assimilou os jogos sonoros propostos pelo poema que analisa: na repetição dos “s” em “segue-se a sabedoria”, parece sugerir que o inaudível se faz ouvir sibilantemente, sutilmente, pelo esforço de linguagem que caracteriza poesia e crítica como formas de tradução; assim como “enleio ondulatório entre o som e o silêncio” marca muito claramente o apelo hipnótico de um ritmo que, anasalado e ondulante, encena isomorficamente as propriedades inebriantes de seu objeto.
Não apenas na última parte, dedicada especificamente à leitura de poesia, mas em todo o livro, sente-se muito claramente o acordo entre a crítica e o poético. Assim, misto de convite e aposta, a Espiral crítica conjuga o prazer pela interlocução da antiga crítica de rodapé com o rigor e a espessura teórica da crítica universitária. E nisso é raro e exemplar. Principalmente numa época em que as proposições extremas e a intransigência acrítica ameaçam jogar o debate intelectual na vala da insignificância. Em um tempo como o nosso, é importante armar-se com os exemplos que revelam um pensamento plural, apaixonado pela especulação aberta que a arte exige, sugere e instiga.
FÁBIO ANDRADE, poeta, crítico literário e professor de Literatura Brasileira e Portuguesa da UFPE.