Artista, ativista e estilista, Vicenta Perrotta é um dos nomes mais representativos da atual moda brasileira e do ativismo trans no país. Ela produz roupas não binárias através do que nomeia de transmutação têxtil, ressignificando o conceito do upcycling, em que tudo é criado a partir de alguma peça que já existe, flertando com a precariedade e a desconstrução. A potência de todas as vivências de Vicenta no espaço público se materializa também em um espaço físico e colaborativo. Junto com as manas Rafa Kennedy e Antonia Moreira, ela coordena o Ateliê TRANSmoras, um espaço de produção de arte, cultura e renda voltado à comunidade transvestigênere, que desde 2013 constrói residências artísticas e se mantém como ponto de convívio de pessoas e grupos, entre universitários, ativistas, artistas e público LGBTQIA+. O ateliê – localizado na Moradia Estudantil da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, uma das mais conceituadas da América Latina – é o espaço físico onde acontecem todas as construções (e desconstruções) coletivas entre Vicenta e todas as manas que passam por lá. Um espaço de resistência e reexistência.
Vicenta Perrotta nasceu em Campinas e iniciou seu trabalho com o reaproveitamento de tecidos e de roupas, descartadas ou não. Sua trajetória soma quase 15 anos, desde que, em meados de 2007, produziu acessórios construídos com sementes. “Foi onde começou o meu contato com as questões de localidade, etnia, racialidade, ancestralidade, consumo. A partir daí, passei a comercializar as peças e a observar os modos de produção na sociedade capitalista”. A estilista logo percebeu como a indústria da moda pode ser predatória do meio ambiente “e uma grande armadilha para ações que visem sua conservação e manutenção dos seus níveis de biodiversidade e diversidade de gênero e expressão”.
Dos acessórios para as roupas foi um passo natural. O tecido surgiu no momento no qual Vicenta entendeu que “não somos as mesmas pessoas, e os retalhos me proporcionaram perceber como são construídas as corpas e suas subjetividades, observando que não somos seres homogêneos como o capitalismo nos coloca, e, sim, indivíduos formados por partes, elementos diferentes. Na busca de construção de minha identidade enquanto artista independente, e nessa busca de trabalho que não seja genocida, do indivíduo e do coletivo, tive contato com comunidades e coletivos de pessoas ditas corpos dissidentes que me acolheram e me proporcionaram uma outra visão, a de que existem outras possibilidades de vida e existência”.
Foi somente em 2013 que surgiu o Ateliê TRANSmoras, já com a proposta de questionar a moda e seus padrões hegemônicos que se estabeleceram durante séculos no mundo. Isso foi possível quando Vicenta conheceu um artista visual e aluno do Instituto de Artes da Unicamp. Ele deu a ela a chave de um espaço inutilizado pela moradia, onde iniciou uma residência artística e uma pesquisa de moda e gênero.
A partir daí, Vicenta se utiliza de roupas que são colocadas em um ponto de doação na Moradia Estudantil e resolve criar peças de roupas sem gênero e sem numeração, entendendo que ocupar um espaço público não é mais um processo individual. Para ela, a criação se dá coletivamente.
Ateliê TRANSmoras no Sesc Itaquera. Foto: Rafa Kennedy/Divulgação
“É um processo de acolhimento e residências artísticas que culminam na construção coletiva, consolidada através de vários dos meus processos e projetos importantes na cidade de Campinas, apoiando projetos de pessoas trans que se articulam formando outros coletivos, formando multiplicadoras desses processos de construção que hoje é denominado de transmutação têxtil. Junto a mim, a fotógrafa Rafa Kennedy e Antônia Moreira, coordenadora de planejamento e produtora, foram fundamentais na construção do Ateliê.”
Acompanho o trabalho de Vicenta Perrotta há mais de 10 anos, quando nos conhecemos em Campinas, numa das três vezes em que morei na cidade. Em nosso mais recente encontro, no final de 2020, em uma visita ao ateliê e seguindo os protocolos de segurança, conversamos junto à sua amiga e colaboradora Rafa Kennedy e à residente Xãtana Xãtara.
Durante nossa conversa, Vicenta reforçou sua visão crítica da indústria da moda. Em detrimento disso, para ela e suas colaboradoras, a moda pode ser usada como uma ferramenta de transgressão: “ressignificando e desenvolvendo uma educação e consciência de consumo, construindo um pensamento no qual uma estética questionadora valorize o indivíduo e que destrua as opressões e violência legitimada pela moda hegemônica”.
Esse processo, segundo a estilista e ativista, é atravessado por oficinas e processos de formação compostos por diversas subjetividades. Por intermédio de prêmios e editais, esse coletivo criativo se consolida como espaço legítimo “de ocupação e resistência”. De acordo com Vicenta, em 2019, o ateliê impactou direta ou indiretamente cerca de cinco mil pessoas através de suas ações.
Em 2020, durante a pandemia e a quarentena dela resultante, a estilista aproveitou para articular com alcance uma rede de coletividades no país. “Uma corpa transvestigênere é alvo de opressão constante e do isolamento social permanente, e a quarentena nos proporcionou um processo de articulação com outras coletividades transvestigênere no Brasil, o que gerou uma produção artística muito importante para o atravessamento da pandemia.”
Neste 2021, os projetos do Ateliê TRANSmoras se iniciaram com o espaço sendo contemplado com recursos da Lei Aldir Blanc, em um projeto que unifica e fortalece comunidades de travestis no entorno do ateliê, além de estarem participando de um projeto de mapeamento e formação de líderes transvestigênere na região de Campinas e entorno.
CRIATIVIDADE NA PANDEMIA
Em novembro de 2020, devido à pandemia da Covid-19, Vicenta Perrotta não pôde juntar as artistas que costumava colocar na passarela da Casa de Criadores. A opção foi criar, junto à artista e fotógrafa Rafa Kennedy, um vídeo sobre a potência da travestilidade no Brasil. “Diversos processos são sistematicamente apagados pela violência da sociedade, de como a sociedade nos viola”, diz ela sobre o trabalho. “Por isso é fundamental construirmos processos para naturalizar nossas corpas na sociedade e quebrar a invisibilização”. O filme foi chamado de Dandara, em homenagem a Dandara dos Santos, travesti brutalmente assassinada em 2017.
Além da sua marca fazer parte está no line-up da Casa de Criadores, em 2018 – a convite da estilista e pesquisadora Karlla Girotto, que foi curadora de moda do Centro Cultural São Paulo/CCSP – Vicenta realizou uma residência artística na Casa do Povo, localizada no Bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Ali foi criado o Movimento Travesti Viva, que contou também com a parceria do estilista Gustavo Silvestre. Dentro do movimento, e junto com Rafa e Antonia, a estilista produziu a primeira edição do Jornal Travesti Viva, com o objetivo de fomentar a literatura trans; estando à frente também do projeto Arte, Cultura e Costura em conjunto com o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.
O Arte, Cultura e Costura contemplou cerca de 20 mulheres, trans e cis, moradoras de abrigos, com encontros focados na formação em corte e costura. O curso finalizou com um desfile-performance.“Nós ainda passamos por processos de vulnerabilidade. Todas as manas foram expulsas de casa – todas – e vêm buscando outros processos de sobrevivência”, atesta.
Coleção Onde estão as travestis?, apresentada na Casa dos Criadores.
Foto: Danilo Sorrino/ Modela Cyndi Makena/Divulgação
Também durante a pandemia, no ano passado, o Ateliê TRANSmoras engendrou novas ações, como o projeto Semente – Autonomia para mulheres trans e travestis, que aconteceu no ateliê campineiro, reunindo costureiras, modelos, produtoras e artistas com o intuito de promover a autonomia para mulheres trans e travestis, a partir de cursos de corte e costura criativa e crítica à moda, com ênfase no reaproveitamento de materiais têxteis. A produção das peças do Semente se deu durante o mês de julho, de modo virtual, por conta do isolamento social. Ao todo, 20 mulheres trans e travestis participaram da oficina do projeto, que, além de artístico, serviu para a geração de renda emergencial durante a pandemia.
No Ateliê elas puderam se expressar e criar suas próprias versões de uma mesma peça de roupa, e todas as roupas foram feitas a partir de peças de doações e descartes têxteis. No período, foi criado um editorial de moda para promover e comercializar as peças criadas. As imagens de divulgação do projeto foram feitas em parceria com a revista Fort Magazine, com fotografias de Cássia Tabatini e styling de Dudu Bertholini. As peças podem ser encontradas para venda na loja virtual da página @use_vp, no Instagram.
ONDE ESTÃO AS TRAVESTIS?
O ativismo de Vicenta encontra espaço em alguns eventos importantes do calendário anual de moda. Por exemplo, como comentamos antes, ela participou algumas vezes da Casa de Criadores, evento que reúne estilistas talentosos do país. Sua estreia foi na 44ª edição do evento, em 2018, no qual apresentou uma retrospectiva do seu trabalho, numa coleção intitulada Onde Estão as Travestis?. Na época, ainda assinava Vicente, mas já era reconhecida pelo seu ativismo trans. Para Vicenta, a transfobia está presente em todos os lugares, inclusive no meio da moda.
Em 2019, ela continuou a fazer barulho quando, junto com suas colaboradoras, apresentou o desfile Brasil: o país campeão mundial de travestis, lembrando que este é o país que mais mata travestis no mundo. E, paradoxalmente, é o que mais consome vídeos pornôs com travestis. A apresentação contou com a direção criativa da artista Manauara Clandestina, e foi inspirado em uma edição do icônico jornal O Lampião da Esquina, que circulou entre 1978 e 1981.
O jornal foi uma publicação alternativa que, durante a ditadura militar, falava sobre a vida gay brasileira, causando muita polêmica, uma delas com uma reportagem que denunciava como, na década de 1970, o Brasil exportava travestis para a Europa, principalmente para Paris e Milão. Com esse tema, Vicenta colocava a travesti na passarela como protagonista e como parte da história no país. O desfile foi possível graças a um financiamento coletivo. “Acreditamos que fomento de verdade vem em trabalho que gera renda e autonomia para corpas de artistas que há tanto tempo estiveram invisibilizades e que não aceitam mais esse não lugar, nem tão somente gritos e aplausos”, diz ela.
Exibindo o corpo trans, travesti e não binário, promovendo uma reinvenção e resignificação de corpos, afetividades, vivências, mas também da produção e do consumo de roupas, suas apresentações são uma construção coletiva e plural com o intuito de somar forças, garantindo geração de renda, empoderamento e, mais que tudo, protagonismo às travestis. Segundo Vicenta, não é questão de representatividade. “Não foi representação, foram corpos dissidentes tomando o lugar de fala. Vocês vão nos ouvir”, reforça.
Coleção Onde estão as travestis?, apresentada na Casa dos Criadores.
Fotos: Danilo Sorrino/ Modela Cyndi Makena/Divulgação
MAIS QUE UMA CAMISA
Como disse Lilian Pacce sobre um desfile de Vicenta, “um desfile não precisa ser só um desfile. Uma camisa não precisa ser uma camisa, um paletó pode ser outra coisa. E se a manga, no lugar de cobrir um braço, se pendurar lá embaixo? Uma maquiagem nem sempre é aquela maquiagem de desfile, com batom só na boca, com tudo ‘no lugar’. Qual é esse lugar, quando é que se convencionou que o batom ficava só na boca? O que é uma roupa pra você pode não ser uma roupa pra pessoa ao seu lado”.
É assim que a ativista e estilista tem causado espanto no circuito brasileiro da moda. Suas apresentações misturam desfile e performance, e, nos últimos anos, ela transformou sua marca VP Upcycling em um espaço para novos estilistas trans, sempre dialogando com questões relacionadas à sustentabilidade, ao reaproveitamento de roupas e ativismo político, buscando incluir e prover autonomia para as minorias da população.
Mais do que criar roupas, Vicenta Perrotta propõe um olhar mais naturalizado para o corpo, cria novas conexões de afetividade. Ela coloca em xeque conceitos que estabelcem o gênero como binário, sugerindo que um homem não só é um homem, uma mulher não só é uma mulher, pois existe uma complexidade de matizes. Infinitas matizes.
No ateliê, ela e suas parceiras desenvolvem questionamentos, renda, autonomia, residências. As três, Vicenta, Antonia e Rafa, por intermédio de tecnologias sociais, evidenciam o crescimento do TRANSmoras com uma série de acúmulos de conhecimento e de validações, um espaço sustentável não só ecológico, como também financeiro, que está expandindo paulatinamente sua rede para impactar mais pessoas. O que as manas projetam não é para 2021, é para a vida toda.
JURANDY VALENÇA, jornalista e curador.