Trilogias tendem a ser armadilhas que os autores montam para si mesmos, principalmente quando escritas em um intervalo de tempo tão longo. Apesar disso, percebe-se no conjunto da trilogia um forte sentido de unidade, que mesmo diante de ideias-força conflitantes, não deixa o projeto menos coeso. Em primeiro lugar, fica claro que cada um dos livros remete a uma das grandes artes: a pintura (Fernanflor), o teatro (A estética da indiferença) e a música (Flashes), e, não por acaso, seus protagonistas são ligados de alguma forma a elas. Por outro lado, há uma clara articulação da linguagem de cada livro para que se tornem elogios aos três gêneros clássicos. Assim, o primeiro volume, o mais expressionista dos três, é também mais lírico, onde “tudo é linguagem”, segundo Gonçalo M. Tavares, no posfácio da obra; em A estética da indiferença, cujos diálogos são precisos, o drama é privilegiado; já em Flashes, o mítico personagem Castilho Hernandez, recuperado do conto “Castilho Hernandez, o cantor e sua solidão”, do livro O destino das metáforas (2011, Prêmio Jabuti), é apresentado num tom heroico – ainda que propositalmente patético – que remete ao épico.
Fernanflor foi divulgado como pertencente à trilogia Geronimo, e apenas após o lançamento de A estética da indiferença, começa o autor a chamá-la Trilogia Cromane. Essa mudança, que poderia ser considerada uma das armadilhas de que falei, parece ter encontrado uma solução no desenvolvimento do conjunto, e um primeiro ponto a considerar é como partimos do indivíduo (Geronimo, ou “nome sagrado”) para o coletivo, a cidade de Cromane na construção simbólica da obra. O parônimo Jeroni Fernanflor, protagonista do primeiro romance, transforma-se no sebista Geronimo de A estética da indiferença e, em Flashes, ecoa no tio morto de Castilho Hernandez, Artur Hieronymus.
Da mesma forma, como se estivéssemos diante de uma escrita-palimpsesto, várias personagens transitam entre as obras, como reverberações ou fantasmas: o negro matador de porcos Tomás de A estética da indiferença ressurge em sua versão mais jovem e não menos cínica em Flashes, onde o fantasma de Fernanflor ainda se faz presente de forma sutil e onde o final aberto do conto Castilho Hernandez, o cantor e sua solidão encontra uma parede de ecos. Menos preocupado com a evolução das personagens ao longo dos livros, o autor parece usar esses trânsitos mais como estratégia para reforçar certa atmosfera onírica, sobre a qual falarei adiante.
O PUEBLO UNIVERSAL
Uma cidade, vista à distância, em fotos aéreas, folhetos de turismo ou passeios virtuais não passa de uma massa de prédios, ruas, monumentos e rostos apagados pelo Google Maps. Mas, seria lícito dizer que, de perto, as cidades perdem sua materialidade e inteireza? Seriam fragmentos, flashes das memórias de seus habitantes e daqueles que as visitam, dos que chegam a elas como estrangeiros e tentam incorporar-se, mas também de seus detratores, de seus inimigos? Poderíamos inferir que as cidades teriam menos estatuto de cidade quando o Street View está no zoom máximo? É justo o contrário.
Conhecemos as cidades ao nos perdermos nelas, quando seus contornos tornam-se tão comuns, que já não gritam em nossos olhos; aquilo que apreendemos de uma cidade está menos em saber o nome de suas ruas ou pontos turísticos que em capturar seu espírito, incorporá-lo a nossa memória para recuperá-lo quando quisermos. O que vivemos numa cidade nos constitui, mas também ela mesma é constituída como essa sombra das recordações dos que a viveram, que acumula alegrias e frustrações, vitórias e derrotas, passado, presente e futuro, todos fundidos num só ponto, aleph do bem-querer e do mal-querer. O mundo só existe como certa forma de ordenar o caos: fora de nós, há apenas um vazio sem sentido.
O escritor Sidney Rocha. Foto: Anny Stone/Divulgação
Wolfgang Iser (1926-2007) afirma que obras de ficção são “condições que tornam possível a construção de mundos de cuja a realidade não se pode duvidar”, e, nesse sentido, a cidade ficcional se incorpora à realidade que identificamos e apreendemos; o leitor aceita as prerrogativas postas pelo autor, aceita seu jogo sem que a própria ficcionalidade seja posta à prova. Cromane se materializa como suplementação da realidade não pelo cotejo mimético com cidades reais em especial, mas porque ganha essa condição de espelhar as vivências do leitor em quaisquer cidades que reproduzam a crueldade que Rocha exercita. Tanto que a própria Cromane tem seus duplos, neste caso as cidades apresentadas em Fernanflor (Ilha Redonda, Bressol, Arroyo, Lutércia) apresentam características fragmentárias que serão retomadas nos dois livros seguintes e sintetizadas na cidade do Disneylândia Drinks e em cujos arredores está o condomínio de Amaravati.
A jornada que o leitor faz a Cromane é uma aproximação que se parece à que se faz a um oásis-miragem. Ao longo dos três livros, o leitor chega mais perto da cidade e suas percepções de amoródio são moduladas por essa distância que diminui. O que é apenas uma silhueta expressionista em Fernanflor, converte-se numa paisagem difusa, ainda vista à distância, desde o condomínio de Amaravati, em A estética da indiferença. Já em Flashes, a cidade é sentida em todas suas cores, texturas, cheiros, sabores e, principalmente, sons, a partir do regresso às ruínas do Disneylândia Drinks, nosso primeiro zoom sobre a cidade, e que acaba sendo uma espécie de sinédoque reversa da própria Cromane.
Não faltam definições de Cromane e seus duplos ao longo dos três livros. “Cromane é a Cidade do mise-en-scène (…). Sua gente miserável é a mais miserável e a menos inocente do país”, diz Michi. “Em Cromane (…) Os ricos pedem descontos até humilharem os vendedores e os pobres deixam sempre gorjetas. Todos fingem ser o que são”, diz Castilho. A Ilha Redonda, ou simplesmente a Ilha, proto-Cromane, terra natal de Fernanflor: “o céu dentro de um inferno. Inverossímil”, “um círculo de fogo ao lado de um imenso peixe, no antigo mapa-múndi, a ilha sem-fim e sem começo”. O que é ressaltado em cada zoom é justamente aquilo que não são prédios, ruas, monumentos: trata-se do que há de mais humano, de suas memórias e seus fantasmas.
Costa Lima afirma que “mimese supõe algo antes de si a que se amolda, de que é um análogo, algo que não é a realidade, mas uma concepção da realidade”. Cidades imaginárias são sempre expostas à prática do cotejo mimético que tenta estabelecer relações com uma geografia externa à obra, ligada ao mundo imediato do autor. A cena da briga no teatro, a loja maçônica devorada pela avenida e o nome do rio de Cromane, Nkali, são referências que mesclam diversas cidades, mas o leitor prescinde desses referenciais para compreender o simbolismo: Cromane é uma cidade provinciana que avança sobre sua própria história de soberba, que se coloca como régua para o resto do mundo. Os provincianos de São Paulo ou do Rio de Janeiro se identificarão. Pouco a pouco, o pueblo universal de Cromane se cristaliza na mente do leitor.
Por isso, o nome sagrado do indivíduo, Geronimo, se dilui em Cromane, agora menos cidade material e mais acúmulo de sensações e memórias em torno das quais o torvelinho de linguagem de Sidney Rocha prepara a tempestade ou a vinda do meteoro. Aliás, nos três romances, a escatologia é anunciada: Fernanflor morto ou sonhando sua vida enquanto dialoga com o escorpião da vaidade; Michi e Hana à espera do meteoro em sua paz artificial alphavílica; as abelhas que virão ao final de tudo devorar a cidade de Castilho Hernandez. “Seu ponto de partida será um jardim florido. Depois as pontes, os riachos e as florestas de eucalipto, os templos comerciais e as ruínas do futuro.” A anti-Comala de Rocha, “devorada por sua doçura de mel”, volta-se para dentro da terra.
TODOS SOMOS PERIFÉRICOS
A cidade é um símbolo ambivalente, na medida em que permite às personagens extraírem a energia de que necessitam, mas se torna um lugar opressivo, refratário aos protagonistas, são sempre estrangeiros, que tentam integrar-se à polis, mas que acabam sendo destruídos por ela. Fernanflor, Michi e Castilho Hernandez são criaturas inadequadas, párias ou simplesmente sombras de um mundo que os ignora ou os repele.
Jeroni Fernanflor, oriundo de uma aristocracia falida, sai da Ilha Redonda para construir sua carreira, integrando-se aos jogos de salão, aos eventos sociais, às noitadas. Mas o trânsito do pintor na sociedade não o transforma em um deles: o tema do não pertencimento é reiterado pela inadequação dos protagonistas com sua condição, um desconforto com seu lugar no mundo ou com sua forma de reagir a ele. Fernanflor reage a essa condição impondo às elites, classificadas como ignorantes, sua arte como afronta, como vingança.
Essa variação do tópos do estrangeiro me lembra o óleo O suicídio de Dorothy Hale (1939), de Frida Kahlo. A empresária Clare Boothe Luce encomendou o quadro para homenagear a atriz Dorothy Hale, que se suicidara em 1938. Na tela, o edifício Hampshire House envolvo em nuvens, e o corpo de Dorothy Hale reproduzido em três momentos que emulam sua queda. Abaixo, a legenda: “Na cidade de Nova York, no vigésimo primeiro dia do mês de outubro, 1938, às seis da manhã, a senhora Dorothy Hale cometeu suicídio ao jogar-se de uma janela muito alta no edifício Hampshire House. Em sua memória (...) este retábulo, executado por Frida Kahlo”.
Fernanflor executa também suas pequenas vinganças, mas, como resposta, recebe mais fama e sucesso. Sua condição de estrangeiro aparentemente se dilui, até que regressa à Ilha Redonda, já idoso, onde se transforma numa paródia de si mesmo. “Poses, falsidade, interesse: o mundo em torno da pintura é uma farsa”, conclui o narrador, mas poderia ser o próprio Jeroni. “Um rosto é um espelho.” Consegue ver no futuro senão seu próprio passado. Mas aqui temos outra chave: o livro, que começa pelo ‘Epílogo’ e termina pelo ‘Prólogo’, deixa em suspenso se essa jornada de Fernanflor realmente existiu, ou se o periférico nunca deixou sua ilha e viveu apenas um quase.
É a solidão o que teme Michi, protagonista d’A estética da indiferença. O professor de teatro sedentário e aposentado, depois de uma vida relativamente agitada na juventude, acaba por isolar-se com uma mulher grã-fina num paraíso particular burguês. Embora submetido ao tédio e aos mesmos jogos de salão em suas idas esporádicas a Cromane, parece preso ao comodismo. A convivência com os vizinhos é frívola: mais um teatro social que verdadeira aceitação, o que Michi não ignora e mesmo aceita, em jantares e almoços no restaurante Farsano, cuja paronímia é óbvia. Michi quer que a vida seja sua eterna comédia, não abdicará de seu final feliz, a despeito de suas contradições.
Solidão distinta da experimentada pelo Castilho Hernandez de Flashes. Ali, os fantasmas são tangíveis: sua canção Indifférence tocando numa jukebox subaquática é o epílogo para a última tentativa de integrar-se, enquanto ouve histórias de sua própria morte pelos frequentadores do Bar do Berne – outro palimpsesto que remete a outro romance de Rocha: Sofia. O ponto de partida de Castilho é o ponto de chegada de Inácio P. Vasquez, nome de batismo do cantor, que parece finalmente abandonar a personagem ao pagar a conta. “Me lembrei do velho Castilho Hernandez, quando rico avarento, quando pobre perdulário.”
As personagens da trilogia parecem perder-se nessas partidas e chegadas. O tema clássico do nostos, o retorno para a casa, é então constante. Fernanflor deixa (?) sua Ilha para tornar-se o que é, mas após sua jornada, volta (?) à sua terra natal para morrer. Em Flashes, esse regresso se dá já no começo do romance, quando Castilho Hernandez visita, no dia do seu aniversário, o Disneylândia Drinks, sua casa adotiva, onde começou sua carreira. Ambos voltam a seu ponto inicial com um sentimento de fracasso.
Uma variação do nostos particularmente original se dá em A estética da indiferença. Michi e Hana vivem numa bolha de felicidade, que não é de segunda mão, como a casa no condomínio de Amaravati, nos arredores de Cromane. Siberí, filho da ausente Hana, com sua esposa Amara, visitam essa casa durante sua viagem de núpcias. Não poderíamos classificar como um regresso à casa stricto sensu: espécie de anti-Telêmaco, a chegada do filho e da nora não restaura a ordem e, apesar de não haver nenhum evento catalisador importante, essa passagem antecede, na narrativa, a crise no relacionamento de Michi e Hana.
O adultério da esposa não move Michi a ponto de abdicar da paz da casa. A notícia da doença letal que acomete o amante é recebida com mais alívio que satisfação, talvez com certo tédio onírico caracterizador da vida em Amaravati à espera pelo meteoro que Michi e Hana protagonizam. Michi apenas aguarda que Hana volte a casa e que tudo volte a ser como sempre foi. A ida ao teatro, ao final do livro, sintetiza os jogos de aparências que dramatizam como atores. É, também, para Michi, um regresso, mas não se sabe se ponto de partida ou chegada.
A Trilogia Cromane é um projeto coeso e que diz muito sobre essa solidão das mentes amaldiçoadas a conviver com a mediocridade para poder seguir vivendo. É sobre o existir, sobre o sonho (ou seu avesso) que se vive a despeito do cansaço, este cansaço que ronda como o escorpião, o bosque dos eucaliptos, os fantasmas do Disneylândia Drinks. Uma trilogia sobre essa fatia da existência que chamamos vida.
WELLINGTON DE MELO, romancista, poeta e editor. Publicou os romances Estrangeiro no labirinto e Felicidade, e o poema-livro O caçador de mariposas, entre outros.