Curtas

Ninguém pode com Nara Leão

Em biografia, jornalista Tom Cardoso detalha a personalidade inquieta da cantora

TEXTO Fernando Silva

01 de Julho de 2021

A cantora Nara Leão em 1958

A cantora Nara Leão em 1958

Foto Reprodução

[conteúdo na íntegra | ed. 247 | julho de 2021]

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Em cena do espetáculo Opinião, montado no Rio de Janeiro, Nara Leão (1942-1989) se apresentava ao público, desejando escapar de qualquer rótulo, incluído aí o de musa da bossa-nova. “Não acho que, porque vivo em Copacabana, só posso cantar determinado estilo de música”, dizia ela, na peça inspirada em seu segundo disco, Opinião de Nara, de 1964. E completava: “Eu quero cantar toda música que ajude a gente a ser mais brasileiro, que faça todo mundo querer ser mais livre e ensine a aceitar tudo, menos o que pode ser mudado”. Se tal crença era uma esperança de mudança para o país, sob ditadura militar, essa não era a única razão da fala. Como se pode ver na biografia Ninguém pode com Nara Leão (Planeta, 240 páginas), do jornalista Tom Cardoso, publicada em janeiro, esse era o seu mantra. 

O lançamento junta-se a Nara Leão – Uma biografia, de Sérgio Cabral (2000) na bibliografia sobre a cantora e acompanha a trajetória dessa capixaba de Vitória (ES) que foi para o Rio de Janeiro com um ano de idade. Criada numa família de classe média alta da zona sul da cidade, ela passa de ser apelidada de “Jacarezinho do Pântano”, devido à timidez, a virar uma estrela da música brasileira, desafiando generais e, já consagrada, decidindo se unir a nomes ainda desconhecidos, como Caetano Veloso, Gal Costa e Tom Zé, para lançar o Tropicalismo. 

A trama do livro, inclusive, começa na data da famigerada passeata contra a guitarra elétrica, ocorrida em São Paulo, em 17 de julho de 1967. Tom Cardoso descreve a situação na qual parte da MPB se achava naquele dia de inverno paulistano, de preocupação com o êxito da Jovem Guarda, assim como a posição de Nara em relação às reivindicações dos manifestantes. Debruçada na janela do Hotel Danúbio, ela não traía o espírito livre e ria dos discursos e do alvo do movimento liderado por Elis Regina (1945-1982).

De início, porém, nem passava pela cabeça de Cardoso ter a moça de franjas como tema de reportagem. Em entrevista à Continente, ele conta que Nara só cruzou seu caminho graças à bronca de um veterano da imprensa. Autor de obras como Tarso de Castro – 75 kg de músculos e fúria, sobre um dos fundadores do jornal O Pasquim, e Sócrates, biografia do camisa 8 da seleção brasileira que encantou o mundo na Copa de 1982, Tom Cardoso queria começar suas pesquisas a respeito de outro astro nacional. A ideia era contar a vida de Raul Seixas (1945-1989) em livro.

Para isso, seria bom ir à casa de Tárik de Souza, um dos decanos da crítica musical brasileira, no Rio de Janeiro. “Ele é louco por papel velho e guarda tudo o que é escrito sobre música desde os anos 1960. Tem um arquivo maravilhoso, e fui em busca da pasta do Raul”, relembra o jornalista carioca de 48 anos, radicado em São Paulo. Foi aí que recebeu um conselho. “Ele disse ‘pô, Raul é genial e tal, mas já se sabe quase tudo sobre ele. Por que você não escreve sobre a Nara?’,” A partir disso, nasceu o interesse. “Ela é um pouco estereotipada como a cantora da bossa-nova, do joelhinho bonito, de voz frágil, doce. E é muito mais do que isso: é uma artista de vanguarda”, define Cardoso.

Capa da biografia de Nara Leão, com fotografia da cantora olhando para a câmera e usando colar dourado e vestido vermelho.

Com prefácio assinado justamente por Tárik, a biografia monta o perfil de uma mulher inquieta, sempre em busca do novo. Alguém que cantou músicas de Nelson Cavaquinho (1911-1986) e Elton Medeiros (1930-2019); inspirou o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), o Vianninha, a criar o show Opinião – no qual ela contracenava com o sambista Zé Kéti (1921-1999) e o cantor maranhense João do Vale (1934-1996); descobriu Maria Bethânia em Salvador e deu corda a um estudante de arquitetura acanhado, um rapaz chamado Chico Buarque, para continuar compondo. Essa lista conta também, claro, com o fato de, ainda na adolescência, ter sido anfitriã da nata da bossa-nova na sala de 90 metros quadrados de seu apartamento, no terceiro andar de um prédio na avenida Atlântica, em Copacabana. 

O rompimento de Nara com a turma de velhos amigos é contado em detalhes no livro, que traz bastidores, por exemplo, de como dobrou o produtor e dono do selo Elenco Aloysio de Oliveira (1914-1995) a gravar seu primeiro disco, Nara (1964), com o foco em sambas de morro. “Isso é impressionante, porque ela sai da redoma, da bolha da bossa-nova, da qual era difícil sair. Se você for ver, os artistas da geração dela cantam bossa nova até hoje”, pontua Cardoso. “Ela sai da bossa nova, que era o amor, o sorriso e a flor, e vai se relacionar com o pessoal do Cinema Novo, do CPC, o Centro Popular de Cultura.”

A cantora abraça, então, outro grupo, mais engajado com pautas sociais: dá as mãos ao amigo Carlos Lyra, uma das figuras centrais do CPC, passa a namorar o cineasta Ruy Guerra, troca ideias com Glauber Rocha (1939-1981). E usa a voz para revelar injustiças do Brasil. Logo, igual a Bob Dylan ao eletrificar sua música (e o antecipando nisso), é tratada como traidora, principalmente, após matéria da revista Fatos & Fotos, na qual dizia que a bossa lhe dava sono.

A relação com a imprensa é outra faceta de Nara que ganha destaque. Sempre considerada recatada, ela se soltava diante da reportagem. Na mais famosa de suas entrevistas, em maio de 1966, criticava o regime militar, defendia um civil no poder e declarava ao Diário de Notícias que “os militares podem entender de canhão ou metralhadora, mas nada ‘pescam’ de política”. Ameaçada com um processo pelas Forças Armadas, ela ganha até poema de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) no jornal Correio da Manhã, em um pedido ao presidente Castello Branco (1897-1967) para não a prenderem. Nara escapa da cadeia e do título de “musa da canção de protesto”, cansada do engajamento obrigatório.

Repleta de histórias musicais, amorosas (casou-se com Cacá Diegues, com quem teve dois filhos) e políticas, Nara Leão já tem caminho livre para alcançar outro meio de comunicação. Segundo Cardoso, ela agora vai também ao cinema. “Eu vendi os direitos para o Maurício Farias, que fez um filme sobre a Hebe Camargo”, antecipa, sobre o diretor de Hebe – A estrela do Brasil, de 2019.

FERNANDO SILVA é jornalista.

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