Quando somos Holden, não prestamos atenção no professor Spencer e no Senhor Antolini. Salinger, muito habilmente, contrapõe a ira generalizada de Holden às ponderações das figuras de autoridade a quem ele voluntariamente recorre durante o desenrolar dos fatos que conta. O encontro de Holden com o professor Spencer – que lecionava História na mais recente escola da qual nosso herói foi expulso –, logo no começo do livro, acontece antes de percebermos que a maior aflição de Holden parece ser a ausência de ferramentas para enfrentar algo de que, no fim das contas, não podemos escapar: o amadurecimento.
Crescer não vem sem dor. Quando somos pequenos e os ossos das pernas doem, ouvimos que aquela é uma “dor de crescimento”. Talvez seja a primeira vez que alguém que amamos verbaliza pra nós que crescer traz o sofrimento atrelado a si. Ao lançar O chamado, disco em que, entre outras canções memoráveis, encontra-se Eu vi o rei, que compôs para o pai, falecido há pouco tempo na ocasião, a cantora Marina Lima vaticinou: “Eu sei que mudar muitas vezes dói, mas é na dor que a gente cresce”.
Holden vai até a casa do professor Spencer porque este lhe havia enviado um bilhete, pedindo que o procurasse lá, já sabendo que o protagonista não retornaria à escola. Ao entrar no quarto de Spencer, onde era por ele esperado, tudo o que Holden vê está ligado, para ele, à idade do professor (“…tinha lá seus 70 anos, ou até mais”): comprimidos, remédios, Vick Vaporub, o velho mestre em um roupão de banho “tristíssimo”, deixando à mostra suas pernas “de velho”, brancas e peladas. Depois de um diálogo sobre o pífio desempenho escolar de Holden, reprovado em cinco matérias, o professor Spencer lhe pergunta se ele não tem preocupações com o futuro. Holden diz que “Claro que tem”, mas não tanto, ao que Spencer responde: “Vai ter quando for tarde demais”. O professor lhe confirma, ainda, que, de fato, a vida é um jogo, que tem que ser jogado segundo as regras. Holden concorda sem muita veemência, pensa estar do lado certo dessa partida e vai embora acreditando que estão, ambos, em lados opostos do polo.
No meio desse interlúdio, o próprio Holden destaca, de modo aparentemente despretensioso, o fato de que ele tinha, então, 16 anos, e, apesar de medir 1,89m e ter o lado direito da cabeça todo grisalho, comportava-se como se tivesse 13. A informação justificava o fato de não agir como alguém da sua idade, e poderia ter passado despercebida no meio do sufocamento do ex-aluno pela cobrança do agora ex-professor; contrariamente, contudo, é primordial para ilustrar a sua dificuldade em se adequar ao que o mundo espera dele, e, mais, ao que é necessário para cumprir o inevitável rito de passagem entre a adolescência e a vida adulta.
Ao chegar a sua Nova York natal, depois de abandonar mais uma escola, Holden vive uma fuga de responsabilidades somada a tentativas reiteradas de reviver o passado, por meio de pessoas e lugares que lhe são familiares, e de forma a não se confrontar com o seu futuro. É de se esperar, todavia, ainda que a contragosto, que o passado tenha, com efeito, ficado para trás, e o presente não seja capaz de emulá-lo.
Encontrar-se novamente com uma ex-namorada não vai ressuscitar o seu irmão que faleceu quando era criança em decorrência de uma leucemia – e que tinha os cabelos tão vermelhos que não era nem preciso vê-lo. Bastava ter um palpite e se virar, do nada, para trás: Allie, o irmão, estaria lá. Essa pureza que Holden associada ao passado é idealizada, e sabemos disso porque vez ou outra voltamos a esse lugar em que, esmaecidas, as memórias, às vezes, trazem mais conforto do que a própria vivência do fato.
Quando, depois de seis anos, fui beijada de novo pelo ex-namorado que me apresentou a Salinger, não aconteceu nenhuma epifania que me remetesse, imediatamente, ao lugar idílico dos famosos bons e velhos tempos. Os fogos de artifício não estouraram. O fogo fátuo deu o tom.
Para Rodrigo Fresán, “A memória é uma inexplicável máquina do tempo, e o passado, uma quarta dimensão e um planeta alternativo com vida um pouco mais inteligente do que aquela que habita o presente. É porque no passado – chegando lá tanto tempo depois, porque o terrível do passado é o que só podemos observá-lo a partir do futuro – todos somos mais sábios”.
A síndrome de Peter Pan de Holden assume ares messiânicos quando, já tendo perdido a inocência (embora se recuse a admiti-lo) e confrontado com a incapacidade de recuperá-la, ele se enxerga como a figura que dá título ao livro: “Enfim, eu fico imaginando um monte de criancinhas brincando de alguma coisa num imenso campo de centeio e tal. Milhares de criancinhas e ninguém está por ali – ninguém adulto, assim – fora eu. E eu estou parado na borda de um penhasco maluco. O que tenho que fazer é que tenho que pegar todo mundo se eles forem cair do penhasco – quer dizer, se eles estiverem correndo e não olharem para onde vão eu tenho que aparecer de algum lugar e apanhar eles. Era a única coisa que eu ia fazer o dia todo. Eu ia ser o apanhador no campo de centeio e tal. Eu sei que é doido, mas é a única coisa que eu queria ser de verdade. Eu sei que é doido”.
Em seu poema Recuperação da adolescência, Ana Cristina César escreveu que
é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço.
Holden não pode ser a âncora dos navios-crianças que ele quer que pairem na linha do abismo. Envelhecer é sorte, o fim é o chão, e tudo o mais entre estar à beira do abismo e chegar ao solo se passa durante o salto.
Os mais de 20 anos de leituras de O apanhador no campo de centeio me transformaram no professor Spencer e no Sr. Antolini. A teenage angst de Holden dá a tônica do livro, no melhor estilo daquela canção do Radiohead: “But I’m a creep/ I’m a weirdo/ What the hell am I doin’ here?/ I don’t belong here”. Em relação a ela, a angústia, o Sr. Antolini dispara: “Entre outras coisas, você vai descobrir que não é a primeira pessoa da história a ficar confusa e assustada e até a sentir repulsa pelo comportamento humano. Você não está de modo algum sozinho nessa posição, vai ficar empolgado e estimulado ao descobrir. Muitos, mas muitos homens tiveram problemas morais e espirituais tão grandes quanto os que você tem agora. Para nossa felicidade, alguns deles registraram seus problemas. Você vai aprender com eles – se quiser”.
Quando olhei fixamente para o abismo e ele, finalmente, me olhou de volta, deixei de ser Holden.
BIANCA DIAS, advogada e escritora diletante.