Comentário

Holden Caulfield, o apanhador no campo de centeio

Há 60 anos, os leitores tinham o primeiro contato com o personagem da obra de J. D. Salinger

TEXTO Bianca Dias

01 de Julho de 2021

Ao chegar a Nova York, depois de abandonar mais uma escola, Holden vive uma fuga de responsabilidades somada a tentativas de reviver o passado

Ao chegar a Nova York, depois de abandonar mais uma escola, Holden vive uma fuga de responsabilidades somada a tentativas de reviver o passado

Ilustração Rafael Olinto

[conteúdo na íntegra | ed. 247 | julho de 2021]

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Fui à estante procurar as minhas edições dos livros de J. D. Salinger. Ou às estantes, já que, na primeira busca, localizei apenas as edições em inglês dos únicos quatro livros publicados em vida pelo autor: uma brochura de The catcher in the rye, da Little, Brown Books de 1991, cuja capa emula a da primeira edição do livro, de 1951; outros três volumes da mesma editora, do mesmo ano, porém com capas diferentes daquele primeiro e iguais entre si quanto ao design, sendo um Nine stories (que ganhei de um ex-namorado em 2000) e outros dois volumes iguais de The catcher in the rye (um deles dado, na mesma ocasião, pelo mesmo ex-namorado, e o outro idêntico que, creio, provavelmente adquiri em um sebo para acompanhar os demais, imaginando erradamente que se tratava de Franny and Zooey). Ainda, dois livros editados pela Penguin: Raise high the roof beam, Carpenters & Seymour: an introduction e Franny and Zooey, em edições de 2010, além de mais outra edição de Franny and Zooey, de 2014, cuja última página guarda uma nota fiscal da Livraria Cultura, quase apagada, em nome de um ex-namorado diferente, em 2015.

Mas o que eu realmente pretendia encontrar eram as primeiras edições dos livros de Salinger que havia comprado em português. Sabia que fazia muito tempo que os tinha lido, sabia que eram anteriores ao ano 2000, e sabia disso porque não foi o ex-namorado daquela (falsa) virada de milênio quem me apresentou ao autor. Achei os livros, todos da Editora do Autor, em outra estante; localizei, também, em outro lugar da casa, os quatro volumes das novas edições em português lançadas pela Editora Todavia entre 2019 e 2020.

Ao rememorar como conheci Salinger – por meio de um namorado antigo, com quem vim a me casar (e de quem me separei) depois e que me deu de presente as versões, em português, de O apanhador no campo de centeio e Nove estórias (sic), comprados por cinco reais, cada, na calçada de um sebo de uma cidade de 210.000 habitantes no interior de São Paulo, no fim do século XX – enquanto inventariava seus livros, dei-me conta de como minha vida e meus relacionamentos amorosos estavam atravessados por J. D. Salinger. E percebi, pela primeira vez, que, de algum modo, era provável que eu e o autor estivéssemos, da mesma maneira, emaranhados na memória dos meus ex-parceiros, considerando as múltiplas edições que ganhei de presente dos mais variados namorados, em épocas tão distintas e longínquas umas das outras.

A construção da identidade é um processo, e é por isso que não termina até que nós mesmos estejamos terminados. O olhar do outro sobre nós é parte constitutiva do que somos, ainda que nos cause as mais diversas sensações, do conforto ao estranhamento, do acolhimento à negativa. Talvez o olhar dessas pessoas sobre mim, à luz da obra de J. D. Salinger, seja parte de como sou vista desde o fim da década de 1990 e até mais de 20 anos depois. O mundo, as relações e eu mudamos; o impacto de O apanhador no campo de centeio na construção da minha subjetividade, não.

A única maneira pela qual consigo discorrer sobre o Apanhador é, portanto, de um lugar absolutamente pessoal. Esse lugar também é, muitas vezes, um não lugar, porque há sentimentos que não se convertem em palavras. A emulação por escrito do que Holden Caulfield desperta internamente é semelhante ao simulacro de vida que ele critica ao longo de todo o livro, o qual começa com seu colapso nervoso e termina no lugar onde se iniciou – de maneira, entretanto, que a volta inteira é tudo menos um retorno ao ponto de partida. O giro completo é uma meia-volta, porque leva Holden e, em sua esteira, todos nós, a um extremo oposto, onde a revolta em relação ao sistema é abafada com remédios, tudo o que é “fajuto”, palavra que ele adora, é padrão e imperativo, e, sintomaticamente, um fugaz vislumbre de felicidade está em ver sua irmã caçula Phoebe, de casaquinho azul, girando e girando, sem sair do lugar, em um carrossel.

Ainda assim, o que dispomos para nos comunicar é da linguagem, e o que resta é tentar.

Li O apanhador no campo de centeio no exato momento em que o deveria ter lido, quando não era madura o suficiente para ser considerada adulta, mas já havia saído de casa. A imersão literária tem seu próprio tempo, e um desvio nesse instante altera por completo o impacto da experiência. Depois dessa primeira leitura, e em muitas outras (incontáveis) depois dela, eu era, natural e absolutamente, é claro, sempre o próprio Holden Caulfield, e mais ninguém.

Os acontecimentos narrados se passam em três dias, não obstante a vida inteira do protagonista esteja condensada nesse intervalo. A angústia adolescente de Holden é uma metralhadora giratória: ele questiona o sistema educacional, as relações familiares, os relacionamentos amorosos, a corrupção do homem pela perda da inocência, a solidão, a desesperança e, o que parece levá-lo a sucumbir, a impossibilidade de viver sem amadurecer. É fácil compadecer-se de Holden, identificar-se com Holden ou se achar o próprio Holden: a perda das ilusões é um lugar no qual não queremos estar. Ser Holden é achar que o mundo nos deve algo, que o exercício da individualidade é tolhido pelos “figurões todos” que estão do lado certo do jogo da vida, é perceber que pagar por sexo com alguém da nossa idade, quando somos adolescentes, é indecente e nauseante, que alguém deveria nos salvar de tudo isso, e que, se ninguém o fizer, assumiremos, nós mesmos, o papel de salvadores dos mais fracos e mais inocentes do que nós.


Recente edição da Todavia traz na capa ilustração
da primeira publicação do romance, de 1951

Quando somos Holden, não prestamos atenção no professor Spencer e no Senhor Antolini. Salinger, muito habilmente, contrapõe a ira generalizada de Holden às ponderações das figuras de autoridade a quem ele voluntariamente recorre durante o desenrolar dos fatos que conta. O encontro de Holden com o professor Spencer – que lecionava História na mais recente escola da qual nosso herói foi expulso –, logo no começo do livro, acontece antes de percebermos que a maior aflição de Holden parece ser a ausência de ferramentas para enfrentar algo de que, no fim das contas, não podemos escapar: o amadurecimento.

Crescer não vem sem dor. Quando somos pequenos e os ossos das pernas doem, ouvimos que aquela é uma “dor de crescimento”. Talvez seja a primeira vez que alguém que amamos verbaliza pra nós que crescer traz o sofrimento atrelado a si. Ao lançar O chamado, disco em que, entre outras canções memoráveis, encontra-se Eu vi o rei, que compôs para o pai, falecido há pouco tempo na ocasião, a cantora Marina Lima vaticinou: “Eu sei que mudar muitas vezes dói, mas é na dor que a gente cresce”.

Holden vai até a casa do professor Spencer porque este lhe havia enviado um bilhete, pedindo que o procurasse lá, já sabendo que o protagonista não retornaria à escola. Ao entrar no quarto de Spencer, onde era por ele esperado, tudo o que Holden vê está ligado, para ele, à idade do professor (“…tinha lá seus 70 anos, ou até mais”): comprimidos, remédios, Vick Vaporub, o velho mestre em um roupão de banho “tristíssimo”, deixando à mostra suas pernas “de velho”, brancas e peladas. Depois de um diálogo sobre o pífio desempenho escolar de Holden, reprovado em cinco matérias, o professor Spencer lhe pergunta se ele não tem preocupações com o futuro. Holden diz que “Claro que tem”, mas não tanto, ao que Spencer responde: “Vai ter quando for tarde demais”. O professor lhe confirma, ainda, que, de fato, a vida é um jogo, que tem que ser jogado segundo as regras. Holden concorda sem muita veemência, pensa estar do lado certo dessa partida e vai embora acreditando que estão, ambos, em lados opostos do polo.

No meio desse interlúdio, o próprio Holden destaca, de modo aparentemente despretensioso, o fato de que ele tinha, então, 16 anos, e, apesar de medir 1,89m e ter o lado direito da cabeça todo grisalho, comportava-se como se tivesse 13. A informação justificava o fato de não agir como alguém da sua idade, e poderia ter passado despercebida no meio do sufocamento do ex-aluno pela cobrança do agora ex-professor; contrariamente, contudo, é primordial para ilustrar a sua dificuldade em se adequar ao que o mundo espera dele, e, mais, ao que é necessário para cumprir o inevitável rito de passagem entre a adolescência e a vida adulta.

Ao chegar a sua Nova York natal, depois de abandonar mais uma escola, Holden vive uma fuga de responsabilidades somada a tentativas reiteradas de reviver o passado, por meio de pessoas e lugares que lhe são familiares, e de forma a não se confrontar com o seu futuro. É de se esperar, todavia, ainda que a contragosto, que o passado tenha, com efeito, ficado para trás, e o presente não seja capaz de emulá-lo.

Encontrar-se novamente com uma ex-namorada não vai ressuscitar o seu irmão que faleceu quando era criança em decorrência de uma leucemia – e que tinha os cabelos tão vermelhos que não era nem preciso vê-lo. Bastava ter um palpite e se virar, do nada, para trás: Allie, o irmão, estaria lá. Essa pureza que Holden associada ao passado é idealizada, e sabemos disso porque vez ou outra voltamos a esse lugar em que, esmaecidas, as memórias, às vezes, trazem mais conforto do que a própria vivência do fato.

Quando, depois de seis anos, fui beijada de novo pelo ex-namorado que me apresentou a Salinger, não aconteceu nenhuma epifania que me remetesse, imediatamente, ao lugar idílico dos famosos bons e velhos tempos. Os fogos de artifício não estouraram. O fogo fátuo deu o tom.

Para Rodrigo Fresán, “A memória é uma inexplicável máquina do tempo, e o passado, uma quarta dimensão e um planeta alternativo com vida um pouco mais inteligente do que aquela que habita o presente. É porque no passado – chegando lá tanto tempo depois, porque o terrível do passado é o que só podemos observá-lo a partir do futuro – todos somos mais sábios”.

A síndrome de Peter Pan de Holden assume ares messiânicos quando, já tendo perdido a inocência (embora se recuse a admiti-lo) e confrontado com a incapacidade de recuperá-la, ele se enxerga como a figura que dá título ao livro: “Enfim, eu fico imaginando um monte de criancinhas brincando de alguma coisa num imenso campo de centeio e tal. Milhares de criancinhas e ninguém está por ali – ninguém adulto, assim – fora eu. E eu estou parado na borda de um penhasco maluco. O que tenho que fazer é que tenho que pegar todo mundo se eles forem cair do penhasco – quer dizer, se eles estiverem correndo e não olharem para onde vão eu tenho que aparecer de algum lugar e apanhar eles. Era a única coisa que eu ia fazer o dia todo. Eu ia ser o apanhador no campo de centeio e tal. Eu sei que é doido, mas é a única coisa que eu queria ser de verdade. Eu sei que é doido”.

Em seu poema Recuperação da adolescência, Ana Cristina César escreveu que

é sempre mais difícil

ancorar um navio no espaço.

Holden não pode ser a âncora dos navios-crianças que ele quer que pairem na linha do abismo. Envelhecer é sorte, o fim é o chão, e tudo o mais entre estar à beira do abismo e chegar ao solo se passa durante o salto.

Os mais de 20 anos de leituras de O apanhador no campo de centeio me transformaram no professor Spencer e no Sr. Antolini. A teenage angst de Holden dá a tônica do livro, no melhor estilo daquela canção do Radiohead: “But I’m a creep/ I’m a weirdo/ What the hell am I doin’ here?/ I don’t belong here”. Em relação a ela, a angústia, o Sr. Antolini dispara: “Entre outras coisas, você vai descobrir que não é a primeira pessoa da história a ficar confusa e assustada e até a sentir repulsa pelo comportamento humano. Você não está de modo algum sozinho nessa posição, vai ficar empolgado e estimulado ao descobrir. Muitos, mas muitos homens tiveram problemas morais e espirituais tão grandes quanto os que você tem agora. Para nossa felicidade, alguns deles registraram seus problemas. Você vai aprender com eles – se quiser”.

Quando olhei fixamente para o abismo e ele, finalmente, me olhou de volta, deixei de ser Holden.

BIANCA DIAS, advogada e escritora diletante.

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