Portfólio

Fabiana Faleiros

O gesto de empreender em linguagens diversas

TEXTO Gianni Gianni

01 de Julho de 2021

'Mastur Bar', exposição 'Ain’t nobody business', Ucrânia, 2019

'Mastur Bar', exposição 'Ain’t nobody business', Ucrânia, 2019

Foto Bel M./Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 247 | julho de 2021]

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“Lady Incentivo, Estação Iracema, MasturBar são o quê? Grandes instituições empreendedoras.” Com o humor que lhe é característico, Fabiana avalia alguns de seus principais trabalhos. Uma leitura irônica de projetos que refletem seus anos de pesquisa sobre subjetividade, neoliberalismo e tecnologias da comunicação. Sobretudo a persona Lady Incentivo e a instalação MasturBar são dois marcos de sua presença artística e política no show business. Brincadeiras à parte, seu percurso como criadora é atravessado, sim, pelo gesto de empreender – no sentido de lançar – ações em linguagens diversas.

Sua trajetória aponta o permanente convívio com o ímpeto de criar, ainda que a compreensão dos seus materiais tenha surgido de forma processual. Quando adolescente, seu grande desejo era tornar-se atriz, chegando a cursar teatro aos 15 anos. A timidez, porém, não permitiu que a gaúcha insistisse nessa formação por muito tempo. “Faltava uma expressão em palco, porque eu tinha muita vergonha”, relembra. Quando chegou o momento de ir para a faculdade, no final dos anos 1990, decidiu cursar Publicidade e Propaganda, visando ao trabalho com criação nos bastidores. É nessa fase que se aproxima de uma série de códigos e gêneros que irá mobilizar de forma diversa no campo artístico, como as logomarcas.


Mastur Bar, 10ª Bienal de Berlim, 2018. Imagem: Timo Ohler/Divulgação


Livro
O pulso que cai e as tecnologias do toque, 2016. Imagem: Fabiana Faleiros/Divulgação

Em 2003, pouco após se formar, Fabiana se mudou para São Paulo, cidade onde boa parte de sua produção foi desenvolvida e que também integra o tecido de sua obra. Naquele momento inicial esteve mais dedicada à produção de poemas e composições. Logo criou um blog e fez amizade com a conterrânea Angélica Freitas. Ambas são naturais de Pelotas, no Rio Grande do Sul, porém se conheceram na Rua Barão de Tatuí, no Bairro de Santa Cecília, na capital paulista. Onde Angélica morava. E Fabiana também.

Aproximou-se do círculo de pessoas que escreviam em blogs, mas seguia interessada por produtos híbridos e não por um caminho necessariamente literário. No mestrado em Comunicação e Semiótica, cursado na PUC-SP, pesquisou sobre a ideia de “tamagotchização” de si; além disso, trabalhou como designer por um breve período. Esse amálgama de experiências ainda não apontava um encaminhamento artístico claro, então Fabiana desenvolvia algumas obras pontuais, como o livro artesanal intitulado GettyImages, que dialogava com os bancos de imagens da internet. Devido a essa publicação, recebeu convite do curador da Galeria Vermelho para participar de uma exposição ligada às noções de remix e de reprogramação do mundo, dentro da perspectiva do crítico Nicolas Bourriaud.

No campo das proposições envolvendo escrita e tecnologia, Fabiana também publicou Tudo que escrevi durante o mês, livro criado com a ajuda do programa logiquest, que registrava tudo que era escrito no seu computador, inclusive os comandos, como alt e delete; o resultado é uma experiência textual que capta os esforços da máquina e trava a legibilidade típica. Esse trabalho foi pensado dentro de uma formação realizada com o artista Fábio Morais.

Enquanto os exercícios com texto e imagem prosseguiam, duas experiências ativaram novas questões na sua produção. A primeira é a passagem pela ONG do Ateliê Acaia. Fabiana trabalhou para a organização, de 2008 a 2011, como educadora de comunicação, com jovens da Favela do Nove, da Favela da Linha e do conjunto habitacional Cingapura. “Eu ensinava-os a fazer e-mail e subir vídeo no Youtube, eles me ensinavam a dançar passinho. A gente ouvia muito funk. No final, fui demitida”, conta.

Nesse início de década, a artista começa a trazer o próprio corpo para o centro da obra. Justamente em 2011, inicia o Projeto Linha Amarela ao lado do amigo Rafael RG, incentivando a ocupação da Rua Augusta. A ação era um gesto de resistência e desbunde contra a gentrificação que ganhava força naquela área; os performers dançavam na rua e convidavam outros atores a se juntar, como os carros tunados que passavam tocando funk. “Todo final de semana a gente ia fazer isso, mas não começou com a ideia de ser um projeto de arte. Era e não era, porque depois a gente fez um vídeo, gravou, registrou”, explica. 

Realização, exposição residência Red Bull. Imagem: Fabiana Faleiros/Divulgação

Data desse período o surgimento da Lady Incentivo, que nasceu em outro contexto festivo: os eventos da Voodoohop. Fabiana relembra que as festas eram comandadas basicamente por DJs homens e, por isso, ela pegava o microfone e começava a criar letras. “Lady Incentivo é essa coisa de fazer a sua própria lei, a subjetividade neoliberal, a lei de incentivo: eu vou lá, eu faço as coisas, eu pego o microfone”, observa. Não é por acaso também que, nesse momento, as questões feministas começam a adentrar no seu projeto de modo mais consciente. “Eu estava atrasada, não tinha nenhuma leitura feminista”, observa.

Lady Incentivo, uma instituição empreendedora, como definiu Fabiana, se desdobrou em diversas ações durante alguns anos. Era uma artista de boate que trafegava pelas artes; gravou disco e seguiu fazendo performances em festas, nas unidades do Sesc e em espaços artísticos. Também lançou três videoclipes: Masturbar, Tigresa e Sou foda. A timidez da adolescente, a essa altura, estava totalmente vencida, o que Fabiana atribui aos trabalhos com o canto e com a voz. O tema do prazer começava a ganhar mais terreno nas suas invenções, sempre tensionando as noções de gozo e poder, liberdade e controle. Em 2013, Lady Incentivo tornou-se ainda o objeto de estudo do seu doutorado, desenvolvido na UERJ e orientado por Ricardo Basbaum.

INSTALAR-SE
Recife, de onde editamos esta revista, foi chão da primeira individual de Fabiana Faleiros. Por meio de uma residência promovida pela Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), em 2014, surgiu o Museu da Polícia Militar. A ação instalativa propunha uma instituição que não praticava a aquisição, mas, sim, a apreensão de obras. Neste trabalho, os gêneros textuais e a publicidade ressurgiam na criação de boletins de ocorrência, logomarca e cartazes. Destacava-se também a instalação sonora realizada a partir de radinhos comprados em camelôs. 

Essa possibilidade de formular um espaço físico ativado por objetos, imagens, palavras, performances e reflexão foi refinada com o MasturBar, cuja primeira temporada ocorreu em 2015. Uma série de obras foi desenvolvida para compor esse bar itinerante com ares de cabaré e inferninho. Nele, ocorriam as aulas-shows, momentos que mesclavam música e a exposição da pesquisa de Fabiana a respeito do gesto de desmunhecar. “Formulei uma genealogia do desmunhecar, desde o século XVI até a vibração do celular, pensando no passado, presente e futuro neste microuniverso. Falava da criação dos vibradores para curar histeria, do gesto de desmunhecar nos corpos nobres, na revista Vogue”, explica. Essa pesquisa pode ser conferida no livro O pulso que cai e as tecnologias do toque.

O projeto percorreu várias cidades do Brasil, como São Paulo, Porto Alegre e Belém; entrou no circuito internacional, passando por países como Cuba e Colômbia; e se fez presente na 10ª Bienal de Berlim, em 2018. A essa altura, o nome Fabiana Faleiros evocava temas como o erotismo e o feminismo, comumente sublinhados com humor e improvisação. Esse traço cômico também aparece no Seminário da Fofoca, projeto de 2018 realizado na Funarte. “Fofoca é uma palavra que foi muito injuriada, mas que se refere à tradição oral”, observa. A ação consistia em um espaço de conversa com almofadas que carregavam dizeres como, por exemplo, “o destino da bonita é ser feia”.




Seminário da Fofoca, exposição Iminência de tragédia, 2018. Imagem: Jenny Fonseca/Divulgação

NOVOS CONTORNOS 
Uma série de acontecimentos pessoais após o sucesso de MasturBar conduziu Fabiana a novos questionamentos. O fim da tese, uma separação e a morte da irmã impulsionaram outros atos de criação. De um lado, viu-se amadurecida para se afirmar enquanto pensadora da comunicação e das artes, passando a atuar com grupos de estudo de forma independente. De outro, os traços de improvisação e humor foram ficando mais diluídos, porém não foram renegados ou abandonados. “Me vejo buscando métodos mais ordenados, atenta ao tempo de gestar a própria obra, dando contornos. Compreendo que a dor também precisa aparecer; então, como transitar entre dor e alegria sem tratá-las como opostos?”, questiona a artista. 

Ela tem se interessado por pensar obras relacionadas à cura e ao corpo, mas “não quero partir das coisas do mundo e fazer um ready-made, agora eu tô num processo que me leva a pensar os objetos em si. Estou querendo fazer uma estátua que mama na própria teta, dá autonutrição, porém ainda pesquisando materiais”. Essas ideias estavam muito presentes durante a residência que realizou no município de Maquiné, no litoral norte do Rio Grande do Sul, em fevereiro deste ano. 

Na ocasião, acabou se envolvendo com outra proposta a partir de um material bastante específico: as lágrimas de Nossa Senhora. São sementes de uma planta que nasce na beira do rio, comumente utilizadas para fazer colar de contas, terços e objetos indígenas. Com o pó triturado da semente, a artista fez um pão, um pão com as lágrimas de Nossa Senhora, que distribuiu entre as pessoas dos arredores de onde estava instalada. Ela ainda realizou um vídeo desse trabalho e está empenhada na escrita de um novo livro – impulsionado pela imersão nessa residência e pela ideia de escrita como renascimento – que vai se chamar reencadernação. “Tenho pensado em como nós temos responsabilidade por manter a frequência energética da vida e das coisas, nesse lugar de autonutrição e da deidade que nós carregamos”, conclui.

GIANNI GIANNI, jornalista, escritora e arteterapeuta em formação.

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