Com quantos quilos de medo se faz uma tradição? A pergunta que Tom Zé direciona aos ouvintes poderia ecoar pelos corredores recheados de obras da exposição Língua solta, curada pelos pernambucanos Fabiana Moraes e Moacir dos Anjos e instalada no Museu da Língua Portuguesa, no centro de São Paulo. Ainda que a canção não esteja efetivamente presente na mostra, o questionamento atravessa as fricções produzidas pela junção de artistas, linguagens e suportes ali apresentados. O conjunto robusto de trabalhos, prazerosamente cacofônico, parece se propor a cartografar a complexidade da língua vivida em suas instâncias mais orgânicas e despreocupadas. Nesse sentido, se recusa categoricamente a pedir licença para questionar parte de uma tradição linguística, e também artística, historicamente violenta e silenciadora.
De antemão, a mostra temporária participa de um importante marco simbólico e material: a reabertura do popular equipamento paulistano, localizado nas dependências da centenária Estação da Luz, após o incêndio que o consumiu em dezembro de 2015. Já apresentada a um pequeno número de visitantes, a mostra poderá ser vista novamente na aguardada reabertura do museu, programada para o dia 31 de julho (data passível de mudança, a depender da situação sanitária na cidade de São Paulo). Após um processo de reformulação e reconstrução que durou seis anos, o equipamento reabrirá também com uma nova versão de sua exposição de longa duração, que, por ser fundamentalmente digital, teve condições de ser recuperada após o incêndio.
Exposição reúne cerca de 180 obras de mais de uma centena de artistas.
Fotos: Renato Contente
A grande quantidade de obras (180, de cerca de 100 artistas) presente em Língua solta induz a uma experiência mais dinâmica e participativa do que propriamente contemplativa. Constantemente provocativa, a mostra desloca, realoca e desloca novamente nuances de uma língua liberta, enérgica e hiperinventiva. É uma exposição que convida seus frequentadores a ousarem se perder entre obras e narrativas falsamente dispersas, e a criarem seus próprios descaminhos e novas vivências da língua que se coloca diante deles em estado de ebulição. Nesse sentido, dividem espaço entre as paredes do museu um parangolé de Hélio Oiticica (onde se lê a inscrição “Incorporo a revolta”), placas comerciais (“Vende-se Dudu”, “Latão 2,50”), obras de Leonilson, pixos, memes do coletivo Saquinho de Lixo, as placas de celebridades de Sérgio Ruiz, cartas de moradores do Complexo da Maré à Justiça e panos de prato evangélicos de anônimos (e outros mais seculares de Marie Carangi).
Também estão lá quadrinhos de Henfil, bandeiras-oráculo com canções populares de Haroldo Saboia (“Quero ter olhos pra ver a maldade desaparecer”), vídeos sobre o método de alfabetização para adultos de Paulo Freire, pinturas de Vânia Mignone, poemas de Miró da Muribeca (“Beijar é melhor que revólver”), a placa da rua Marielle Franco, bandeiras-protesto de Ana Lira, um boné vermelho bordado de Reinaldo Figueiredo (“Faça a Casa Grande De Novo”) e majestosos estandartes de maracatus da Zona da Mata pernambucana, entre outros tantos trabalhos eloquentes. Em conjunto, essas obras acionam tensionamentos importantes entre o erudito e o “popular”, ao passo em que sinalizam novas possibilidades de políticas da linguagem potencialmente subversivas.
Em entrevista à Continente, os curadores contaram que alguns núcleos de composição foram se delimitando ao longo do processo de curadoria. São eles Mídia, Pedagogia, Resistência, Rua e Casa. Na visão de Moacir dos Anjos, esses núcleos foram importantes no processo de seleção das obras, mas não aparecem de maneira segmentada na exposição. “Essas coisas, no mundo, aparecem muito misturadas. Então nós soltamos esses núcleos, ‘soltamos essa língua’ na sala de exposição e buscamos apresentar as obras da maneira mais livre possível”, sublinhou.
Para Fabiana Moraes, uma outra especificidade conduziu parte significativa da concepção da exposição: o tensionamento entre elementos contemporâneos e populares. “Além do ajuntamento entre o que é tido como contemporâneo e popular, trabalhamos com a ideia de popular estendido, que excede o que é referido como ‘cultura popular’ tradicional. Na exposição, todos esses elementos, tanto do contemporâneo quanto desse popular estendido, têm relação com a palavra impressa, inscrita, dita”, comentou.
Fabiana também pontuou que uma preocupação que orientou parte do processo de curadoria foi a de horizontalizar expressões, ideias e proposições as quais comumente são atribuídas as nomenclaturas de contemporâneas e populares, eruditas e tradicionais. “O que nos interessava era o que essas obras dizem e significam juntas. Essa união também comunica muito quando você pensa o que essas hierarquizações significam em um país como o Brasil, que celebra a camarotização, o espaço VIP, a desigualdade. Apresentamos as obras juntas, mas não necessariamente em comunhão, porque existe tensão entre os objetos, entre as questões que estão ali expostas. Não buscamos de forma alguma apaziguar ou acalmar as pessoas. São cutucadas”, definiu.
Para ambos os curadores, a exposição carrega uma simbologia diferenciada ao ter sido eleita para demarcar a reabertura do Museu da Língua Portuguesa, em um contexto no qual a cultura – e a própria população, tendo em vista a gestão desastrosa da pandemia da Covid-19 – vem sofrendo tentativas sistemáticas de dizimação sob o atual governo federal (outro questionamento de Tom Zé, da mesma Senhor cidadão, vem à mente: “Eu quero saber com quantas mortes no peito se faz a seriedade”).
Para Moacir, há várias camadas de simbologia envolvidas no processo da exposição, mas ele ressalta a associação entre a proposta de uma língua solta e a ideia de democracia. “A língua solta é essa língua que está o tempo todo nos propondo situações novas, nos confrontando com desejos dos outros, nos colocando questões, interdições. É essa língua que a gente encontra em qualquer lugar das nossas vidas. E a democracia é um pouco isso, esse confronto com o diferente, com os desejos do outro, essas negociações, esse escavar coisas novas na sociedade”, complementou.
A proposta inicial da curadora especial do museu, Isa Grinspum Ferraz, era de que Língua solta fosse uma mostra permanente. Dessa maneira, contrastaria com a exposição digital de longa duração que estreou junto ao espaço, em 2006, e que foi atualizada para a reabertura pós-incêndio. No entanto, devido às limitações estruturais para se manter um acervo físico a longo prazo, optou-se por uma mostra temporária, mas de temporalidade ampliada. A mostra está programada para permanecer em cartaz até 3 de outubro, mas este prazo pode ser estendido, caso a reabertura do museu seja postergada. De acordo com a diretora técnica do museu, Marília Bonas, está sendo modelado um projeto para buscar apoiadores para uma itinerância da mostra em outras cidades brasileiras e países lusófonos.
Seria mesmo bastante oportuno se mais pessoas pudessem se perguntar com quantos quilos de medo se faz uma tradição, e ainda ousassem responder quanta artilharia concreta e simbólica é necessária para dinamitarmos aquilo que tenta nos dizimar e nos relegar ao silêncio.
Placa do curitibano Sérgio Ruiz: cruzamento entre arte popular e cultura de celebridades. Foto: Renato Contente
REABERTURA
A reabertura do Museu da Língua Portuguesa estava programada para março de 2020, mas foi postergada devido à eclosão da pandemia da Covid-19 no país. Caso a reabertura ocorra na nova data planejada, o museu poderá ser visitado a partir de 31 de julho, mediante horários marcados antecipadamente pela internet para garantir o cumprimento de medidas sanitárias.
Língua solta retoma o fluxo de exposições temporárias paralelas à exposição de longa duração do museu, que voltará a ser apresentada ao público reformatada. A próxima mostra de curta duração será Língua de imigrantes, programada para novembro, com trabalhos assinados por diversos artistas que trazem diferentes perspectivas da experiência de imigrantes em São Paulo.
Foi justamente na última mostra temporária do museu, dedicada ao historiador Câmara Cascudo, em que teve início o incêndio que destruiu parte significativa do prédio acoplado à Estação da Luz, no centro de São Paulo, no dia 21 de dezembro de 2015. De 2016 até hoje, foram investidos 81,4 milhões de reais para a restauração e ampliação do equipamento (com aportes do governo de São Paulo, da iniciativa privada e da seguradora), que se somam aos 37 milhões de reais gastos em sua construção inicial. A reconstrução abrangeu o restauro das quatro fachadas do prédio e a recuperação e reconstrução das esquadrias de madeira, além de novas instalações elétricas, hidráulicas, de climatização e de combate a incêndios. Atualmente, quem gere o espaço é a organização social de cultura IDBrasil, em convênio com o governo paulista e a Fundação Roberto Marinho, associada ao museu desde a sua fundação.
Entre as novidades anunciadas pela diretora técnica do museu, Marília Bonas, estão a inauguração de um Centro de Referência da Língua Portuguesa no espaço, que congrega as áreas de pesquisa e preservação do museu, e o projeto de arte-educação Escola, Museu e Território, com as escolas das regiões próximas ao museu. Também está na ativa um projeto que promove uma articulação entre os equipamentos culturais da região e alguns coletivos sociais que atuam nesse território, onde grupos como prostitutas, moradores de rua e dependentes químicos estão significativamente vulnerabilizados. Entre os equipamentos articulados nessa frente estão o Memorial da Resistência (ex-sede do DOPS), o Museu da Energia, o Museu de Arte Sacra e o Sesc.
Fabiana Moraes e Moacir dos Anjos, curadores da mostra. Foto: Alcione Ferreira/Divulgação
Na visão de Marília, o processo pós-incêndio fez com que o museu se voltasse mais à questão da preservação da memória. “Ele nasce como uma grande exposição midiática e tecnológica e, ao longo de sua trajetória, foi incorporando fortemente a questão da memória. Isso foi potencializado pelas diretrizes que acompanham o espaço desde a sua primeira concepção, especialmente o compromisso contra o preconceito linguístico e a diversidade, em termos de valorizar os falares e iluminar resistências”, comentou.
A curadora Isa Grinspum Ferraz, responsável pela primeira versão da exposição de longa duração e de sua atualização (assim como pela escolha das exposições temporárias), ressaltou que as diretrizes da primeira versão permanecem, mas foram ampliadas em termos de diversidade e tecnologia.
“A língua mudou, e as tecnologias também. Havia muito o que trabalhar ali, mas sem perder os eixos fundamentais que nortearam a concepção do museu, como as especificidades e riquezas do português enquanto uma variante brasileira e a presença global da língua. Mudamos várias instalações da exposição original, mas sobretudo demos a ela um caráter político mais marcado, no sentido de que é um museu que pretende colocar em confronto, em tensão, diferentes perspectivas, diferentes pontos de vista”, definiu a curadora.
RENATO CONTENTE, mestre em Comunicação e doutorando em Sociologia pela UFPE. É autor do livro Não se assuste, pessoa! – As personas políticas de Gal Costa e Elis Regina na ditadura militar.