O antiacarajé atômico – Dias pandêmicos
Escritor e curador Diógenes Moura lança livro que testemunha, em crônicas e fotos, o período de isolamento social
TEXTO Adriana Dória Matos
01 de Março de 2021
Autor publica um testemunho de momentos da pandemia no centro de São Paulo
FOTO DIÓGENES MOURA/ DIVULGAÇÃO
[conteúdo na íntegra | ed. 243 | março de 2021]
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Temos neste livro belo e sombrio um conjunto de anotações diárias a respeito de um pedaço de mundo – no caso, o bairro central paulistano de Campos Elíseos – atingido pelo apocalipse pandêmico, num contexto humano já colapsado faz tempo. Digamos que a coisa só piora com a chegada do vírus, levantando a poeira suja de que somos feitos.
Este livro de crônicas de Diógenes Moura, O antiacarajé atômico – Dias pandêmicos, que ele escreveu nos primeiros cinco meses da pandemia, embora composto por breves capítulos estruturados em forma de um diário (Dia 1, Dia 2 e assim por diante), nos oferece uma narrativa coesa, pontuada por personagens que ressurgem, situações, visões de mundo e, sobretudo, reações pessoais que se entrelaçam, completam e reincidem.
No início, tendemos a ler aquilo apenas como observadores, mas, à medida que seguimos lendo, aquele bairro e sua fauna humana passam a fazer parte de nós também. Isso, muito provavelmente, porque, assim como Diógenes, ficamos circunscritos ao nosso entorno durante meses a fio em 2020, protagonizando e testemunhando acontecimentos nas nossas casas, nos condomínios, na rua, na vizinhança, numa intensidade nunca antes experimentada, porque forçados ao confinamento coletivo.
Mas, a vantagem de Diógenes Moura em relação a muitos de nós é a do escritor, em sua capacidade de observação aguda e sensível transformada em texto e imagens. No seu livro, temos a prevalência do texto em relação às fotografias em preto e branco, que também comparecem. Mas a verdade é que o texto em si é bastante imagético, emulando algo de roteiro, quando traz passagens com “corte seco”, “transparência” e outras expressões que nos remetem a essa tipologia textual. Então, podemos ver o livro como um documentário, se assim desejarmos.
O escritor e curador Diógenes Moura. Foto: Guilherme de Jesus/Divulgação
Diógenes também nos martela certos humores, certas irritações com o comportamento contemporâneo, certos politicamente corretos que, se não seguidos à risca, podem nos levar ao cancelamento. Aquilo que antes se chamava patrulha ideológica hoje atualizamos para a linguagem das redes, com muito rigor.
“Na megalópole ilustrada, todo pensamento humanista, com data de validade vencida, é digital: índios, Amazônia, Não é Não, Ocupação, respeito, resiliência, diversidade, cidade democrática, bloquinhos de carnaval, orgulho em ser gay, orgulho em ser hétero cis, orgulho em ser goy (modelo psicobrochante inventado no estrangeiro, of course). A patologia digital contemporânea já esgotou todas as doses possíveis de Gardenal, à beira da superfície”, escreve logo no Dia 1, como que a nos esclarecer com o que estamos lidando.
Em O antiacarajé atômico há várias dessas citações da nossa contemporaneidade, como as palavras proferidas nos panelaços em repúdio ao “Monstro, assassino, miliciano, psicopata”, o presidente eleito, bem como outros elementos da cultura pop que nos cerca, registros que, no futuro, “quando tudo isso passar”, ou quando formos “melhores” depois da pandemia, servirão de documento do nosso agora.
Mas, certamente, o tecido mais espesso da narrativa são os personagens, que vão encenando diante dos nossos olhos cansados da vida cotidiana situações que ganham brilho insuspeito na sua banalidade. Por exemplo, em várias crônicas, aquele dia começa com a feira rolando lá embaixo, ouvida e observada pelo narrador da janela do seu apartamento. Quase todo dia acontece um “barraco”, uma querela entre os habitantes, porque esse ou aquele não está usando máscara e perigando contagiar as pessoas com a Covid-19. Quase toda noite tem um pesadelo, ou um sonho. Quase sempre aquela mulher que fala com os postes e com todo mundo por ali passa. Quase todo dia, o cachorro do vizinho late. As pessoas que estão nas ruas, os “invisíveis”, são cada vez mais numerosos. Todo santo dia, aquele vizinho do primeiro andar manda mensagens de bom-dia, boa-tarde, boa-noite pelo Whatsapp. A falsa loura se comunica com seus “seguilovers”... Vivemos mesmo um show de banalidades… Mas é aí que residem a graça e a ironia dessas narrativas. As coisas ficam no nosso plano, são muito honestas na sua existência, enquanto nos parecem tão inacreditáveis e irritantes. Elas nos indignam e há uma beleza triste nisso.
Capa do livro. Imagem: Reprodução
Conversando um pouco com Diógenes ao telefone, uma conversa boa, provocada pela leitura deste livro, ele contou que essas narrativas foram escritas num curto intervalo depois que ele finalizou a edição de Vazão 10.8, a última gota de morfina, cujo lançamento ocorreria em 2020, mas foi postergado para abril próximo. É um livro nascido de uma experiência muito triste. No dia 26 de junho de 2018, Maura, sua única irmã, lhe disse que tinha um câncer no pâncreas e apenas seis meses de vida. No dia do aniversário de Diógenes, em 1º de janeiro de 2019, ela faleceu e o último dos acessos de medicamentos que a mantinham era o de morfina. Vazão 10.8, a última gota de morfina, portanto, é uma narrativa literária que surge a partir desse fim, desse vazio deixado pela morte.
Acontece que a pandemia chegou, como sabemos, e tudo ficou em suspenso, e foi aí que O antiacarajé atômico foi sendo escrito a partir de março de 2020. Diógenes Moura é pernambucano (“O som da máquina que amola as tesouras parece o som dos trens nos trilhos, lá em Tejipió, onde passei minha infância”, escreve, no Dia 42), mas se mudou bem jovem para Salvador, a “ex-terra da felicidade” (como ele define), e depois para São Paulo, onde vive desde 1989, nesses mesmos Campos Elíseos das suas narrativas. Assim é que o bairro está entranhado nele, nas suas vísceras, na sua mente, nos seus afetos e desafetos.
Ele conta que criou o selo Exu de Dentro, pelo qual esta edição de autor foi lançada, para publicar o que quiser e como quiser, sem passar por crivos e demandas de editores que não ele mesmo. Faz pequenas tiragens e reimpressões, a partir dos interesses que vão surgindo. Quando conversamos, ele ia tirar mais 200 cópias do livro, visto que a primeira impressão tinha se esgotado. Ele vende seus livros em lugares que considera em sintonia com o que escreve, lugares como o bar Por um Punhado de Dólares, que fica próximo da sua casa, ou via Direct pelo seu perfil no Instagram, @moura.diogenes. Ele costuma pontuar que escreve sobre existência, abismo, imagem e abandono. Ele está bem certo.
ADRIANA DÓRIA MATOS, editora da revista Continente e professora do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco.