Curtas

Fotojornalismo e reportagem

A vida expressa pelas lentes de Luciano Carneiro

TEXTO Fernando Silva

01 de Fevereiro de 2021

Falecido aos 33 anos, Luciano Carneiro teve prolífica participação no fotojornalismo brasileiro

Falecido aos 33 anos, Luciano Carneiro teve prolífica participação no fotojornalismo brasileiro

Imagem Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 242 | fevereiro de 2021]

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O fotógrafo e repórter Luciano Carneiro teve uma vida meteórica, intensa e quase inacreditável, daquelas que mais parecem um filme. Nascido em Fortaleza (CE), em 1926, e morto em um acidente de avião, aos 33 anos, em 1959, no Rio de Janeiro (RJ), ele ingressou ainda adolescente na redação do jornal Correio do Ceará, decidiu trocar um terreno que comprara por uma máquina fotográfica Rolleiflex e se tornou o principal correspondente internacional da revista O Cruzeiro, à época a maior do país. Hoje vista como um marco na história da imprensa brasileira, sua extensa produção volta a desfilar em páginas impressas com o lançamento do livro Luciano Carneiro – Fotojornalismo e reportagem (1942-1959).

Publicada em outubro passado pelo IMS (Instituto Moreira Salles), que adquiriu parte do catálogo de Carneiro da família dele, e contando ainda com cliques pinçados do acervo do jornal Estado de Minas, detentor dos arquivos de O Cruzeiro, a obra de 256 páginas traz reproduções de imagens e de matérias do fotógrafo. Nela, pode-se ver desde o retrato de um formigueiro humano nos corredores do 41º Salão do Automóvel, em Paris, até retratos de personalidades, como a atriz italiana Sophia Loren, sempre em registros feitos para veículos dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand (1892-1968).



Foi no carro-chefe da empresa, O Cruzeiro, que Luciano Carneiro fez história, a partir de 1948. Na estreia, na edição de 15 de maio, escreveu sobre um conterrâneo, o pescador Jerônimo André de Souza, que sete anos antes entrara com três amigos na jangada São Pedro, na Praia de Iracema, em Fortaleza, para ir ao Rio de Janeiro reivindicar ao presidente Getúlio Vargas (1882-1954) melhores condições aos trabalhadores de sua categoria. A reportagem Jerônimo vai ao Rio recontava a viagem de dois meses, falava dos jangadeiros e tinha texto de Carneiro.

Já a primeira matéria nas funções de fotógrafo e redator na revista sairia só em maio de 1949: O drama de Orós tratava do abandono da construção do açude localizado no Ceará. Dali para virar integrante fixo no expediente da publicação foi um pulo, ainda em outubro daquele ano.

E Carneiro não parou mais. Designado correspondente na Ásia, em 1951, o repórter cobre a Guerra da Coreia por vários ângulos. Retrata a destruição de Seul, a morte de soldados, a solidariedade de uma mulher amamentando o bebê de outra e o misto de obstinação e esperança da refugiada que volta à sua terra. Com brevê de paraquedista, ele fotografa ainda do ponto de vista de quem precisa pular do avião para combater no front, o que faz em pleno salto junto a tropas norte-americanas na Operação Tomahawk, em abril de 1951.

Todas essas imagens e reportagens do conflito estão na obra, assim como os trabalhos de Carneiro acerca da Revolução Cubana. Em janeiro de 1959, ele testemunha a entrada triunfal de Fidel Castro (1926-2016) em Havana, sendo saudado por uma multidão, sem deixar, porém, de apontar a máquina para as mulheres integrantes do exército revolucionário, por exemplo. Acompanha também, em maio do mesmo ano, a visita do líder cubano ao presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976) em uma Brasília em construção.

Como explica o organizador do livro e coordenador de fotografia do IMS Sergio Burgi, em seu texto Imagem e engajamento: O fotojornalismo humanista de Luciano Carneiro, na introdução, ele era um dos expoentes de uma renovação em O Cruzeiro, junto com outros repórteres, como José Medeiros (1921-1990) e Henri Ballot (1921-1997). “De origens diversas, todos passaram a integrar a equipe da revista, conferindo às fotorreportagens maior ênfase na objetividade e no caráter documental e jornalístico.”



Fotos produzidas entre 1942 e 1959 estão reunidas em livro publicado pelo IMS. Imagens: Divulgação

Apaixonado por voar, inclusive, tendo licença para pilotar aviões, Carneiro focava as atenções ao rés do chão quando empunhava a câmera. Era a vida cotidiana o que mais lhe interessava. Em estilo direto, captava o franzino trabalhador e sua carroça cheia de sacos de arroz em Taiwan, as mergulhadoras da coleta de ágar em Hatsushima, no Japão, e cidadãos comuns em uma sala de espera de cinema ou dentro da igreja, na missa, em Moscou, na União Soviética.

A modernidade do trabalho do cearense – priorizando flagras do dia a dia e a construção de narrativas visuais – seguia os passos da de profissionais do porte do norte-americano W. Eugene Smith (1918-1978) e do francês Henri Cartier-Bresson (1908-2004), com quem Carneiro teve a oportunidade de conversar, na agência Magnum, em Paris, em 1954.

Na entrevista, publicada em 1956 na coluna Do arquivo de um correspondente estrangeiro, que o brasileiro assinava em O Cruzeiro, Cartier-Bresson definia a reportagem fotográfica como “uma operação conjunta de olhos, coração e inteligência”, na qual se fotografa o que vê, “mas o que você vê – isto depende de quem você é”. Aos propósitos autorais sugeridos ali, Carneiro acrescentava que o lema de um de seus mestres era o “respeito à realidade”.

Tal preceito norteava, logo de cara, a matéria produzida por ele sobre a rebelião de posseiros ocorrida em Trombas (GO), em 1957, na qual primeiro reproduzia texto de jornal que acusava os agricultores de serem comunistas, audaciosos e violentos, e depois relatava o encontro com o líder camponês José Porfírio de Souza (1912-1973) e suas tentativas de legalizar as terras em que vivia.

Ver agora aquelas imagens feitas por Carneiro significa conhecer mais da luta agrária no Brasil, além de relembrar a figura de Porfírio, eleito deputado estadual em Goiás, cassado pelo golpe de 1964, perseguido, preso e considerado um desaparecido político do regime militar.

Assim, o livro proporciona um mergulho na obra de um fotojornalista engajado com seus temas e seu tempo, de um inimigo do flash e de alguém que preferia, como ele mesmo disse, “arrancar minhas fotos da própria vida, ao natural”. De bandeja, oferece grandes histórias fixadas pelas lentes sem amarras de Luciano Carneiro.

FERNANDO SILVA é jornalista.

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