"Está todo mundo fazendo 'drag'"
O ator paulista Guilherme Terreri, que dá vida à 'youtuber' Rita von Hunty, analisa o papel das 'drags' na comunidade LGBT e sua presença na mídia em meio ao contexto político brasileiro
TEXTO Débora Nascimento
01 de Fevereiro de 2021
Rita von Hunty
FOTO JOSÉ DE HOLANDA
[conteúdo na íntegra nas versões impressa e digital | ed. 242 | janeiro de 2021]
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Em 1990, Paris is burning, um marco na cultura LGBT, fez sua estreia. O documentário, dirigido por Jennie Livingston, registrou os bailes que aconteciam no underground da Nova York dos anos 1980. Documentou competições, nas quais gays, principalmente negros e latinos, desfilavam diversas vestimentas e fantasias. Dentre as categorias disputadas, eram pinçadas várias figuras da sociedade (“executivo”, “professor universitário”, “estudante”, “dona de casa”, “modelo”…). A interpretação dessas funções revelava não somente o bom humor e a criatividade dos participantes, mas o alto nível de marginalização ao qual eram submetidos por essa mesma sociedade que tentavam representar. Numa época extremamente homofóbica, a encenação parecia ser a única forma de conquistar esses papéis. Os concorrentes desses ballrooms eram vinculados às houses, casas lideradas por mulheres trans e/ou drag queens, que abrigavam jovens sem-teto, expulsos das residências de suas famílias biológicas por serem homossexuais. No mesmo ano do lançamento desse filme que destacou a importância da figura da drag queen para a comunidade LGBT, nascia, em Ribeirão Preto (SP), Guilherme Terreri, intérprete de uma das drags mais bem-sucedidas da atualidade, Rita von Hunty.
Rita surge num contexto em que as drag queens ganharam mais espaço na sociedade, após o caminho ter sido aberto por diversas outras, como Danny La Rue, Marsha P Johnson, Sylvia Rivera, Crystal LaBeija, Divine, Lypsinka, Laura de Vison, Olga del Volga, Vera Verão. É possível encontrá-las hoje na aclamada série Pose (FX/Netflix), no premiado programa RuPaul’s Drag Race (ambos inspirados em Paris is burning) e no sucesso da cantora Pabllo Vittar, a drag com mais seguidores no mundo (11 milhões) e primeira indicada ao Grammy Latino. Rita von Hunty parece estar por toda parte: no YouTube (Tempero drag), com quase 700 mil inscritos, na TV (Drag me as a queen, do canal E!), na internet (coluna na Carta Capital). No ano passado, foi uma dos quatro personagens do documentário You Tubers, exibido pelo canal Curta!, escreveu prefácios para reedições de dois clássicos da literatura, O Grande Gatsby e 1984. Está na lista dos 50 maiores influencers LGBT do país (Guia Gay São Paulo).
O segredo do sucesso de Rita von Hunty não são apenas seus lindos olhos castanhos bem- delineados e seu bom humor com sotaque paulista, mas a inteligência, criatividade, sensibilidade e perspicácia do ator Guilherme Terreri. Formado em Artes Cênicas pela UniRio, bacharel em Letras e Literatura Inglesa pela USP, ele reúne, no conteúdo dos vídeos do Tempero drag, algumas de suas paixões: o teatro, a literatura, a política e o conhecimento – afinal, Rita não sai de casa sem suas referências bibliográficas, como Raymond Williams, Angela Davis, Karl Marx, Slavoj Žižek e Roberto Schwarz.
Paris is burning (1990), dirigido por Jennie Livingston, documenta a cena dos bailes LGBT novaiorquinos. Imagem: Repdrodução
Seus vídeos são o resultado de leituras e pesquisas, somadas a uma admirável capacidade argumentativa e uma memória prodigiosa, transmitindo ao espectador, de forma didática e agradável, informações e opiniões. Com esses ingredientes, o Tempero drag, que começou em 2015 como canal de receitas veganas, vem oferecendo vídeos que atingem milhares de likes e compartilhamentos, discutindo diversos temas atuais. Dois dos mais assistidos são Consciência de classe e Racismo, coisa de branco. Neste, debate a questão racial e aborda a morte do menino recifense Miguel – assunto que fez Guilherme chorar durante esta entrevista à Continente, na qual fala sobre política, capitalismo, homofobia, carreira e cultura drag.
Nos vídeos, fica muito clara a sua satisfação em transmitir conhecimento, uma vontade genuína que surgiu ainda na infância. “Eu lembro que a minha brincadeira preferida era escolinha”, recorda. Guilherme começou a dar aula de inglês aos 14 anos e sempre foi um aluno que sentava na primeira fileira – em parte porque era míope, mas principalmente porque amava assistir às aulas. A ligação com a literatura foi incentivada pela mãe e pela avó materna, desde cedo. Nascido numa família de descendentes europeus, numa árvore genealógica ramificada por Portugal, França, Polônia, Rússia e Itália, de onde se origina o sobrenome Terreri, Guilherme buscou outras referências para o nome de sua persona. Rita von Hunty homenageia Dita von Teese, atriz, modelo e artista burlesca norte-americana. Von vem do título de nobreza alemão e o Hunty é uma palavra da cultura drag, que junta honey ao palavrão cunt: “É uma pessoa que você ama odiar ou odeia amar”.
A vontade de “se montar” surgiu também na infância, quando, na primeira série do fundamental, participou de uma montagem de Sonhos de uma noite de verão, de Shakespeare – cujas encenações de suas personagens femininas por homens, no final do século XVI e início do século XVII, especula-se que deram origem à palavra drag (um acrônimo de “dressed resembling a girl”) – há ainda a teoria de que drag vem simplesmente do verbo to drag (arrastar), relativo a arrastar a roupa feminina pelo chão (o termo aparece registrado em 1871, na Inglaterra, na legenda da ilustração de um homem que virou réu por estar vestido como mulher). “Eu era o Oberon. E a parte que eu estava mais interessado era poder me montar. E isso não estava relacionado à figura feminina, mas à extravagância, à fantasia. Não foi um processo de descoberta de gênero, não era uma criança se entendendo trans”, afirma Guilherme. O fascínio definitivo veio ao se deparar com Priscilla, a Rainha do Deserto (1994), o filme australiano que virou fenômeno mundial e contribuiu para divulgar a cultura drag e levá-la ao mainstream.
Série Pose e reality-show RuPaul’s Drag Race, dois programas televisivos de sucesso inspirados no universo de Paris is burning. Imagens: Divulgação
Gestada durante anos e nascida no Carnaval de 2013, Rita, com apenas oito anos de vida, está dando – literalmente – muito trabalho a Guilherme. Os convites não param de chegar: são peças de teatro, palestras, textos, aulas, entrevistas, série para uma plataforma de streaming e filmes. Em fevereiro de 2020, participou das filmagens de Assombro, uma coprodução da 20th Century Studios e Movie&Art. A demanda é tanta, que, por falta de tempo, recusou assinar uma coluna na Folha de SP. Para 2021, dentre os seus projetos, ele prepara um livro – uma coletânea de ensaios que será publicada pela Editorial Planeta. “Eu sou muito feliz lendo, estudando, debatendo, discutindo, escrevendo, fazendo as pessoas rirem”, resume.
CONTINENTE Quando foi que você começou a ter contato com a cultura drag?
GUILHERME TERRERI Ai, mil momentos. Vamos falar a verdade? Toda criança dos anos 1990 teve contato com a cultura drag assistindo ao Pica-pau ou o Pernalonga.
CONTINENTE (risos) Como assim? Explica isso direito.
GUILHERME TERRERI Uai, qualquer temporada de Pica-pau ou Pernalonga tem um episódio em que eles se montam de drag queen. Tem o episódio do Pica-pau que, pra conseguir comida, ele se monta de uma duquesa, aí ele vai no local do Leôncio para comer de graça… Tem o episódio do Pernalonga em que eles reencenam grandes óperas, e aí o Pernalonga é sempre a mulher de todas as óperas… Então, qualquer criança dos anos 1990 teve seu primeiro contato com a cultura drag, com a arte drag, via desenho animado infantil. Agora, com o nome drag, é nos anos 1990, é por causa de Priscilla, A Rainha do Deserto e Para Wong Foo, Obrigada por Tudo! Julie Newmar.
CONTINENTE E aí você, criança na época, assistiu e ficou fascinado, né?
GUILHERME TERRERI Sempre gostei muito de figuras femininas. Sempre achei que a figura masculina era menos atrativa, apesar de ser mais atraente, né? Eu me entendo como gay. Mas a figura masculina é menos atrativa. Tem menos ali para olhar. Você olhou para um homem, olhou para todos. O corte de cabelo é sempre o mesmo, a roupa é sempre a mesma… Gente, homem tá usando terno e gravata desde que inventaram terno e gravata! Não muda! Quando você vai olhar um tapete vermelho, você vai querer olhar o que é que o homem usou? Não, o homem usou um terno azul ou preto.
CONTINENTE A não ser que seja Billy Porter…
GUILHERME TERRERI Sim, o ator que faz o Pose… Agora, os homens negros sempre ousaram mais do que os homens brancos. O Lenny Kravitz ousava muito. Com os homens brancos a gente tem o Iggy Pop…
CONTINENTE Jack White, Mark Ronson…
GUILHERME TERRERI Jack White… Imagina, aqui no Brasil a gente tem o Ney Matogrosso! Não sei nem mais onde eu tava na pergunta…
CONTINENTE A gente estava falando desse seu contato com a cultura drag, aí você mencionou esses filmes, e teve Romeu + Julieta também, que foi um filme com drags e tal…
GUILHERME TERRERI Sim, do Baz Luhrmann. Ah, eu adorava! Inclusive, o número de drag quem faz é o ator que faz o Mercúcio (Harold Perrineau Jr). Ai, eu amava. Eu amo aquele filme. Vou até assistir hoje, você me deu uma saudade.
CONTINENTE Houve uma evolução da cultura drag desde então?
GUILHERME TERRERI Evolução é uma palavra difícil, até porque, no sentido darwinista, é apenas adaptar-se a um meio. No sentido darwinista, houve evolução. O que é que a drag está fazendo hoje? Ganhando Emmy. (RuPaul ganhou cinco Emmys como apresentador do RuPaul’s Drag Race. O programa venceu 19.) Então, evolução maior do que essa, eu não conheço. Uma coisa que sai do gueto, tida como uma manifestação cultural do gueto, já como fenômeno cultural do século XIX, ali dos 1800. Dá para ir mais para trás. Dá pra cavucar isso aí. Mas eu acho que se adaptou. Agora, evoluir, eu não sei, porque a palavra evolução carrega consigo um juízo de valor, como se evoluir fosse melhorar. E eu acho que drag, como tem ficado mais em voga, tem ficado mais difícil. Por exemplo, eu não sou partidário de um tipo de drag que eu vejo como chacota do feminino. Eu detesto esse tipo de drag. O tipo de drag ultra-hipersexualizado, no lugar de fetiche, de objetificação da mulher, eu não gosto desse tipo de drag. E, no entanto, como falar isso senão usando a palavra adaptação? A coisa que mais vende, o produto mais vendido no mundo, é o sexo. Então, uma drag que vai para essa vertente do sexo, ela vai vender. Quem é a drag mais famosa do Brasil? Pabllo Vittar. O que é que ela é para a massa do brasileiro médio? Uma mulher bonita, sem roupa, rebolando. Se eu chegar agora no interior de uma região semiurbana e mostrar a Pabllo Vittar e mostrar a Anitta, quem é quem? A Pabllo Vittar e a Luísa Sonza? E esse é outro fator para a gente discutir também, porque a drag evoluiu a tal ponto, que ela fagocitou o sistema. Todo mundo está fazendo drag. A partir do momento em que nenhuma sobrancelha em Hollywood existe, é tudo maquiagem. Nenhum cabelo na Broadway existe, é tudo peruca. Nenhum corpo de rapper norte-americana, Nicki Minaj, Doja Cat, existe, é tudo enchimento, então… A perna da Beyoncé é aquilo? Não. Aquilo é meia com maquiagem e enchimento. Então quem é que tá fazendo drag? Todo mundo. E esse é um ponto superimportante de salientar, né? A drag virou uma linguagem do mainstream. Eu estava procurando uma palavra em português e nem sei se existe. Mas da cultura, e não da contracultura, e nem da cultura periférica e da cultura de gueto, mas da cultura… Eu não quero usar “hegemônico”, porque não é a palavra.
CONTINENTE Mas eu acho que a gente podia extrair um pouco mais disso aí, no sentido de, pra você, isso é bom ou é ruim? Ou isso, pelo menos, tem que ficar claro para o público?
GUILHERME TERRERI É, mas toda vez que eu recebo uma pergunta “ou”, eu devolvo uma resposta “e”. Isso é bom e ruim. Isso é bom, porque eu tenho um monte de amigo que está trabalhando. E a gente é classe trabalhadora. O que é que a gente faz na vida? É explorado. Vende a mão de obra. E daí, se você conseguir ser explorado de um jeito que cause menos sufoco, aperto, desespero, pânico, melhor pra você. Os meus amigos que têm sua mão de obra explorada enquanto drag queen, eles estão achando legal. Preferem fazer isso do que outras coisas. Então, o fato de que agora existe trabalho, de que o trabalho é remunerado, de que a arte é reconhecida, é bom. E cadê a parte ruim? A parte ruim é que, mais uma vez, a gente tem uma série de apropriações impróprias sendo feitas. A gente tem uma série de discussões importantes não sendo pautadas, e a gente tem, agora, o que é mais triste de tudo, uma identidade, um modo de vida, que sempre se colocou como antissistêmico e como anti-hegemônico, sendo engolido pelo capital e se tornando uma mercadoria. Então temos um lado bom e um lado ruim. Depende de para onde a gente vai olhar.
Guilherme Terreri, que dá vida a Rita von Hunty.
Imagem: José de Holanda
CONTINENTE Então, qual é a sua análise, por exemplo, dos programas de TV que a gente tem hoje com as drags?
GUILHERME TERRERI Tem programas muito legais e tem programas lixo. Por exemplo, eu apresento um programa chamado Drag me as a queen, que é um programa em que três drag queens, o Ikaro Kadoshi, a Penelopy Jean e eu, Rita von Hunty, recebemos uma mulher por episódio pra bater papo e, ao final desse papo, transformá-la numa drag queen. Então, o mesmo processo que a gente fez ao longo de décadas... O Ikaro tem 40 anos de idade e 20 anos de carreira.... A Penelopy tem 30 e poucos anos de idade e mais de 10 anos de carreira... Eu comecei em 2013, eu tô com sete anos de carreira... Ao longo desse tempo, a gente se deparou com as nossas construções de gênero, com as nossas limitações, com as nossas crenças limitantes, com os nossos medos, anseios, sonhos, e foi transformando isso na drag que nós somos. E agora o programa fala: será que só interessa que eles façam isso, ou será que todo mundo faz e deveria fazer? E aí, a gente, através da drag, propõe uma forma de arteterapia para mulheres. Porque a mulher é um ser social que está colocada num lugar de muita crueldade. Porque ela escuta o tempo todo o que ela precisa fazer, e que é errado o que ela faz. Então uma mulher cresce num mundo que fala para ela: não goste de sexo. É feio. Mas se você não gostar de sexo, o seu marido vai te trair, você vai ser frígida, você vai ser malcomida. “Ah, ela está brava assim porque ela é malcomida”. Então, ao mesmo tempo, ela escuta, “Ó, vai se arrumar. Se você não se arrumar você é desleixada”. E aí ela vai lá, se arruma e ela escuta: “Nossa, tá arrumada assim para quê? Tá tentando dar pra quem?”. Então, a posição da mulher, socialmente falando, mesmo discursivamente falando, é uma posição de prescrição e proibição. De prescrição que é proibição. Tudo o que existe pra mulher é errado. Então, se ela for a Virgem Maria, o filho dela é crucificado. Ela vai ter o bebê em uma manjedoura. Ela é preta, pobre, periférica. E se ela for a Maria Madalena, vão tentar apedrejá-la. Se ela for a Eva, ela vai ser expulsa do Paraíso. Se ela for a Lilith, ela vai ser transformada num demônio. Então a posição da mulher é sempre essa posição, porque o mundo é um mundo de dominação masculina. A posição da mulher é uma posição de que qualquer coisa vai virar crime. Qualquer coisa vai virar pecado. Qualquer coisa vai virar piada. E, disso, as drag queens entendem. Então, qual é a minha visão? A minha visão é complicada. Minha visão é complexa. Porque é impossível falar disso de forma superficial.
Continente O que a Rita vem lhe ensinando?
GUILHERME TERRERI Muita coisa. Fazer a Rita é o que me dá uma chance de experimentar alteridades. Mas isso é o trabalho do ator, tentar se colocar na pele de outra pessoa, e, ao mesmo tempo, tentar colocar outra pessoa na sua pele. Então, esse é um processo de alteridade, de olhar o mundo por outro ponto de vista, por outra perspectiva, e eu faço isso via drag queen.
CONTINENTE Parte do movimento feminista considera que o homem fantasiar-se de mulher no Carnaval seria ofensivo, assim também como as drag queens. Queria que você discorresse sobre isso.
GUILHERME TERRERI Isso é muito problemático. Essa é uma visão partilhada, reiterada, divulgada, via feminismo radical, que é mais uma corrente do feminismo. E aí, na defesa que vai ser feita pelas feministas radicais, ou por quem se entende dentro dessa linha, é de que o que a drag está fazendo é um esculacho, que a drag está fazendo troça do feminino. E não é isso. Quer dizer, não é isso pra mim. Não é isso para muitas drags que eu conheço, e tem drags que estão fazendo isso, sim. Por isso que a gente precisa sempre pensar as coisas caso a caso. Mas invalidar a drag na sua gênese, na sua ontologia, como um processo machista e misógino, seria como invalidar o cinema, a escultura, a pintura. Esse veto beira o absurdo. Mas, por quê? Quem estabelece feminino e masculino é a cultura. Se a gente quiser voltar dezenas ou centenas de milhares de anos e chegar até os primeiros hominídeos, mulheres e homens eram igualmente musculosos, senão a raça humana não teria sobrevivido. Todo mundo nasceu de uma mulher e foi alimentado por uma mulher. Se a mulher não escalasse montanha, subisse em árvore e lutasse contra bicho, não ia ter sobrado raça humana. Então mulheres e homens devem ter sido igualmente musculosos, igualmente peludos… E a biologia faz muito pouco pelo nosso entendimento do que é o homem e do que é a mulher, do que é o masculino e do que é feminino. Toda vez que a gente se debruça sobre esses campos, a gente está debruçado sobre um debate majoritariamente cultural. E é a cultura que define o que é masculino e feminino. Então, as drags que eu conheço, a maioria delas, são pessoas que estão em desalinho, em desacordo com o que o sistema prescreve. Então é um movimento disruptivo e um levante cultural. É uma expressão no campo da cultura, no reino da cultura, de falar “Quem disse que não pode? Vai poder, sim, e eu vou fazer”. Não existe “se vestir de mulher”. Existe abaixar a cabeça pros filhos da puta ou não. Quando uma mulher decide cortar o cabelo e usar calça, ela está se vestindo de homem? Não. Ela está só não abaixando a cabeça para os filhos da puta, para os escrotos. Então drag nunca foi sobre se vestir de mulher. Mas sobre mostrar que gênero é uma construção social. A gente está fazendo drag desde o Shakespeare. Não podia ter mulher no teatro elizabetiano. Quem que interpretava Julieta? O homem. Quem que interpretava a Lady Macbeth? O homem. E não tinha aqui nenhum escracho. A Julieta é um personagem sério. A Lady Macbeth é o personagem mais sério da obra do Shakespeare. Não tem troça com o feminino. Não tem piada sendo feita.
CONTINENTE O seu canal começou como de receita vegana e depois fez a transição para esse debate político, durante a reviravolta política, de golpe no Brasil. Eu queria que você falasse sobre o que mudou no feedback dos seguidores.
GUILHERME TERRERI Eu acho assim: o que eu fiz no YouTube sempre foi político. Começa pelo veganismo, que é um debate político. E aí tem o fato também de que, quando o cenário começa a passar por essa reviravolta, tem um episódio que aconteceu no ônibus, que ilustra esse acontecimento, quando eu vi duas meninas sentadas na minha frente, mais jovens do que eu, falando, “eu detesto política”. E aí eu estava sentada atrás delas querendo falar: “Meu amor, mas você pega o ônibus, né? Como que detesta? Você sabe quem que faz a linha de ônibus? Você sabe por quê o ônibus é ruim? Você sabe por que ele custa o que ele custa? Você sabe por que é que você, pobre, fodida, estudante, não tem passe livre? Política! Po-lí-ti-ca, meu amor!”. Só que eu não conhecia a menina, não podia falar isso. E aí eu saio desse episódio e vou para o YouTube falar isso. E o primeiro vídeo declaradamente sobre política é o Apolíticos. E é um vídeo de um minuto no qual eu falo: “Anjo, só existem duas possibilidades de você ser apolítico. Se você é um privilegiado, mas privilegiado ao ponto de poder parar de trabalhar por quatro gerações, aí você pode ser apolítico numa boa. Ou alienado, massa de manobra. Tirando esses dois lugares, não existe ‘apolítico’”.
Drags em Priscilla, a Rainha do Deserto, filme de 1994, dirigido por Stephan Elliott. Imagem: Reprodução
CONTINENTE Por que você parou com essa defesa do veganismo nos seus vídeos?
GUILHERME TERRERI Não parei. Só não falo mais sobre isso como o meu conteúdo chave. Acho que tem muita gente melhor do que eu fazendo isso, e essas pessoas estão muito bem-unidas e instrumentalizadas, e têm vozes potentes. Eu posso somar mais de outras formas. Mas eu não parei. Eu dei uma entrevista para o Cauê Moura no podcast, lá, que teve mais de meio milhão de visualizações no YouTube, e é um vídeo de mais de uma hora de duração, no qual eu falo sobre veganismo como luta política, sobre o veganismo como única possibilidade de a gente ter século XXII, de parar a destruição da Amazônia etc.
CONTINENTE Essa transição aumentou a sua quantidade de seguidores
GUILHERME TERRERI Do conteúdo de humor e vegano e receita para o político? Sim. A gente tinha cerca de 30 mil inscritos com alguma coisa como um ano e pouco de canal. Hoje eu tenho quase 700 mil.
CONTINENTE Você está na lista dos 50 maiores influencers do país. Qual é o efeito que isso tem sobre você? Sente uma responsabilidade maior com o que diz?
GUILHERME TERRERI Nenhuma. Eu não penso sobre isso, eu não vou pensar sobre isso, não quero pensar sobre isso, porque eu acho que pensar sobre isso é nocivo. Eu continuo me vendo como um professor e uma drag queen. Amanhã, acaba a internet, cadê a influencer? E também acho que é uma loucura… Continuo fazendo um trabalho responsável, referenciado, embasado, sério e comprometido, mas o meu número de seguidores… Tô cagando. Acho que só causa mal pensar nisso.
CONTINENTE Essa quantidade de influencers que a gente tem hoje no país… Felipe Neto talvez seja o principal exemplo. Houve também essa transformação no conteúdo dele, ele também entrou no debate político e vem tentando influenciar os rumos da política. Nas eleições municipais de 2020, levou Guilherme Boulos e Manuela d'Ávila para o canal dele… O que você acha dessa nova categoria de youtubers que está tentando fazer dos seus países lugares melhores?
GUILHERME TERRERI Acho o mínimo. É o mínimo. Se você tem exposição, se você tem uma voz e é ouvido, o mínimo que você pode fazer é usá-la para o bem coletivo.
CONTINENTE O sucesso do seu canal no YouTube está rendendo financeiramente? Porque todo mundo diz que Felipe Neto é um cara rico… Dá para sobreviver de canal no YouTube, tendo uma quantidade X de seguidores? Porque suponho que esse deva ser o seu ganha-pão principal hoje em dia.
GUILHERME TERRERI Não. O meu ganha-pão principal é o meu trabalho como professor. São as aulas que eu dou, os cursos, os textos que eu escrevo, os convites que eu tenho para apresentar obras… elizabetano. Este ano escrevi prefácio de O Grande Gatsby, de 1984, do George Orwell, o novo da Tânia Alice, minha professora lá da UniRio. Eu continuo trabalhando como um professor e uma drag queen. Eu apresento um programa na TV… E o YouTube, eu faço em parceria. Junto comigo trabalham outras pessoas, e tudo o que vem do YouTube, que não é constante, não é explicado. Tem um mês que vem X, tem mês que vem Y. Então é muito difícil entender qual é o critério de avaliação para remuneração dos vídeos, é um trabalho superexplorado.
CONTINENTE Como assim, explorado?
GUILHERME TERRERI Ah, nós somos pagos em centavos de dólar. E você começa a ser pago com centenas de milhares de visualizações. E o dinheiro que ele rende… Hoje em dia, o dólar está a R$ 7 (R$ 5,42), então por isso é um dinheiro bom. Mas seria um dinheiro bom, eu conseguiria viver disso, se eu fizesse sozinho, se eu filmasse, editasse, postasse… E os meus amigos, que vivem disso, Débora do céu! Eles acordam e vão dormir trabalhando sem parar. E todos eles estão tomando antidepressivo, ansiolítico… Eu trabalho com Carol, Isa, Jorge, Alan, Mari G, Thyago, que é o intérprete de libras do canal… Depois que a gente divide a quantia igualmente entre as partes, não sobra nada pra ninguém. Eu não estou no YouTube pelo dinheiro, nunca estive. Não é a minha fonte de renda.
CONTINENTE É porque quem está de fora tem essa impressão de que os influencers recebem muito dinheiro. Até o próprio Felipe Neto passa essa ideia… A propósito, ele citou, na entrevista do Roda Viva, que sofria de depressão e toma remédio, como você falou…
GUILHERME TERRERI Mas é que tem casos e casos, também. Eu imagino que o Felipe Neto deve estar ganhando muito dinheiro. Mas muito! E acredito também, acredito não, tenho certeza de que não é via YouTube. Mas o Felipe Neto fez tudo o que dava para fazer. Propaganda de tudo, anúncio de tudo, publicidade de tudo, virou brinquedo, lançou livro… Então, o YouTube é uma grande vitrine.
CONTINENTE Você tem receio de ficar preso à Rita?
GUILHERME TERRERI Não, a Rita não me prende. Eu não me sinto preso a ela. Tem coisas, né, Débora?… Mas aí são coisas bastantes, como é que eu posso dizer isso… Bastantes características da comunidade LGBT. O homem que faz uma drag está submetido a uma dinâmica de abrir mão de coisas. O mundo gay é um mundo com uma pressão estética monstruosa. E aí você é um homem que não tem barba, você é um homem com pouca ou nenhuma sobrancelha, você é um homem que se monta, e todos esses adendos lhe colocam imposições dentro da comunidade. Então, a partir do momento em que você começa a fazer drag profissionalmente, está preso, porque você abre mão de coisas que teria fora da drag. Um amigo já teve um relacionamento destruído porque trabalhava aos finais de semana, e ele estava ficando com um cara que trabalhava e estudava durante a semana e só tinha o final de semana pra viver. Então, tem essas colocações que são aprisionamentos, também, da drag.
CONTINENTE Você já mencionou que não gosta da noite, né?
GUILHERME TERRERI Não é que eu não goste, é que chegou a um ponto em que não falava mais nada para mim. Existe um lugar, até que acontece à noite, que eu amo, que é o show no teatro. Aqui, em São Paulo, tenho outros amigos drag queens, que compõem a Companhia Canastra de Teatro, e eles conseguiram na prefeitura um edital de ocupação de alguns aparelhos de cultura da cidade de São Paulo. O Teatro Cacilda Becker, o Teatro Sérgio Porto (no Rio de Janeiro). E aí eles ocuparam esses dois teatros e propuseram o Cacilda! O Concurso Drag, em que eu sou jurada e também sou patrocinadora, eu o dou o prêmio em dinheiro para a vencedora. E o concurso acontece duas vezes por ano. Tem vídeos no YouTube dessa última temporada. É um espetáculo. E, por isso, eu sou apaixonado. Agora, fazer show para a galera que está na boate bêbada, drogada, querendo beijar, querendo arrumar alguém para ir para casa transar, é muito difícil. Porque o espaço da boate não é exatamente o espaço da drag. Foram coisas que aconteceram. A boate começa sem a drag queen e a drag queen começa sem a boate. Em um determinado ponto dos anos 1960, as coisas se encontram. Até então, isso não existia.
CONTINENTE Guilherme, você e/ou a Rita já sofreram algum ataque homofóbico?
GUILHERME TERRERI Acho que vários, mais ou menos velados.
CONTINENTE Mais você ou mais a Rita?
GUILHERME TERRERI Acho que eu estou vivo desde 1990 e a Rita está viva desde 2013.
CONTINENTE Mas ela está mais exposta aos ataques na internet.
GUILHERME TERRERI É. É difícil mensurar. É que muitos ataques à Rita são crimes de ódio. Eles acontecem via plataforma digital, e eu tô cagando pra isso, eu nem leio os comentários. Quer dizer, eu leio os comentários do meu canal, que é uma galera que gosta, que fala sobre o conteúdo, pergunta sobre as dúvidas e pede indicação de livro… Essas pesquisas, eu oriento, com esses conteúdos, eu lido. Mas, por exemplo, se eu dou uma entrevista para um site, eu não vou ler os comentários, porque eu não sei quem é o público, eu não sei o que ele tem a dizer, não estou muito interessado. Se ele estiver interessado, ele vai até o meu canal e aí eu vou ler, através do meu canal.
CONTINENTE Mas essa homofobia velada da qual você foi vítima aconteceu na época do colégio? Foi em qual período?
GUILHERME TERRERI No colégio, dificilmente ela é velada. Ela acontece de forma declarada. Sei lá, eu enfrento a homofobia todos os dias da minha vida. Dias atrás, eu dei uma entrevista. A entrevistadora me fez a pergunta “Como você descobriu que era gay?” e eu devolvi a pergunta pra ela “Como você descobriu que era hétero?” Essa pergunta é uma pergunta homofóbica. Porque acha que a nossa sexualidade é uma descoberta, e a deles não. Nos coloca numa posição de exótico, nos coloca numa posição de objeto de estudo, sem elaborar e sem olhar para a própria cisgeneridade e heterossexualidade. Então esse é um exemplo de uma fobia velada, e muito provavelmente vem de forma inconsciente. A jornalista não quis ser homofóbica, mas é homofobia.
CONTINENTE Nos seus vídeos, você aborda diversos assuntos. Pra você, quais são os temas urgentes hoje, no mundo e no Brasil?
GUILHERME TERRERI Interpretação de texto, destruição da lógica messiânica, laicidade do Estado, dinâmicas e políticas de trabalho, saúde mental e destruição do capitalismo. E esse é o primeiro, a superação do capitalismo como modelo. Porque, na verdade, depois da superação do capitalismo, todo esse resto que eu falei rui. O capitalismo é o sistema que organiza todas essas opressões. Hoje em dia, está muito na moda as pessoas falarem sobre racismo estrutural, machismo estrutural, misoginia estrutural, só que elas esquecem que o nome da estrutura se chama capitalismo. Então, querer combater o racismo sem olhar para o capitalismo não existe, porque quem faz o racismo acontecer da forma como acontece é o capital.
CONTINENTE Nas eleições municipais de 2020, vários candidatos LGBT foram eleitos. Queria saber qual é a sua análise: isso foi um avanço? No que se precisa avançar mais?
GUILHERME TERRERI Isso é e não é um avanço. É, porque agora a gente vai tendo corpos subalternizados colocados em posição de poder. Não é um avanço porque, enquanto tiver posição de poder, vão ter corpos subalternizados. Então, ou a gente destrói as posições de poder, ou a gente sempre só vai trocar as posições. Então, é um avanço, porque vai ter gente lá dentro pautando políticas. Não é um avanço, porque a maioria de quem foi eleito é branco, hétero, cis e velho. E homem. Então a gente não está vendo uma mudança estrutural, não está vendo mudança conteudística, a gente está vendo o início de um horizonte de uma conscientização de que a coisa está mal. Imagina. O que eu penso das eleições? Eu penso que foi uma merda. O (Bruno) Covas se elegeu em São Paulo. E, após eleito, as duas coisas que ele fez, antes de assumir o próximo mandato, então ainda no mandato como interino, porque ele era vice do Dória, foi aprovar um aumento de 50% no próprio salário e tirar a gratuidade do transporte público para idosos. O que é que eu acho da eleição? Um lixo. É importante que o Guilherme Boulos tenha ido para o segundo turno? É. É importante que a Manuela d'Ávila tenha ido para o segundo turno? É. É importante que um ecossocialista agora seja o prefeito de Belém do Pará? É. Mas, para mudar as coisas, é pouco.
CONTINENTE Em 2018, quando houve a eleição de Bolsonaro, aconteceram muitos ataques homofóbicos, inclusive com vítimas fatais, ameaças de morte… Um segundo mandato dele pode ser até pior do que o primeiro. Você acha que, em 2022, Bolsonaro tem chance de ser reeleito? Você, como influencer, pensa em fazer a sua parte contra essa reeleição?
GUILHERME TERRERI Em dois anos, com meio mandato, ele já erodiu as instituições… Que não existiam direito, né? Falar sobre instituição no Brasil é história para boi dormir, né? Mas ele erodiu as parcas instituições democráticas que tínhamos no país, e a gente tem visto o que está acontecendo com as políticas educacionais, as políticas ambientais, isso em meio mandato. Ao fim de um mandato inteiro, a gente não vai ter que reconstruir o Brasil, a gente vai ter que construir. Porque será destruído o Brasil que a gente conheceu. E aí, se o Bolsonaro tem chances para um próximo mandato, a conjuntura nos diz que não, mas a conjuntura não nos diz muita coisa, porque depende da nossa capacidade de leitura da conjuntura… Mas a conjuntura fala que o neoliberalismo que flerta com o nazifascismo vem sendo derrotado. Nos Estados Unidos, no Chile, na Bolívia, na Argentina. Agora, ele continua vitorioso na Inglaterra, na Ucrânia, no Leste Europeu como um bloco. A situação política da Estônia é desesperadora. Então, depende. Não sei se ele tem chances ou não, sei que o meu trabalho será feito para que ele não tenha.
CONTINENTE Queria saber como são construídos os roteiros dos seus vídeos.
GUILHERME TERRERI Só Deus sabe. Normalmente, o que acontece é que eu tenho boas intuições. Meio misticismo. E aí eu sinto. Por exemplo, tem vídeos lá no canal… Eu vou falar sobre dois, que foram muito assistidos. Tem vários, mas esses dois foram muito assistidos. Consciência de classe e Racismo, coisa de branco. Racismo, coisa de branco, eu faço esse vídeo porque o menino Miguel morreu nas mãos da Sarí Côrte Real, que negligenciou a vida de uma criança de 5 anos de idade. Quando eu recebi a notícia, era de manhã e eu estava me maquiando para ir trabalhar, eu tinha coletiva de imprensa, entrevista, e eu liguei para Mari G, que é minha melhor amiga, minha produtora, minha assessora, e falei “Cancela tudo, eu tô tirando a maquiagem. Vou voltar pra cama e eu não consigo mais ficar vivo hoje”. Eu acho que eu passei dois dias sem entender como é que a gente tinha chegado naquilo. A morte do Miguel, o assassinato do Miguel, me afetou de uma forma… (choro) Desculpa, Débora, é muito difícil para mim falar sobre isso. E já o Consciência de classe, ele acontece… Por algum motivo, eu cheguei à casa dos meus amigos para gente gravar, a gente gravava na casa da Carol e do Jorge, e eu cheguei lá e em cima da mesa tinha uma boneca de R$ 1,99 (“a boneca de R$ 1,99 que acha que é Barbie”). E aí eu olhei para aquilo e comecei a gargalhar sozinho. Então, esses são dois exemplos de coisas que aconteceram na minha vida que me levaram à produção.
CONTINENTE Na série Pose, há a morte de uma personagem na segunda temporada, e uma delas fala que a polícia não investiga porque é uma morte de gay, e a gente sabe que há uma quantidade absurda de gays que vêm sendo assassinados. Gostaria de sua opinião sobre essa questão, que é um reflexo da homofobia.
GUILHERME TERRERI Sim, ela tem muito a ver com a desvalorização das nossas vidas. E dentro do recorte LGBT, quem mais sofre são as mulheres trans negras. São os corpos que acumulam em si essas três marcas indesejáveis para o sistema. A marca da fêmea, a marca da raça e a marca da classe, porque a gente também está falando sobre pobreza. A gente tem um espectro maior, que é sobre a patologização da nossa vida, que não se apresenta para o brasileiro médio como vida, mas como um problema. A gente parte desse ponto, e aí a gente tem os outros entraves. A questão da nossa sexualidade soma-se às questões da validação da nossa vida. Então, a nossa presença ou ausência no seio familiar, presença ou ausência no mercado formal de trabalho, presença ou ausência no ambiente escolar… Falar sobre esses assassinatos é falar sobre como a nossa sociedade está organizada, e são corpos superexplorados; além de superexplorados, são corpos supersubalternizados. E a gente tem que sempre pensar também em quem assassina esses corpos. A violência vem desse lugar de privilégio sem poder, que é o lugar da cisgeneridade, o lugar que não pode questionar a própria sexualidade. Muitas mulheres trans são assassinadas pelos seus parceiros que, na maioria das vezes, são homens heterossexuais que estavam com mulheres trans e que têm medo do que vai acontecer ao ser descoberto que eles estavam com mulheres trans e não mulheres cis. É um assunto muito extenso, também, para a gente discutir. Mas, basicamente, eu o vejo a partir de um lugar de organização da nossa sociedade.
CONTINENTE No documentário Paris is burning, as drags aparecem como figuras acolhedoras de jovens que foram largados pelos pais nas ruas, por conta da questão da sexualidade. Gostaria que você falasse sobre a importância das drags na comunidade LGBT.
GUILHERME TERRERI Historicamente, a drag tem esse papel. Ela assume para si o papel da mãe, ou o papel da mulher, e historicamente, também, as comunidades LGBT encontraram nas drags veículos potentes de organização da comunidade. Quem já leu a Silvia Federici consegue fazer um paralelo muito interessante de como o capitalismo vai demonizar a mulher, vai transformá-la em bruxa, porque reconhecia nela o potencial de organização e de segurar a comunidade. Até hoje, quando chega uma data festiva, a gente comemora a data festiva na casa da avó. Vai todo mundo para a casa da tia, para a casa da mãe, quem ainda segura a comunidade é mulher. E dentro da comunidade LGBT porque, de novo, mulher não tem nada a ver com biologia, mulher é uma posição discursiva, mulher é uma posição social, quem organiza esse papel dentro da comunidade LGBTQIA+ são as figuras femininas, a drag, a trans, a travesti, algumas lésbicas… E eu vejo assim: dentro da comunidade, historicamente falando, a drag ocupa esse lugar de ela ser, ao mesmo tempo, a mãe acolhedora e a mãe briguenta, que vai lá fora resolver o que está acontecendo com o filho dela. Então, as drags sempre estão em manifestações, em protestos, em passeatas, porque elas são essa figura cuja voz é ouvida.
DÉBORA NASCIMENTO, jornalista, repórter especial da Continente e colunista da Continente Online.