Ensaio

Olha pro céu, meu amor

A história dos estudos dos astros, sua atualidade nas redes e os caminhos que nos aponta o céu de 2021

TEXTO CAROLINA LEÃO
ILUSTRAÇÕES KARINA FREITAS

04 de Janeiro de 2021

Ilustração Karina Freitas

[conteúdo na íntegra na impressa e digital | ed. 241 | janeiro 2021]

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Mais de 15 mil anos nos separam dos primeiros registros astrológicos quando, na incerteza do dia, as primeiras civilizações eternizaram nos ossos e couros de animais as configurações celestes. Da estação ideal para o plantio à soberania de um monarca, olhava-se o céu, que ora protegia, ora destruía, e – através das repetições observadas pelas posições dos planetas e das relações por eles mantidas – construía-se matematicamente a técnica oracular mais envolta em controvérsias desde a sua disseminação na Revolução Industrial.

O propósito inicial de entender o que se poderia esperar de um tempo imprevisível evoluiu num lento e cíclico processo marcado por evoluções cognitivas, econômicas e culturais. Mais de dois mil anos após o estabelecimento da astrologia com uma linguagem própria, com seu alfabeto de glifos, e sua simbologia mítica, é difícil negar a influência que ela exerce hoje nas gerações mais recentes, sobretudo nos que utilizam as redes sociais como parâmetro de consumo e influência cultural. A rapidez da informação na internet, acredite, nos aproxima do que era relatado nos primeiros registros astrológicos (de modo diário, com um alcance rápido e não apenas nas revistas mensais, como a astrologia se difundiu massivamente no século XX com o famoso horóscopo do mês).

No início de 2020, a comunidade astrológica via no céu um recado importante. Quatro planetas muito próximos um do outro no signo de Capricórnio, associado a isolamento e escassez. Coisa vista anteriormente na Idade Média. No final de 2020, outro olhar para cima: a conjunção dos maiores planetas do sistema solar, Júpiter e Saturno, no signo de Aquário (associado à ruptura com o pensamento ortodoxo). Também visto pela última vez no século XII. Textos antigos registraram por séculos as mudanças históricas pela observação de fenômenos celestes com os quais se atribuía um valor positivo ou negativo ao diálogo feito pelos planetas envolvidos nas aparições. Em 2021, ainda estaremos, e cada vez mais, buscando respostas no céu. Testemunhar um evento histórico de uma natureza avassaladora e trágica como 2020 nos põe diante de dilemas e perguntas que não se explicam apenas pelas narrativas científicas. E explora-se ainda o famoso pensamento de Shakespeare: há muitos mais mistérios entre o céu e a terra.

Complementam-se ao saber científico temáticas mágicas, tradicionais, xamânicas. A astrologia se distingue por se apoiar em leis científicas como a mecânica celeste (embora esteja sempre em trânsito e híbrida, meio bruxa, meio lógica). A grande e nada sutil diferença é que as projeções feitas pelos povos antigos diariamente se constituíam como um saber hermético e de cunho sacerdotal e preditivo, ligado aos ciclos de colheita e expansão territorial. A ideia, estoica, era a de aceitar o destino e não lutar contra ele. Hoje, apesar da boa diversidade e da circulação de textos canônicos da astrologia clássica, com informações consistentes sobre os primeiros teóricos, matemáticos e filósofos que estudaram o tema do destino e do tempo, o ritual sagrado de olhar com precisão o céu do dia foi substituído por uma curiosidade faminta sobre uma pergunta vital que nos angustia e completa: o que, afinal, eu sou? O que, enfim, o outro é? Ambos, porém, antigos e contemporâneos, mesmo ideologicamente distantes, utilizam esse saber como uma ferramenta de controle. Como toda informação, a astrológica é também poder.

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A história da astrologia cresce com a invenção da imprensa. A galáxia de Gutenberg também torna possível a publicação semanal das efemérides, os trânsitos planetários – que para os antigos influenciavam nas questões práticas da vida, como a permanência ou não do rei em seu poder e o próprio bom humor, ou não, do monarca e seu povo. Isso foi lá no século XIV. Era como se equivalessem, hoje, às tábuas de marés. As efemérides são passagens rápidas, principalmente de astros como a Lua, significadora, na tradição helênica, da disposição social do indivíduo e do humor coletivo. Difícil fazer um resumão das várias luas de um mês numa revista mensal, já que o astro faz várias visitas aos signos, passando apenas dois dias por eles (o Sol passa um mês).

O filósofo Theodor Adorno, que não gostava de jazz, também não se deu bem com a astrologia. Na década de 1950, lançou sua série de artigos sobre a análise do horóscopo mensal do Los Angeles Times. Vou esclarecer algumas questões históricas. A primeira delas é que o estudo é sobre astrologia moderna, que só apareceu no final do século XIX junto ao surgimento de associações ditas místicas, clubes oraculares, além da descoberta de Netuno, em 1846. O mundo estava fascinado com o que tinha do outro lado. É o mesmo período de explosão das revistas mensais, que revertem o princípio básico do conceito de horóscopo.

Para a astrologia tradicional, era a análise da Lua, e do dia, assim como se pode fazer hoje na internet, que determinava o estudo do tempo, partindo da premissa de que há uma correspondência entre os fenômenos celestes e terrestres. As revistas mensais não tinham como analisar 30 dias. Então deixaram o Sol, o mês, como protagonista. Não é que esteja errado. Mas o tempo e seus mistérios são rápidos no contar das horas. Por isso, a gente fala que a Lua está em tal signo. É ela a catalisadora principal da grande premissa astrológica: tudo tem início, meio e fim.

Então, o título do livro de Adorno (As estrelas descem à Terra: A coluna de astrologia do Los Angeles Times – um estudo sobre superstição secundária, na edição brasileira) está incorreto. O ideal seria “O estudo da astrologia moderna do Los Angeles Times”. Outra questão: o horóscopo é apenas uma das áreas da astrologia. Ele, o horóscopo, é o estudo do dia. Esse estudo surgiu com a observação dos céus em cidades altas do Oriente e Europa Oriental. As horas do dia são atualmente o método de observação astrológica mais difundido e popular.

Os novos astrólogos, e a nova astrologia, são influencers e, sinceramente, estão pouco se importando com os cânones. Quem comanda é o usuário da rede, alguém que busca uma proximidade maior de uma ideia de consumo, engajamento e participação mediados por quem consideram autoridade (pois transmitem algo como verdade ou entusiasmo, capazes de prender sua atenção).

São páginas como a de Márcia Sensitiva, com mais de 1 milhão de seguidores, Astroloucamente (quase 4 milhões de seguidores) ou Deboche Astral (269 mil seguidores). Desbancaram a precursora Susan Miller, principal referência de previsão na internet dos anos 2000. E parecem impor uma distância abissal dos anos de Walter Mercado, o popstar porto-riquenho que ajudou a difundir a imagem do astrólogo com uma capa ostensiva – e do seu Ligue Djá, um fenômeno das práticas oraculistas nos finados anos do telefone com fio (lááááá nos 1990).


Um dos vídeos do canal Deboche astral, com 1.4 milhões de inscritos.

A Netflix, inclusive, disponibilizou um documentário excelente sobre Mercado, Ligue Djá: o lendário Walter Mercado, que ajuda a entender o mito criado em torno de quem se propõe a estudar as estrelas. São conhecimentos pouco técnicos e nada fiéis à tradição oraculista em sua reverência e compreensão ao tempo. Humor, coach terapia e frases motivacionais compõem esse conteúdo consumido pelos usuários das grandes redes, em séries que definem “o que é ser ariana” ou “como conquistar o crush de Libra”. Sempre teve isso? Sempre existiu a curiosidade sobre o futuro. E existem dezenas de oráculos que profetizam o destino na Terra. Jamais, não é exagero, houve tamanha aproximação e impacto em instâncias sociais como a que temos atualmente. O olhar para os céus se concentrou num exercício narcísico de entendimento do que se é e do que se pode vir a ser.

Num artigo publicado em setembro de 2019, no El País, a jornalista Carmen López resumiu os tempos de pop star da astrologia. “Loucos do signo”: como a ansiedade pelo futuro fez com que millennials fossem seduzidos pelo horóscopo, diz o título da matéria (leia aqui). E completa: “Astros vivem uma época dourada, com grandes investimentos de dinheiro em apps com milhões de seguidores cada vez mais jovens”. Numa breve e rápida olhada do Playstore, parei na contagem de mais 100 apps com dicas do dia, romances e dinheiro usando a mitologia criada pelos gregos para explicar a natureza de cada um desses signos. Semioticamente, os gregos atravessaram os tempos com uma imagem potente o suficiente para simbolizar e resumir uma ideia com a rapidez que só as imagens possuem.

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Olhar para cima e perguntar aos deuses como as coisas aconteciam tinha uma função sacerdotal e, por isso, a astrologia nasceu muito próxima da função simbólica exercida pelas religiões seminais: entender o tempo e respeitá-lo. O céu era o relógio do povo e a astrologia se fundamentava como uma prática que unia a cidade (hoje, a política), o homem (o sujeito) e o cosmo (a origem de tudo). No céu, o relógio cósmico é dramático e exerce seu domínio à revelia do que os nossos relógios definem. No céu, quem aponta para onde seguimos é a Lua, um Coelho Ricochete, com a rapidez de quem percorre 30 graus no relógio zodiacal em apenas dois dias – uma pequena fatia da pizza. São 360 graus contidos nesse relógio. E cada planeta tem seu próprio tempo.

Saturno, por exemplo, vai precisar de 28 anos para fazer o que a Lua executa em duas noites, percorrer o círculo inteiro, devorar a pizza toda. Sua passagem lenta pela faixa zodiacal, dividida nas chamadas 12 casas astrológicas, parece nos levar a um personagem de Kafka, prostrado, castrado, ressentido e com uma vida inteira para dar conta do que poderia ser resolvido em poucos dias... se não fosse a própria vida que freasse seus desejos, frustrando-os (uma pizza kafkiana e indigesta).

Os planetas são ponteiros que protagonizam uma história de vários plot twists, na qual era preciso, outrora, um conhecimento muito técnico e aprofundado sobre a melhor hora, o melhor momento de agir, desafiar, amar, recolher, findar e seguir. Era essa a essência original. Ela ainda permanece, mesmo que não tenhamos mais a sacralidade de outros tempos. Topamos com eventos ou oportunidades céleres e aqueles que se arrastam como Saturno. E ainda temos dúvidas. São muitas.

Embora a astrologia tenha origem nos povos sumérios – que estavam mais interessados em saber como as coisas aconteciam –, foram os gregos, cujo objetivo era o de compreender por que as coisas aconteciam, os responsáveis pelas associações que fazemos hoje: da poesia aos memes; do misticismo à coleção da loja de departamentos.

Os gregos, com sua peculiar compreensão dos ciclos da vida, conseguiram, através das narrativas míticas, tornar, sem dúvida, a astrologia tão popular. A narrativa mitológica possibilitou à função oracular praticada pelos astrólogos sacerdotais o exercício da catarse e memória com os quais falamos sem muita consciência e conhecimento que os signos são o que são – ou que somos o que somos – porque os mitos assim o eternizaram. São mais de 15 mil anos que separam uma lua fincada num osso de uma cabra do clique rápido num site ou página do Instagram com desenhos, frases e reflexões. O tempo separa tanto; mas mesmo diante de tanto tempo ainda estamos aqui buscando respostas sobre por que as coisas são o que são e por que somos o que somos e como o céu pode falar conosco.

E, nesses trechos e fragmentos difusos que encontramos na navegação da internet, estamos levando conosco, mesmo que atomicamente, ou automaticamente, o que Platão buscou definir no Timeu, um livro sobre a origem da vida e dos deuses. E também chegamos à função dessacralizadora da psicanálise freudiana, que nos aponta um infinito particular na gente. Porque, mesmo que tenha surgido como um recurso de observação do tempo, inicialmente matemático, a astrologia se difundiu nos últimos séculos como uma espécie de bússola do autoconhecimento, erroneamente associada à psicanálise e à psicologia. Porém, nesse esforço de compreensão pessoal, transformou-se num saber multidisciplinar, cuja aplicação encontra um amplo aparato na mitologia helenística (assim como Freud ou Jung), com suas jornadas em torno da natureza das nossas emoções.

Pode até parecer romântico: o Instagram e a convergência das mídias nos aproximou mais da Lua. Nunca estivemos tão próximos dos seus movimentos e de suas fases. Nunca estivemos tão íntimos da sua passagem pelas constelações e signos com a amplitude de páginas destinadas à compreensão ou abordagem astrológica.

Numa busca rápida no Instagram, são 4 milhões de citações ao termo astrologia, só em novembro de 2020. O app de Susan Miller tem mais de 11 mil avaliações. Mas também é fatal. Se, na indústria cultural, nada escapa à “simbiose” do produto ao seu valor de mercado, a astrologia se tornou um negócio bilionário. E, sim: distorce um sentido que vai muito além de uma característica comportamental ou de um astral.

A astrologia se orienta popularmente hoje na definição de um certo jeito de ser que marca o que chamamos de nativo – o dono do mapa (essa é a parte na astrologia que se afasta do horóscopo). Durante o século XX, a prática se descentralizou do seu tom fatalista e a maior parte da abordagem se concentrou em estimular as pessoas a se regozijarem do que são. Esse centramento no eu – tão iluminista, olha só – distancia-se de uma das premissas básicas do ato de observar e prever o dia ou a missão pessoal: o fato de que a vida não é só sobre o que a gente quer ou deseja.

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As primeiras práticas astrológicas eram preditivas, os famosos horóscopos, e buscavam respostas para a realização e o tempo de acontecimento de um evento. Depois vieram os primeiros mapas, um dos recursos mais populares para se entender o destino que nos pertence. Eles eram chamados de Julgamento da Natividade e sua composição baseava-se na configuração da hora de nascimento, sinalizando o que por muito tempo foi chamado de Carta Natal e hoje se chama de Mapa Astral.

Essa carta, uma espécie de mapeamento do destino, contém promessas que deveriam ser julgadas conforme uma “tribuna”, composta de testemunhas representadas pela força dos planetas. Cada planeta era uma testemunha forte ou fraca para “depor” sobre o nativo. As escolas tradicionais ainda usam esse método. Independentemente da substancialidade da prática ou técnica atual, esse novo percurso da astrologia, mesmo menos denso, nos aproxima dos ciclos da vida em seus momentos de tensão e repouso. E nos aproxima também de todo aparato mítico, mágico e mitológico desenvolvido por milênios pela narrativa mágica da tragédia e das jornadas dos heróis descritas pelos gregos e absorvidos pelo neoplatonismo.

O interesse massivo pela astrologia, aliás, não é nada inédito nem mesmo recente. Claro, mudou seu alcance e distribuição ao longo do tempo. A importância e popularidade da prática oracular oscilou entre revoluções tecnológicas e culturais. A astrologia já foi ensinada junto da Medicina nas universidades europeias e quem a dominava tinha prestígio social. A cultura iluminista a retirou do ensino acadêmico, mas antes disso ela já tinha sido banida na Idade Média por ser associada ao paganismo.

No século XIX, no auge da cultura romântica europeia, a astrologia voltou a ter destaque nas sociedades secretas que buscavam, talvez, a magia perdida em tanta lógica de progresso e civilidade. Na década de 1960, com a cultura hippie, ela mereceu até hino: Age of Aquarius, com o icônico musical Hair, repleto de referências psicodélicas. A Era de Aquário da Broadway é uma ode à liberdade contracultural e se associa ao mito do signo que dá nome à música. A astrologia viveu, então, um boom de exploração mística e comercial, que foi se disseminando ao longo das décadas com a ideia de uma sociedade mais justa e livre. Porém, essa liberdade poética trouxe uma baita confusão.


Trailer do musical Hair (1970).

Junto com a música, associou-se o período da contracultura à chamada Era de Aquário, o signo do que está fora do eixo, do (ex)cêntrico. Pra não correr esse risco de novo, vamos lá: houve uma importante conjunção entre Júpiter e Saturno, em dezembro de 2020, que marcará gerações a partir de agora em torno dos temas ligados ao signo de Aquário: novas ideias e pensamentos. Mas não existe Era de Aquário, até então.

Diz a lenda que foi o pastor Ganimedes quem inventou a chuva. Está nas Metamorfoses de Ovídio e em qualquer livro de mitologia. A coleção de Junito Brandão (Mitologia grega, em três volumes) é uma das mais confiáveis, já que há muitas alterações nas narrativas.

Ganimedes é o mito de Aquário: um pastor que é raptado pelo insaciável Zeus (Júpiter) e cuja missão é subir ao Olimpo para servir o néctar dos deuses. Mas, insatisfeito com uma tarefa tão burocrática, Ganimedes pede autorização para servir o que sobrou da Ambrosia aos mortais. E, dessa forma, a mitologia explica o objetivo de Aquário no mundo: compartilhar. O símbolo de Aquário é um homem com uma ânfora derramando água e contém em si o peso altruísta que é nos lembrar de que a vida não é só sobre nós.

Mesmo em ciclos de repetições dos astros, o que nos leva a uma certa previsibilidade da lógica celeste, existem movimentos raros, como o da estrela que guiou os três reis magos ao nascimento de Cristo e o que se viu em março de 2020 ou agora no final do tenebroso 2020. As eras, assim como na definição histórica, são passagens que pressupõem uma mudança climática, econômica, filosófica e um novo sistema de crenças com um acontecimento específico e uma simbologia como ponto de referência. Para a astrologia clássica, ainda estamos na Era de Peixes: período no qual o mar fora explorado e os continentes ultrapassados pelas navegações marítimas. Época de difusão também do Cristianismo.

A mudança das eras tem uma relação com as leis astronômicas: seria necessário, para essa mudança de fato ter acontecido ou acontecer, a alteração do ponto vernal para um outro signo. O ponto vernal sinaliza o ingresso do Sol em Áries e coincide com o equinócio de primavera. Atualmente, essa passagem ainda acontece com o ponto vernal no signo de Peixes. Não esteve presente em 1962, como se divulgou, nem se fará presente antes de 2100. Isso porque, embora o universo esteja se expandindo, ele assim o faz de maneira muito lenta, devido ao movimento de rotação do eixo da Terra, que é de aproximadamente um grau a cada 70 anos. Certamente na Era de Aquário teremos carros sobrevoando as estradas e muito mais. Tudo levando, por enquanto, tempo para se desenvolver. Tentem não apressar o rio.

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Não é bagunça não! Na hierarquia simbólica da astrologia existe uma ordem para tudo. Os planetas cumprem uma função física e psíquica. Para os antigos, apenas se interpretavam os planetas visíveis a olho nu (Sol e Lua, também chamados de luminares, são considerados planetas). As sete esferas. Para Platão, que atribuía a vida na Terra à busca de uma ideal e uma essência, as almas aqui chegadas vinham de outras existências, o que levava o filósofo a afirmar que viver é lembrar do que se foi.

Para a astrologia clássica, a alma chega ao mundo passando pela sétima esfera, Saturno. Com seus anéis, Saturno simboliza que a vida é limitada, que há restrições e para se chegar ao centro de si só mesmo conhecendo seus próprios limites. Logo depois, vem Júpiter: a vida também é um sistema de crenças que se expande em cada modo de ser, numa alegria especial de se fazer algo. Os povos antigos estavam, sim, diante do que chamamos pensamento mágico: o incompreensível no mundo e em nós. Na magia, o mito é soberano. Joseph Campbell, principalmente em O poder do mito, mas também em O herói de mil faces, aponta a importância catártica da complexa narrativa mítica. Para ele, o mito nos aproxima da lógica da vida em sua trama de iniciação (os vários ritos de passagem), o desenvolvimento da história e caminho de cada indivíduo; as reviravoltas (os plot twists inevitáveis da vida) e aceitação do destino. Amor fati, diria Nietzsche.

Até a revolução humanista não havia tanto interesse em entender o indivíduo como um sujeito específico. Buscava-se análise para entender o temperamento, o jeito de ser e agir. Sem muita ênfase na personalidade pessoal. Hoje, a astrologia dá um protagonismo ao indivíduo, com sua missão e jeito pessoal. Essa ênfase, inclusive, é a motivadora de uma querela antiga entre astrólogos modernos (centrados no sujeito) e clássicos (preditivos). Para os tradicionais, há pouco o que se fazer diante do destino. Modernos creem no livre arbítrio: seria possível mudar ou atenuar o destino com a consciência do que é danoso em nós ou no tempo em que estamos. Essa ideia parte do pressuposto, iluminista, de que o homem na consciência dos seus atos, munido de racionalidade ou autocontrole, evitaria se confrontar com o pior (ignorando, portanto, a ideia original dos clássicos, e dos mitos, de que a vida não é exatamente sobre o que desejamos).

Diante do fatal, a astrologia passou por um período de descrédito, principalmente após a revolução heliocêntrica. Nos mapas, usa-se o sistema geocêntrico como parâmetro, pois é sobre a vida na Terra que se buscam respostas. Assim, passou a não ter relevância acadêmica, mesmo sendo usada por cientistas como Galileu e Kepler. Para muitos, não tem importância alguma já que se encontra epistemologicamente desprovida dos critérios científicos atribuídos como base da consciência prática intelectual (uma obsessão iluminista). Existe uma longa discussão sobre isso. No YouTube, na mesa de bar e em Feyerabend, que publicou O estranho caso da astrologia (uma defesa ao sistema de estatística e inferência presente nesta simbólica e milenar técnica de predição).

Como alguém que estuda os céus, percebo que o destino descrito pela astrologia, por mais que na técnica eu tente explicar, parece muitas vezes um poema de Wislawa Symbosksa: “A existência tem sua própria razão de ser”. E para muitas coisas não há explicação. “Só sei que foi assim”, diria Chicó, no Auto da Compadecida.

Para os antigos, os deuses, ou a ordem cósmica, eram indiferentes ao que gostaríamos de ser ou aos nossos desejos. Numa passagem de Troia, o filme, vemos o herói Aquiles diante do inexorável: seu brilho seria sua ruína, profetizam os oráculos. Aquiles então foi banhado no Rio Estige, tendo sido segurado pela mãe pelo calcanhar – o único ponto vulnerável do seu corpo e local onde é atingido mortalmente. Ir à Troia significava ser coroado, mas isso custaria a própria vida.

Os gregos chamavam de hybris: quando os mortais desafiavam suas próprias limitações como homens, logo, falíveis. A rasteira era tão grande, que se desenrolava numa tragédia. A tragédia era a forma como essa cultura explicava o destino inevitável. Não tinha saída. A sorte lançada era a mesma que dava a vitória e sacrificava o herói. A tragédia e o mito tinham uma função educativa: respeitem as regras, diriam os deuses. Respeitem o tempo, diriam os sábios.

CAROLINA LEÃO, astróloga, jornalista e doutora em Sociologia pela UFPE.
KARINA FREITAS, designer e ilustradora.a

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