Parafraseando Louise Bourgeois, quando disse que os pintores do século XVIII faziam “peças de conversação”, Monica Piloni cria – como Louise chamava suas esculturas – “peças de confrontação”. A obsessão, o eixo que alicerça e move a pesquisa visual da curitibana, radicada em Bruxelas, é o corpo, o próprio corpo, usado como molde, reproduzido em escala natural, de forma realista, em obras que criam situações que colocam em dúvida o limite entre o real e a sua representação.
Em esculturas, objetos e fotografias, Monica reconfigura o corpo humano por intermédio de distorções, desmembramentos, omissões ou multiplicação de partes desse corpo, no caso o seu, de forma perturbadora, muitas vezes mórbida. Ela nos fala mais da corporalidade do que do corpo em si. Sua obra questiona a sexualização da figura feminina e causa atração e repulsão, não necessariamente nessa ordem.
Minha alma sob a cama (2014), impressão fotográfica, 66 x 99 cm. Imagem: Divulgação
Como o alemão Hans Bellmer, Monica nos apresenta “um objeto provocativo”, algo imóvel, inanimado, em uma situação às vezes “passiva”, mas que, mesmo informe, carrega consigo uma materialidade que desordena e perturba na sua aparência e profundidade. Diante de muitas de suas obras, lembro uma frase de Michel Foucault: “A profundidade não é senão um jogo e uma ruga da superfície”.
É também na superfície brilhante, lustrosa de suas esculturas que seu trabalho lembra a luz, o luxo, a calma e a volúpia a que Matisse se referia quando falava do lirismo romântico de Baudelaire. Mas a artista agrega mais carne, pernas, braços, cabeça e rosto, criando com as partes figuras que se (des)equilibram, compõem (per)mutações do corpo, fragmentos incompletos que se oferecem ao espectador belos e sedutores. Esses mesmos fragmentos abrigam fusões, duplos, múltiplos que engendram uma operação ao mesmo tempo de (des)figuração e (re)configuração transcendente ao pathos do corpo, palavra grega para “sofrimento, paixão, afeto”.
O ESTRANHO FAMILIAR
Nas obras de Monica Piloni, é possível entrever um conceito que se encontra no texto O estranho (1919), de Freud, no qual ele afirma que a angústia é disparada pelo retorno de algo familiar que foi recalcado. O termo alemão das unheimliche significa um estranho inquietante (uma pessoa, impressão, situação) que não é propriamente misterioso, mas “estranhamente familiar”.
Há na obra de Monica Piloni questões relacionadas à sexualidade, sendo atravessadas pelo mórbido. Entre superfície e segredo, entre mudez e nudez, a artista – ao questionar a natureza da representação – cria uma insubordinação do corpo, rompe com o corpo integral, tornando-o fragmentos, partes, restos intercambiáveis e múltiplos. Vale lembrar que o fato da escultura ser tridimensional nos aproxima mais dela, do objeto em si, ainda mais se for de corpos em escala natural e quando o molde é o próprio corpo da artista.
Lee (2019), resina e unhas postiças, 34 x 44 x 70 cm. Imagem: Divulgação
“Eu acho que a morbidez evoca um certo mistério, uma nebulosidade aos corpos femininos nus em poses imponentes, com músculos tensionados, corpos flexíveis e vaginas sem pelos”, diz a artista, que depila o próprio corpo ou do modelo-vivo para permitir o desmolde. “Além disso, a pele deve ser lubrificada e isso já abre um paralelo com a sexualidade, desde o processo de produção. Acho que a sexualidade também pode estar no observador que se coloca como voyeur desses corpos. Talvez eles também possam trazer certo desconforto.
“Se há um objetivo estético e conceitual que tenho buscado chegar como resultado no meu trabalho é alcançar o conceito de Freud de unheimlich. O inquietante, a estranheza, o assustador que repele e atrai ao mesmo tempo”, aponta a artista. “Nunca tive a intenção de fazer esculturas hiper-realistas, eu busco a artificialidade. A pele tem textura de plástico com acabamento de pintura industrial com brilho acetinado e cabelo sintético.” Monica acrescenta: “Assim como em Bataille, no livro História do olho, minha obra também é uma revelação dos meus traumas e das experiências da minha infância”.
O FEMININO E O GROTESCO
No ensaio Cindy Sherman: sobre o feminino (2008), Alessandra Monachesi Ribeiro discorre sobre um aspecto da obra da artista norte-americana que dialoga com os trabalhos de Monica Piloni: a relação entre o grotesco e a feminilidade. Nas fotografias de Cindy e nas esculturas de Monica é como se o grotesco nos arremessasse a um tipo de suspensão das ordenações existentes na realidade, contrário à ordem natural, levando-nos ao campo do fantástico, do absurdo.
Em ambas, de algum modo, somos desterritorializados subjetivamente. Alessandra afirma: “Como desterritorializante, o grotesco traz consigo uma dimensão de verdade, de enunciação de uma verdade subterrânea àquilo que aparenta. O absurdo, que não se explica, permanece como absurdo e inquietante, gerando um desconforto frente àquilo que brota inexplicado no seio da própria ordem do mundo, tal qual uma força que se lhe escapa e sobrepõe”.
Com o rabo entre as pernas (2017), fibra de vidro, cabelo
sintético, cabo de aço, 95 x 85 x 70 cm. Imagem: Divulgação
Nas esculturas de Monica há algo de grotesco que, ao mesmo tempo, fascina e seduz o nosso olhar. Abrigam em si algo de vulnerável, de desamparo, ao mesmo tempo carregados de sedução, não só pelo fato de representarem figuras femininas. Assim como as fotografias de Cindy Sherman, suas esculturas provocam uma reação voyeurística no observador, no público, tornando-o cúmplice. Monica estabelece uma fronteira tênue entre a renúncia do lugar da mulher como objeto fetiche e a denúncia desse lugar do espectador, de seu fetiche de voyeur. Não há como não pensar em uma ação performativa em seus trabalhos. Seja quando exibidos em série, individualmente ou coletivamente, ela cria um cenário, um “palco de teatro” no qual sua obra é encenada.
Apropriando-me de um comentário de Alexandre Rodrigues de Costa acerca dos trabalhos de Hans Bellmer, podemos dizer que Monica instaura “uma espécie de operação de desmantelamento da representação”. Nesse desmantelamento ou nessa desordem, ao romper com o processo de representação do corpo, seja ele feminino ou não, a artista atualiza Bataille, quando dizia que o ser em si é um labirinto, sendo impossível escaparmos dele, visto que não estamos nele, mas somos ele.
Bailarina, ML (2019), resina, pla, collant, sapatilhas, prótese
ocular, cabelo sintético e caixas de acrílico, 186 x 113 x 32 cm.
Imagem: Divulgação
ALEGORIA E SIMULACRO
Em sua alegoria sobre o corpo, a artista leva consigo o que significa a palavra, que trata sobre outra coisa, ou coisas. De certa maneira, ela cria simulacros que evocam o divinatio ao qual se referia Michel Foucault, aquilo que constitui o conhecimento em profundidade, que vai de uma semelhança superficial a outra mais profunda.
Observe-se que, tendo como molde seu próprio corpo, Monica Piloni cria esculturas idênticas a si mesma, mas que também são outra, uma outra. Entre a interioridade e a exterioridade, entre converter e perverter, ela vai criando seu vocabulário visual que parece carregar tatuado a frase de Paul Valéry, “o mais profundo é a pele”. De cara se estabelece um paradoxo, no qual reside uma condensação em que os dois campos de significados se fundem, causando surpresa. Afinal, como aquilo que está na superfície pode ser o mais profundo? Nos próximos anos, décadas, é possível que a artista continue a enunciar verdades ocultas, subterrâneas, que brotam na aparência, na superfície e no corpo de sua obra. Simulacros, corpos sem órgãos, mas vivos, realizando uma transgressão de formas, “dilacerando a semelhança”.
Gangorra (2019), bronze e madeira, 30 x 48 x 18,4 cm (miniatura de obra original feita em fibra de vidro, pla, madeira e motor, nas dimensões 150 x 240 x 92 cm).
Imagem: Divulgação
Seus projetos futuros, pós-pandemia, envolvem atores, músicos, cenários, figurinos e vídeos, cujos temas deverão girar em torno de sustentabilidade, industrialização da vida animal, humanidade e apocalipse. Como ela mesma diz: “Talvez a criatividade ande na contramão da realidade e a falta que gerou o distanciamento social tenha motivado a ânsia pelos projetos coletivos”.
EXTRA: Vídeo do ateliê de Monica Piloni (São Paulo, 2011)
JURANDY VALENÇA, jornalista, curador, artista visual e gestor cultural, trabalha para instituições públicas e privadas e colabora para veículos de arte e cultura.