Curtas

‘Ledores no breu’ e as possibilidades da palavra

Durante 55 minutos, sozinho em cena, a sala da sua casa (adaptada para o espetáculo), Dinho foi acompanhado por mais de quatro mil pessoas

TEXTO Samarone Lima

01 de Dezembro de 2020

Em 'Ledores no breu', Dinho Lima Flor faz uma colagem de textos em torno do letramento

Em 'Ledores no breu', Dinho Lima Flor faz uma colagem de textos em torno do letramento

Foto ALÉCIO CÉZAR/DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 240 | dezembro de 2020]

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Sou péssimo com tecnologias, impaciente com coisas sem a presença humana, mas, dia 12 de junho, quando vi que o ator pernambucano Dinho Lima Flor iria apresentar a peça Ledores no breu, lutei contra meu lado turrão, humildemente cliquei no #EmCasaComSesc e fiquei esperando.

Um viva às tecnologias, como são lindas!

Durante 55 minutos, sozinho em cena, a sala da sua casa (adaptada para o espetáculo), Dinho foi acompanhado por mais de quatro mil pessoas. Trazia, em tempos sombrios, o pensamento vivo de Paulo Freire. Leva a assinatura da Companhia do Tijolo, fundada em 2007, em São Paulo. Um pernambucano que saiu de Tacaimbó, tangido pela incansável certeza de que o cabo de uma enxada não era seu destino, apresentava, num espetáculo solo, o pensamento de outro pernambucano, tangido do Brasil pela Ditadura de 1964, por usar a palavra alfabetização como algo libertador.

“O ato de resistência é dizer – eu sigo. É um ato de amor”, conta Dinho, que segue fazendo lives, enquanto a vacina da Covid-19 não sai. Ele diz ter ficado surpreso com a ausência de comentários pouco elogiosos, durante a apresentação. “Paulo Freire é o algoz deste governo. É o centro do ódio, do envenenamento dessas pessoas, mas não teve ofensa.”


Com a Companhia do Tijolo, o ator encenou, em 2016, O avesso do claustro.
Foto: Alécio Cézar/Divulgação

Cheia de lirismo, de momentos desconcertantes, a peça mostra as imensas possibilidades da palavra. Na história da palavra Nina, Joaquim, que é analfabeto, promete à sua amada que a primeira palavra que irá escrever, quando aprender, será o nome dela. Foi uma experiência de Paulo Freire em sala de aula. Ele viu um aluno rindo sozinho, aparentemente do nada, e perguntou o motivo.

“É que acabei de escrever o nome dela: Nina…”

O mais duro dos seres baixa a guarda ao ver o relato de Patativa do Assaré, quando conta o momento decisivo em que deixou de ser matador de passarinhos e passou a imitar o canto deles. “Isso aconteceu quando uma mulher leu um cordel para ele. Até aquele instante, Patativa matava diversas espécies de pássaros apenas por curiosidade, por matar, porque todos os meninos matavam passarinhos. É isso que levamos para as pessoas.”

Vários textos libertários são acompanhados de cuidadosa seleção musical, começando pelo Samba da utopia, de Jonathan Silva, feita especialmente para o espetáculo. Zé da Luz, poeta paraibano, Maria Valéria Rezende, Lêdo Ivo (e seu comovente texto Os pobres na estação), Frei Betto, Cartola, Manu Chao e Jackson do Pandeiro.

Dinho Lima Flor é um dos principais atores do Brasil e vem trilhando um caminho em busca dos mestres. Em 2007, após fundar a Companhia do Tijolo, conheceu o Memorial de Patativa do Assaré, e pensou: “Tenho que fazer algo sobre esse poeta”. Em 2008, ele encarnava o próprio Patativa, no premiado Concerto de Ispinho e Fulô. Em 2013, era o poeta espanhol Garcia Lorca, fuzilado pelos soldados do general Franco. A peça era uma homenagem também a Mariana Piñeda, a mulher que bordou a bandeira da República, e que foi morta por não delatar seus companheiros.

Em 2016, foi a vez de encarnar Dom Hélder Câmara, no aclamado O avesso do claustro, que chegou ao Recife no festival Janeiro dos Grandes Espetáculos de 2017, e foi ovacionado no Teatro de Santa Isabel. “Quando entro em cena, Dom Helder parece que entra comigo, um encosto. Um belo encosto”, diz.

A longa trajetória no teatro paulistano, o reconhecimento, os muitos convites para apresentações em todo o Brasil e exterior têm um passado igualmente intenso. Dinho é o décimo oitavo dos 20 filhos da louceira Dona Benedita e do carpinteiro João Fulô. Nasceu em 1971, e tinha um destino já selado – cuidar do roçado, como os irmãos.

Um homem que leva a literatura como missão só veio a ler e compreender algo de verdade aos 16 anos. “Eu tinha uma indigência literária.” Deu sorte, porque Tacaimbó, na sua adolescência, recebeu uma leva de pessoas com “outras ideias”, das Comissões Eclesiais de base. “O meu cerne está ali”, diz.

Cresceu escutando o pai dizendo um “vamo” apressado, às 4h30 da manhã, acompanhado de um café puro. O roçado o esperava, com a enxada e o mato. Dinho tinha uma preguiça absoluta, não acreditava que os calos nas mãos dos irmãos faziam sentido para sua vida, nem as palavras da mãe, que alertava – “todo mundo tem que ter sua enxada”.

“Eu queria me ausentar daquilo. Sou melhor que o cabo de uma enxada”, pensava Dinho.

Inventava desculpas para escapar do sol e dos calos. Dizia que as aulas na escola começariam mais cedo. Logo ficou conhecido como leitor, e passou a ser chamado pelos mais velhos, analfabetos, para ler cartas dos filhos que estavam longe, especialmente em São Paulo. “Muitas vezes, os filhos tinham dificuldades com a escrita, e eu tinha que traduzir o que eles tentavam dizer. Era uma espécie de tradutor de memória afetivas.”

Depois, a enxada ganhou um adversário ferrenho – Dinho começou a escrever.

Tinha 17 anos, quando sua mãe percebeu que a luta seria inútil. Olhou para o filho e sentenciou: “Olha, você não quer Tacaimbó. Tem uma chance em São Paulo”. No dia 20 de janeiro de 1989, pegou um ônibus com a mãe para São Paulo. Iria se juntar aos irmãos, que migraram na década de 1970, todos analfabetos.

Dinho, que nunca tinha pegado um ônibus, que não conhecia sequer Caruaru, que nunca tinha visto uma escada rolante, vomitou os três dias de viagem, e acordou em uma cidade com 10 milhões de habitantes, para começar a nova vida. Cinco anos depois, o teatro entrou em sua vida. E nunca mais saiu.

SAMARONE LIMA, jornalista, poeta e prosador.

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