Curtas

Pacarrete

A história de uma bailarina obstinada, mas muitas vezes incompreendida e tachada de louca pelos habitantes de sua cidade

TEXTO Fernando Silva

05 de Novembro de 2020

Marcélia Cartaxo dá vida à bailarina Maria Araújo Lima (1912-2004)

Marcélia Cartaxo dá vida à bailarina Maria Araújo Lima (1912-2004)

Foto LUIZ ALVES / DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 239 | novembro de 2020]

contribua com o jornalismo de qualidade

O cearense Allan Deberton estreia na direção em longas-metragens inspirado numa ex-vizinha. Aos 38 anos, leva às telas a história de Maria Araújo Lima (1912-2004), bailarina e professora nascida na mesma cidade que ele, Russas, e muitas vezes incompreendida e tachada de louca por seus habitantes. Gravado em locações do município do interior do estado, o filme entra em cartaz em 26 de novembro e ganhou o título de Pacarrete, apelido da personagem.

Delicado retrato de uma artista e suas idiossincrasias, a obra acompanha os esforços da mulher para fazer uma apresentação de balé na festa de aniversário de Russas. Mesmo ridicularizada pela profissão que escolheu, pelas roupas coloridas e por manias como a de não deixar pisarem na calçada diante da casa dela, Pacarrete segue firme em busca do objetivo, sempre guiada pelo trabalho da dançarina russa Anna Pavlova (1881-1931). “A gente está falando do amor dessa personagem pela sua arte, pela sua cidade”, afirma Deberton sobre a protagonista, cujo nome vem do francês pâquerette, margarida em português. “E é um amor pelas pessoas, porque existe uma troca, que é a de fazer algo por alguém e por um grupo.”

Quem interpreta a bailarina é Marcélia Cartaxo, vencedora do Kikito de melhor atriz pelo papel no Festival de Gramado de 2019 – a mistura de comédia e drama faturou mais sete troféus na premiação, entre os quais os de melhor filme, direção, roteiro, atriz (Soia Lira) e ator (João Miguel) coadjuvantes. Na trama, ela é uma idosa que fala palavrão, dança, sorri, sofre, escuta discos de música francesa. E quer ser ouvida.

Segundo o realizador, Cartaxo era nome certo desde o nascimento do projeto, quando teve a sensação de que a trajetória da conterrânea poderia ir ao cinema. O primeiro encontro entre os dois se deu em Doce de coco, de 2010, primeiro curta do diretor, rodado em Russas. “A Marcélia estava no elenco, fui mostrar a cidade a ela e contar que a casa de Pacarrete fica na praça principal. Ao falar, olhei pra ela e disse ‘Nossa, que coisa! Você se parece com ela. Você vai fazer a Pacarrete’. E ela: ‘Pô, vou, sim’. Sem entender muito”, relembra, aos risos. Ao conseguir o orçamento e começar a produzir o filme, ligou para atriz, que aceitou de vez.


EXTRA: Trailer do filme


As gravações ocorreram em julho de 2018 e tiveram o envolvimento da comunidade local. “As pessoas foram muito solícitas. A casa da Pacarrete era uma locação que estava praticamente vazia, e a gente trocou o piso do chão. Na verdade, o que está em cena é uma plotagem e foi oferecida pelo dono de uma gráfica, que estudou comigo. Já o sofá era de um padre”, explica o diretor, cuja paixão pelo cinema começou ainda na infância.

Pela televisão, o garoto viu filmes como ET – O extraterrestre (1982), Ghost – Do outro lado da vida (1990) e Flashdance – Em ritmo de embalo (1983) e pegou gosto por aquele tipo de arte. Só mais tarde é que se deu o encontro com as produções brasileiras. Central do Brasil (1998) – dirigido por Walter Salles e que rendeu à Fernanda Montenegro uma indicação ao Oscar – virou seu favorito desde então. Do clássico, ele pescou Soia Lira para o elenco, primeiro, de Doce de Coco, depois, para Pacarrete, no qual vive Maria, empregada doméstica da bailarina.

Mas outro longa nacional seria o responsável por mudar tudo. “Gosto muito do Karim Aïnouz e de O céu de Suely (2006)”, revela. “É o filme que me fez entender que poderia produzir cinema no Ceará porque, além de me impactar, foi gravado em Iguatu, perto de onde eu estava, por cearenses.”

Referência, aliás, é papo sério pra ele. Pinçada por Deberton pra ser Chiquinha, a irmã de Pacarrete, Zezita Matos está nos créditos do projeto de Aïnouz. Assim como João Miguel. Fã do baiano, não titubeou ao arranjar seu número de telefone e logo o chamou para encarnar Miguel, dono da venda e grande amigo da protagonista. Na ligação, lembra-se de falar com entusiasmo da possível participação do ator na produção. “Aí ele pediu o roteiro, e eu não tinha” (risos). Insatisfeito com o resultado daquele momento, Deberton ainda trabalhava com a equipe no documento, e a saída foi lhe passar os termos gerais do enredo. Ele ouviu e topou. “Allan, você é a primeira pessoa que me convenceu a fazer um filme sem ter lido o roteiro”, rememora o diretor, divertindo-se com a frase que João Miguel lhe disse.

O cineasta Cacá Diegues também foi procurado pelo cearense, então um anônimo buscando informações sobre cinema na internet, na época em que a rede social Orkut fazia sucesso. “Não sei como encontrei algo da Luz Mágica, a produtora dele, e mandei um e-mail. Eu escrevi ‘Moro em Russas e quero fazer cinema, mas como faço?’, e ele gentilmente me respondeu ‘Ah, não desista, siga em frente’”, conta Deberton. Neste ano, Diegues é que entrou em contato com a Vitrine Filmes, distribuidora de Pacarrete, para elogiar a obra do colega iniciante. Em entrevista ao portal de notícias UOL, o homem por trás das câmeras em Bye Bye Brasil (1980) o citou como exemplo de “onde o filme nacional acerta: quando a gente revela personagens e situações sobre as quais ninguém mais pode falar, senão nós mesmos”.

Hoje vivendo em Fortaleza, Deberton já pensa nos próximos passos. Com outros dois curtas no currículo, O melhor amigo (2013), estrelado por Jesuíta Barbosa, e Os olhos de Arthur (2016), está agora no processo de levantar recursos para rodar Feito pipa, que narra a relação entre um neto e sua avó. E deseja ainda filmar uma comédia romântica musical chamada As donzelas, embalada por uma trilha sonora com canções dos tempos da discoteca.

Ainda que haja, em suas palavras, “coisas vindo contra” no atual cenário. “A gente está sempre sendo lembrado como país de grande valor em termos de cinematografia, e tem pessoas dizendo que não vale a pena investir no cinema brasileiro”, diz. “Então, eu me preocupo com um limbo que vamos ter, talvez, em função de falta de estrutura conjuntural. Mas é torcer pro vírus passar, para que a gente volte ao set com toda força e para que consiga ter financiamento.”

FERNANDO SILVA é jornalista.

Publicidade

veja também

A obra singular de Octavia Estelle Butler

Basquiat por ele mesmo

Gê Viana