Comentário

A obra singular de Octavia Estelle Butler

Primeira autora negra norte-americana de ficção científica, ela superou limitações sociais subvertendo estereótipos racistas dentro da narrativa especulativa

TEXTO Camile Borba

05 de Novembro de 2020

Octavia Estelle Butler trata constantemente de poder, relações de gênero e questões de raça em seus romances

Octavia Estelle Butler trata constantemente de poder, relações de gênero e questões de raça em seus romances

Imagem JANIO SANTOS SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO

[conteúdo na íntegra | ed. 239 | novembro de 2020]

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Escrevi sobre poder porque era algo que tinha muito pouco.” É com essa epígrafe que a autora norte-americana Octavia Estelle Butler abre o romance Kindred – Laços de sangue, que se consagraria como sua obra-prima. Nascida em Pasadena, Califórnia, em 1948, Butler trataria constantemente sobre poder, relações de gênero e questões de raça em seus romances. Filha de uma empregada doméstica e de um engraxate falecido precocemente, a futura escritora cresceu em meio às dificuldades de ser uma menina negra e pobre em um período de segregação racial nos EUA.

Ávida leitora, desde cedo ganhava de sua mãe revistas e livros descartados pelos seus patrões, e acabou tendo acesso a diversas publicações de ficção científica, das quais gostava bastante. Aos 10 anos, pediu uma máquina de escrever e ouviu de uma tia que meninas negras como ela jamais seriam escritoras. Já aos 12 anos, insatisfeita com o desenrolar do filme A garota diabólica de Marte, ela resolveu que reescreveria o filme, melhorando-o – essa história, inclusive, serviu de base para a sua série de estreia Patternist.

Disléxica, muito alta e tímida, foi nos livros e na literatura que Butler encontrou refúgio. Superando as limitações impostas pelas circunstâncias, trouxe para o centro das narrativas especulativas protagonistas inabituais: mulheres negras. Assim como Dana, protagonista de Kindred – Laços de sangue, Octavia rejeitou carreiras tradicionais, como a de secretária, para dedicar-se exclusivamente à escrita. Aceitando trabalhos de meio período e malremunerados, conseguia pagar aulas no Pasadena City College e ter horários para escrever. Dos 12 aos 58 anos, escreveu praticamente sempre que pôde.

Foi atraída pela liberdade proporcionada pelo gênero ficção científica, e nele produziu a maior parte de sua obra – com exceção de Kindred, que, embora use a viagem no tempo como motivador da narrativa, está mais próximo do gênero fantástico. Butler usou o expediente da literatura para brincar com as possibilidades de mundos e existências, e assim propor discussões sobre racismo, feminismo e relações de poder.

O campo da ficção científica nos Estados Unidos carecia, até Octavia, de escritores negros e, mais ainda, escritoras negras. Até ela, personagens negros e não brancos praticamente não faziam parte do imaginário do gênero; nas vezes em que apareciam nas histórias, acabavam ocupando papéis estereotipados, secundários ou terciários, e eram comumente os primeiros a morrer no desenrolar da trama. Butler inova justamente por trazer o protagonismo para esses corpos desviantes do padrão hegemônico.

Dona de uma lírica cativante, Octavia dá aos seus personagens uma dimensão mais humana: eles não são perfeitos, e o mundo que os cerca também não. Ao representar mulheres negras, ela dá voz aos seus afetos e às suas dores. Sua força narrativa pode ser conferida, por exemplo, quando consegue construir e descrever mundos e entes tão estranhos e não humanos, mas que não somente são acessíveis à compreensão do leitor, como também o deixam seduzido pelas possibilidades de existência que ela apresenta. Atrelando temas densos a uma lírica mais sutil, Octavia é, sobretudo, uma contadora de histórias, e elas têm muito da pessoa que as escreve.

O debate sobre a autonomia, agenciamento e poder dos corpos que não se enquadram no padrão de poder vigente é amplamente discutido em seus romances. Ao trazer personagens que têm seus corpos manipulados – genética, violenta e sexualmente –, sem permissão ou possibilidade de expressar vontade, Octavia questiona as estruturas de poder.

Dana, Lilith e Lauren são exemplos de protagonistas que encarnam vivências diferentes do que é ser uma mulher negra e de como a autora trabalha essa questão: Dana, quando é transformada em escrava ao viajar no tempo para uma Maryland escravista, perde a agência de seu corpo; Lilith é fecundada sem sua permissão pelos Oankali – alienígenas que a salvaram da destruição da Terra e que pretendem repovoá-la com humanos híbridos; e Lauren, acometida pela doença da hiperempatia – capacidade extrema de sentir o que acontece com o outro –, que retira de si o controle das reações de seu corpo, é violada pelas sensações dos outros. Para Lauren, sua doença é quase uma sentença de morte no mundo em que vive; os que são como ela são caçados e escravizados com coleiras que causam dor no lugar de grilhões. A hiperempatia serve, então, de alegoria para a sensibilidade e, dessa forma, Octavia questiona se há lugar para a empatia e sensibilidade em um mundo tão duro e cínico como o nosso.

Essa visão desenganada da sociedade e da humanidade é confirmada em uma entrevista, na qual diz sobre os mundos que criou: “Na verdade, eu nunca projetei uma sociedade ideal. Não escrevo ficção científica utópica porque não acredito que humanos imperfeitos possam formar uma sociedade perfeita”. Apesar de nascidas em meio ao pessimismo, as histórias de Butler falam muito sobre esperança e como ela guia diversos personagens à sobrevivência.

Embora tenha sido aclamada e reconhecida como “dama da ficção científica”, preferia não se limitar a um só gênero e costumava dizer que era apenas escritora, pois: “Boas histórias são boas histórias, não importa como estejam categorizadas”. Ainda que acreditasse ter leitores apenas entre feministas, pessoas negras e amantes de ficção científica, a atualidade de suas obras faz dela uma autora com potencial de público além do que esperava.

Reconhecidamente a primeira autora negra de ficção científica na literatura norte-americana, seu caminho não foi fácil. Teve êxito em uma área que até então era franco domínio de autores homens e brancos, trazendo em suas obras subtextos sociais e identitários que não eram comuns no gênero. Ocupando espaços inabituais para uma mulher negra e contrariando as expectativas, limitações e crenças como as de sua tia, Octavia não somente frutificou na literatura, como também foi premiada mais de uma vez, ainda em vida, com alguns dos mais importantes prêmios de ficção científica. Recebeu o Hugo Awards pelo conto Bloodchild (1984) – que será traduzido pela editora Morro Branco como Filhos de sangue e outras histórias – e por Speech souds (1984); e o Nebula Awards por Bloodchild (1984) e A parábola dos talentos (1998) – este também recebeu o Arthur C. Clarke Award. Além disso, em 1995, recebeu o prêmio MacArthur Fellowship, concedido apenas aos que se destacaram em suas áreas.

TRADUÇÃO NO BRASIL
Octavia era praticamente desconhecida do público brasileiro. Apenas em 2017 a editora Morro Branco traduziu pela primeira vez a autora no país e a escolha recaiu sobre o quarto romance de Butler, publicado em 1976, justamente Kindred. O romance traz a história de Dana, uma escritora negra, que viaja forçadamente no tempo para o sul escravista no século XIX, observando com olhos contemporâneos a escravidão. Ao colocar uma mulher contemporânea para sentir na pele a escravidão, ela desmistifica equívocos do imaginário sobre as pessoas escravizadas. Subverte estereótipos racistas, como o da mammy, explorando, inclusive, novas formas de representação de mulheres negras não só nesse, como em seus outros romances.

  
  
Em 2017, a editora Morro Branco começou a publicar
obras da autora no Brasil. Imagens: Reprodução

Octavia declarou em entrevistas que o que pretendia com Kindred era mostrar várias possibilidades de coragem; o romance é, também, uma espécie de reação à vergonha que algumas pessoas negras tinham de seus antepassados escravizados que, em tese, teriam se deixado escravizar e por isso seriam culpados pela situação atual de seus descendentes. Ela gostaria, então, de “pegar uma pessoa dos dias de hoje e mandá-la de volta à época da escravidão”, e assim o fez.

Sua tradução tardia para o português está sendo compensada pelo rápido lançamento de seus outros romances pela Morro Branco. Depois de Kindred, a editora traduziu a duologia Semente da terra, composta pelos romances Parábola do semeador (2018) e Parábola dos talentos (2019), e a premiada coletânea de contos Filhos de sangue e outras histórias (2020). Está traduzindo a trilogia Xenogênese, composta de Despertar (2018), Ritos de passagem (2019) e Imago – ainda sem tradução para o português.

Passeando por futuros distópicos que mais se parecem com o presente, tramas espaciais, viagem no tempo para um passado escravista, Butler abordou em seus romances todas as formas de escravidão, mas, não somente. Se, em Kindred – Laços de sangue, Dana opera como um vetor de observação e questionamento de um sistema que não só desumanizou gerações de seres humanos, como também condenou o corpo negro ao racismo do presente, em outros romances, a escravidão é um tema tangente.

Na trilogia Xenogênese, por exemplo, embora os humanos sejam cativos dos Oankali, que manipulam seus corpos tanto para curar doenças, como o câncer, como para controlar suas fertilidades, Octavia levanta, principalmente, questionamentos sobre o que nos faz humanos, ao explorar a rejeição dos homens e mulheres resgatados em realizar uma permuta genética com os alienígenas.

Para os Oankali, o que levou a humanidade à destruição foi a perigosa combinação entre inteligência e hierarquia; logo, eliminar essa tendência faria com que o repovoamento da Terra não acabasse em nova destruição. Além disso, a existência de uma raça alienígena que possui três gêneros: masculino, feminino e ooloi – nem macho nem fêmea – e o fato de eles apenas se reproduzirem em trios, subverte a ideia tradicional de família e da binaridade de gênero, algo inovador nos anos 1980, quando o romance foi escrito.

Já na duologia Semente da terra, a escravidão e o pouco agenciamento dos corpos aparecem principalmente como uma consequência do colapso social, econômico e ambiental de uma sociedade distópica nos anos de 2020. Como uma pitonisa, Butler criou um futuro e uma sociedade tão intolerante, que a eleição de um presidente ultraconservador que deseja make America great again/ tornar a América grande novamente – curiosamente o mesmo slogan de campanha do presidente norte-americano atual – é apenas um dos obstáculos para a sobrevivência daqueles que estão fora das esferas de poder.

A semelhança entre o ano de 2020 ficcional e o real é, ao mesmo tempo, impressionante e aterradora e mostra a capacidade da autora de, realmente, explorar as possibilidades da existência, sejam elas boas ou não. Outro ponto de destaque na obra é a religião filosófica-literária de Lauren – criadora e criatura – A Semente da Terra, cujas lições escritas em versos pregam como verdade a mudança: “A única verdade que persiste/ É a mudança/ Deus é mudança”.

“Todas as lutas são, essencialmente, lutas sobre poder.” Foi partindo dessa premissa e ocupando os espaços que lhe seriam negados que Octavia Butler escreveu mais de uma dúzia de livros e deixou um legado que inspirou gerações de leitores e escritores, principalmente não brancos, que se viram representados em suas histórias. A atual revisitação à sua obra, seja pelas traduções recentes no Brasil, pelas reedições de seus romances nos Estados Unidos ou pela adaptação televisiva do romance Despertar – cuja direção ficará a cargo da premiada diretora Ava DuVernay – dizem bastante sobre a atualidade dos temas trabalhados e das discussões, tão incômodas quanto necessárias, levantadas em sua literatura.

No fim, além dos mundos fantásticos e narrativas potentes, Octavia acabou criando, também, a si mesma.

CAMILE BORBA, graduada em Tradução pela Universidade Federal de Pernambuco e mestranda em Teoria Literária pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, também pela UFPE.

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