Octavia era praticamente desconhecida do público brasileiro. Apenas em 2017 a editora Morro Branco traduziu pela primeira vez a autora no país e a escolha recaiu sobre o quarto romance de Butler, publicado em 1976, justamente Kindred. O romance traz a história de Dana, uma escritora negra, que viaja forçadamente no tempo para o sul escravista no século XIX, observando com olhos contemporâneos a escravidão. Ao colocar uma mulher contemporânea para sentir na pele a escravidão, ela desmistifica equívocos do imaginário sobre as pessoas escravizadas. Subverte estereótipos racistas, como o da mammy, explorando, inclusive, novas formas de representação de mulheres negras não só nesse, como em seus outros romances.
Em 2017, a editora Morro Branco começou a publicar
obras da autora no Brasil. Imagens: Reprodução
Octavia declarou em entrevistas que o que pretendia com Kindred era mostrar várias possibilidades de coragem; o romance é, também, uma espécie de reação à vergonha que algumas pessoas negras tinham de seus antepassados escravizados que, em tese, teriam se deixado escravizar e por isso seriam culpados pela situação atual de seus descendentes. Ela gostaria, então, de “pegar uma pessoa dos dias de hoje e mandá-la de volta à época da escravidão”, e assim o fez.
Sua tradução tardia para o português está sendo compensada pelo rápido lançamento de seus outros romances pela Morro Branco. Depois de Kindred, a editora traduziu a duologia Semente da terra, composta pelos romances Parábola do semeador (2018) e Parábola dos talentos (2019), e a premiada coletânea de contos Filhos de sangue e outras histórias (2020). Está traduzindo a trilogia Xenogênese, composta de Despertar (2018), Ritos de passagem (2019) e Imago – ainda sem tradução para o português.
Passeando por futuros distópicos que mais se parecem com o presente, tramas espaciais, viagem no tempo para um passado escravista, Butler abordou em seus romances todas as formas de escravidão, mas, não somente. Se, em Kindred – Laços de sangue, Dana opera como um vetor de observação e questionamento de um sistema que não só desumanizou gerações de seres humanos, como também condenou o corpo negro ao racismo do presente, em outros romances, a escravidão é um tema tangente.
Na trilogia Xenogênese, por exemplo, embora os humanos sejam cativos dos Oankali, que manipulam seus corpos tanto para curar doenças, como o câncer, como para controlar suas fertilidades, Octavia levanta, principalmente, questionamentos sobre o que nos faz humanos, ao explorar a rejeição dos homens e mulheres resgatados em realizar uma permuta genética com os alienígenas.
Para os Oankali, o que levou a humanidade à destruição foi a perigosa combinação entre inteligência e hierarquia; logo, eliminar essa tendência faria com que o repovoamento da Terra não acabasse em nova destruição. Além disso, a existência de uma raça alienígena que possui três gêneros: masculino, feminino e ooloi – nem macho nem fêmea – e o fato de eles apenas se reproduzirem em trios, subverte a ideia tradicional de família e da binaridade de gênero, algo inovador nos anos 1980, quando o romance foi escrito.
Já na duologia Semente da terra, a escravidão e o pouco agenciamento dos corpos aparecem principalmente como uma consequência do colapso social, econômico e ambiental de uma sociedade distópica nos anos de 2020. Como uma pitonisa, Butler criou um futuro e uma sociedade tão intolerante, que a eleição de um presidente ultraconservador que deseja make America great again/ tornar a América grande novamente – curiosamente o mesmo slogan de campanha do presidente norte-americano atual – é apenas um dos obstáculos para a sobrevivência daqueles que estão fora das esferas de poder.
A semelhança entre o ano de 2020 ficcional e o real é, ao mesmo tempo, impressionante e aterradora e mostra a capacidade da autora de, realmente, explorar as possibilidades da existência, sejam elas boas ou não. Outro ponto de destaque na obra é a religião filosófica-literária de Lauren – criadora e criatura – A Semente da Terra, cujas lições escritas em versos pregam como verdade a mudança: “A única verdade que persiste/ É a mudança/ Deus é mudança”.
“Todas as lutas são, essencialmente, lutas sobre poder.” Foi partindo dessa premissa e ocupando os espaços que lhe seriam negados que Octavia Butler escreveu mais de uma dúzia de livros e deixou um legado que inspirou gerações de leitores e escritores, principalmente não brancos, que se viram representados em suas histórias. A atual revisitação à sua obra, seja pelas traduções recentes no Brasil, pelas reedições de seus romances nos Estados Unidos ou pela adaptação televisiva do romance Despertar – cuja direção ficará a cargo da premiada diretora Ava DuVernay – dizem bastante sobre a atualidade dos temas trabalhados e das discussões, tão incômodas quanto necessárias, levantadas em sua literatura.
No fim, além dos mundos fantásticos e narrativas potentes, Octavia acabou criando, também, a si mesma.
CAMILE BORBA, graduada em Tradução pela Universidade Federal de Pernambuco e mestranda em Teoria Literária pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, também pela UFPE.