Portfólio

Jaime Lauriano

O Brasil como problema

TEXTO Pollyana Quintella

02 de Outubro de 2020

'Invasão', lápis dermatográfico sobre algodão vermelho, 160 x 310 cm, 2007

'Invasão', lápis dermatográfico sobre algodão vermelho, 160 x 310 cm, 2007

Imagem Felipe Bernot/Divulgação

[conteúdo na íntegra | ed. 238 | outubro de 2020]

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Em 1982, o artista pernambucano Daniel Santiago pendurou-se de cabeça para baixo em uma galeria de arte. Uma corda amarrava seus tornozelos, enquanto suas mãos seguravam um cartaz com a frase O Brasil é o meu abismo, retirada de um poema de Jomard Muniz de Britto. A ditadura militar ainda não tinha acabado no país e já haviam se passado 18 anos desde a implementação do golpe de 1964. Pendurado, o corpo do artista rodopiava para cá e para lá, exigindo que o público o circundasse para conseguir ler a mensagem. Sua postura invertida também fazia alusão aos procedimentos de tortura adotados naquele período. 

Há pouco tempo, em uma conversa com o artista Jaime Lauriano, nos referimos à frase de Britto e Santiago para pensar sobre o Brasil de hoje. Não coincidentemente, Jaime, que atualmente mora em Portugal, me contava a respeito da exposição individual que estava preparando com o curador Hélio Menezes para o Centro Cultural São Paulo (CCSP), por ora suspensa em decorrência da pandemia do novo coronavírus. Com o título Aqui é o fim do mundo, a mostra reuniria um grande conjunto de obras do artista, e também refletiria certo sentimento incômodo em relação ao país. Nesse caso, a frase-título fazia referência a outro poeta: Torquato Neto. Na sua Marginália II, celebremente musicada e gravada por Gilberto Gil, Torquato parecia antecipar, ainda em 1967, aquilo que se adensaria com a implementação do AI-5 no final do ano seguinte. “Aqui é o fim do mundo. Aqui é o fim do mundo. Aqui é o fim do mundo”, entoava o refrão desesperado.

1967. 1982. 2020. Três momentos distintos que carregam consigo uma mesma disputa em jogo. O país e suas narrativas, ou melhor, o Brasil como problema, algo sobre o qual o trabalho de Jaime Lauriano está debruçado. Questionamos, com ele, como determinados regimes de poder se constituem através de recursos narrativos, simbólicos e visuais. 


Americae nova tabula: invenção, epistemicídio, contrato racial e genocídio, desenho feito com pemba preta (giz utilizado em rituais de Umbanda) e lápis dermatográfico sobre algodão branco, 150 x 200 cm, 2019. 
Foto: Felipe Bernot/Divulgação

ALEGRIA DE SER BRASILEIRO
“Ô Brasil, gente pra frente, construindo essa nação...”, “Vamos todos cantar, a uma só voz, o Brasil é feito por nós”, “Oh, meu Brasil, eu gosto de você…”. São muitos os jingles do regime militar, empenhados em difundir uma visualidade própria com a exaltação do nacionalismo e de símbolos patrióticos. Debruçado sobre esse material histórico, Lauriano produziu o vídeo O Brasil, de 2014, no qual reuniu um conjunto de matérias de jornais e propagandas oficiais de TV, datados do período entre 1964 e 1968, dando a ver a ideologia militar e suas estratégias discursivas. Ao editar o conteúdo em conjunto, o artista chama a atenção para os artifícios um tanto repetitivos, presentes narrativas responsáveis por construir a identidade desses grupos, moldar sua representação e o modo como são reconhecidos socialmente. Noções como Família, Nação, Pátria e União são conclamadas através de uma estética pretensiosamente ingênua, com aspirações educativas e um sentimentalismo que busca comover o espectador.

Do mesmo ano, o vídeo Morte súbita desdobra o problema projetando uma série de jogadores de futebol com o rosto coberto com a camisa da Seleção Brasileira, entre o sufocamento, o anonimato e a servidão. O áudio, ao fundo, é uma mistura de ruídos dos estádios de futebol – o alvoroço usual das torcidas – e sons de passeatas e protestos de rua, com confrontos, tiros e gritaria. Junto a isso, um narrador esportivo enuncia uma lista de nomes dos desaparecidos políticos no ano de 1970. Naquele ano, a Seleção Brasileira tornara-se tricampeã mundial, algo exaustivamente utilizado como estratégia de propaganda do regime. É a ocasião em que se cria o hino Pra frente Brasil, que entoava nas rádios a imagem de um país sem divergências: “Parece que todo o Brasil deu a mão!”.

Trata-se da utilização do futebol como ferramenta de apaziguamento das massas e manutenção do estado de exceção. Naquela altura, generais apostavam nos resultados dos jogos e apareciam na imprensa como torcedores comuns, empáticos. No dia seguinte ao torneio final, o jornal O Globo informava: “Médici acertou o placar”. Com o milésimo gol, Pelé foi recebido pelo militar em Brasília. A indissociação entre futebol, nacionalismo e poder, no entanto, ocultava os feitos do ano mais violento da ditadura brasileira, com um enorme número de desaparecidos políticos. Em seu vídeo, Jaime sobrepõe tais camadas de sentido, dando a complexidade por trás desse projeto estético e ideológico.

Quatro anos depois, em 2018, o artista faria a obra A taça do mundo é nossa, ao produzir uma réplica da taça Jules Rimet fundida em latão e cartuchos de munições coletadas em áreas de conflito armado no Brasil, possivelmente utilizadas por forças militares. Na base do troféu, o artista gravou os nomes dos quatro países sul-americanos submetidos a ditaduras naquele período – Argentina, Brasil, Chile e Uruguai.

Com o tricampeonato, em 1970, o Brasil conquistou a posse definitiva do famigerado troféu de ouro, que passou a ser exibido na sede da Confederação Brasileira de Futebol – CBF. O que não se esperava é que ele fosse roubado em 1983, ocasião em que foi derretido, reduzindo o símbolo da vitória nacional a mero valor de troca. Ao produzir intervenções no ícone original, Lauriano dá a ver, mais uma vez, os entrelaçamentos entre poder, entretenimento e desigualdade social. Diante do trabalho, cabe-nos refletir de que é feito o êxito, e o que ele oculta. Curiosamente, a taça hoje exposta na CBF também é uma réplica.





Frames do vídeo O Brasil (18’56”), de 2014. Imagens: Reprodução

Ó PÁTRIA AMADA
Também na série Bandeira nacional, de 2015, pequenas bandeiras de tecido são confeccionadas a partir de diferentes procedimentos de tecelagem artesanal. Em cada uma delas, o fazer rústico e manual transforma o símbolo oficial, ao produzir versões singulares e imperfeitas. Jaime parece ironizar a expectativa de um comportamento cívico ideal, reafirmando a identidade como um exercício errante, em constante transformação. Além disso, demarca o uso subjetivo que fazemos das imagens simbólicas, cujo sentido se desloca a depender de sua circunstância.

Os poderes oficiais, no entanto, tendem a investir em modos de controlar esses usos, temendo a sua profanação. Em 1971, o general Médici instituiu a lei que determinava usos e aplicações da bandeira, como a sua presença obrigatória na divulgação de atividades esportivas e culturais financiadas com recurso público. Atualmente, com a acentuada  polarização política no país, o governo Bolsonaro também faz uso reiterado do ícone nacional. Trata-se de uma estratégia parecida com a de Médici, e de um procedimento bastante comum entre regimes populistas, ao buscar sugerir que o que está em jogo é uma causa patriótica maior, acima das disputas entre partidos. Quando a bandeira é tomada como símbolo da luta política, os opositores são vistos como inimigos do país. Não à toa o lema do atual governo é “Brasil acima de tudo”, espécie de remake de “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Quem ousa criticar a nação?

Mas as bandeiras de Jaime, produzidas nas cinco regiões do país, requisitam um Brasil múltiplo e diverso. Junto a elas, acompanhamos, nos últimos anos, o surgimento de uma série de obras que também procuram desconstruir o emblema, ao atribuir-lhe outros significados. Podemos citar nomes como Marcos Chaves, Ernesto Neto, Regina de Paula, André Parente, Gustavo Speridião, Renata Lucas, entre outros. Com eles, notamos que desconfiar do patriotismo não é virar-se de costas para o país, mas, ao contrário, assumir a complexidade de sua história. Além disso, o que também se coloca é a reivindicação pelo direito à bandeira, algo que nos parece negado na medida em que não nos identificarmos com os grupos que dela fazem um uso oficial.


Bandeira nacional #8, algodão, poliéster e impressão jato de tinta sobre papel-algodão, 90 x 90 x 4 cm, 2016. Foto: Felipe Bernot/Divulgação

CONDIÇÃO ESCRAVOCRATA
Indo além dos emblemas, Lauriano também investiga um pilar fundamental da barbárie brasileira: a condição escravocrata. Em Invasão, de 2017, o mapa do Brasil, ao modo das cartografias históricas, expõe uma série de ícones que representam brutalidades exercidas sobre o território nacional. Ao fazer coexistir o tanque de guerra, a nau portuguesa e o caveirão da polícia militar, o artista busca similaridades que persistem e atravessam diferentes momentos históricos do país, entre a colonização, a ditadura militar e o momento presente. O mesmo acontece com as palavras Invasão, Desocupação e Reintegração. Ao vê-las juntas sobre o algodão vermelho, compreendemos a ligação entre o extermínio histórico dos povos originários e as mais recentes desapropriações de famílias de seu território, fruto de processos de gentrificação, remoções criminosas e reformas urbanas malplanejadas. A menção à Transamazônica, junto ao desenho de uma hidrelétrica, também chama a atenção aos custos do progresso e da produtividade enquanto exploração inconsequente da terra.

É a capacidade de ir e vir nesse trânsito histórico que nos permite afirmar, informados pelo trabalho do artista, que o pensamento colonial segue pautando o modo como a sociedade brasileira está organizada. Ao remexer no passado, Lauriano nos ajuda a melhor compreender o presente a fim de transformar as velhas formas do viver, como quer Gilberto Gil. Diante das repetições estruturais travestidas de diferença,  indagamo-nos uma vez mais: a quem pertence a terra? Quão variáveis são os dispositivos da necropolítica? Nosso céu tem mais estrelas? Nossos bosques têm mais vida?

Ciente de que o homem é um animal simbólico, o artista transmuta e desloca os signos de seu território original, revelando-nos as estratégias discursivas neles depositadas. Não são apenas ícones e emblemas, mas também materiais de contorno simbólico, como no caso de Colonização, de 2016. O pilão, tão presente na cozinha africana e no cotidiano popular brasileiro, é preenchido com pedras portuguesas embebidas de azeite de dendê, materiais e objetos carregados de identidade. Juntos, formam um encontro entre o Brasil, Portugal e a África, aqui prestes a serem moídos e miscigenados.

Podemos ler o trabalho como um comentário crítico à democracia racial de Gilberto Freyre, que colaborou para que o debate sobre raça fosse abordado com pouca complexidade no Brasil, anulando violências estruturais e reforçando um projeto de branqueamento cultural. Difícil não lembrar a expressão “Máquinas de moer gente”, cunhada por Darcy Ribeiro para caracterizar os engenhos de açúcar no Nordeste colonial. O pilão de Jaime mói gente, cultura e tradição, é caldeirão sociossimbólico. O notável nesse trabalho é a ênfase nas camadas de sentido que já estão presentes na própria história dos materiais. Seu gesto é simples e cirúrgico, e questiona as bases contraditórias da história do país.


Morte súbita, vídeo projeção em loop, 2014. Imagem: Reprodução

Escravidão, ditadura, necropolítica e opressão simbólica. São muitas as performances da violência brasileira, sobretudo as presentes em pactos sociais cotidianos. Mas o Brasil-fim-do-mundo de Jaime, ao contrário de configurar uma constatação melancólica, apresenta-se como enlutamento daquilo que deve ser finalmente enterrado, progresso às avessas. Para os grupos marginalizados no país, a catástrofe sempre foi condição, e é na borda do real que a resistência se faz durante séculos. Com eles, e com a obra de Jaime, aprendemos que imagens contam histórias, e é preciso disputá-las. O Brasil é o nosso abismo e, com ele, vamos do fim pra frente.

POLLYANA QUINTELLA, curadora e pesquisadora independente. Formada em História da Arte pela UFRJ, é mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ. Colabora com pesquisa e assistência de curadoria para o Museu de Arte do Rio (MAR).

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