ILUSTRAÇÃO HALLINA BELTRÃO
02 de Outubro de 2020
Ilustração Hallina Beltrão
[conteúdo na íntegra | ed. 238 | setembro de 2020]
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“O poeta é aquela criança que, de castigo no canto da sala, com as costas viradas para seus colegas, imagina estar no paraíso”, escreve Charles Simic em um ensaio de 1997 sobre a “voz do poeta”. A imagem é datada, mas o caráter de sua antiguidade é complexo e cheio de lições acerca da história e da passagem do tempo: em primeiro lugar, o castigo já em desuso de deixar a criança desobediente no canto da sala, olhando a parede; em segundo lugar, a própria ideia da “sala de aula” e das crianças reunidas, algo já surpreendente na perspectiva atual da pandemia e do isolamento.
Os mais pessimistas poderiam dizer que a ideia de uma criança encontrando o paraíso em sua própria imaginação é, hoje, uma quimera. A televisão, o celular, os estímulos, a urgência da gratificação, as redes sociais e assim por diante. Nada disso estava no horizonte argumentativo de Simic. Seu interesse está em valorizar a imagem do artista isolado, compenetrado no paraíso que sua própria imaginação pode criar. Isso não se dá sem esforço, afinal a criança está “de castigo no canto da sala”, distante dos outros, “com as costas viradas para seus colegas”. Simic não está distante da célebre frase de Baudelaire em seus diários, Le vrai héros s’amuse tout seul, o verdadeiro herói se diverte sozinho (embora o poeta seja ambíguo a respeito desse isolamento, se forçado ou voluntário, e aí está a receita para a sobrevivência de uma ideia).
Com tantos de nós isolados por conta da pandemia, talvez seja terapêutico relembrar que a literatura dos espaços fechados tem uma longa tradição. Próximos de nós, podemos pensar em livros como o Diário do hospício, de Lima Barreto (sobre sua passagem pelo Hospital Nacional dos Alienados, em 1919), as Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos (publicadas postumamente, em 1953), ou Hospício é Deus: Diário I (romance autobiográfico, escrito em 1959 e publicado em 1965), de Maura Lopes Cançado. “Estou entre mais de uma centena de homens, entre os quais passo como um ser estranho”, escreve Lima Barreto em seu Diário, e continua: “Eu passo e perpasso por eles como um ser vivente entre sombras – mas que sombras, que espíritos?!”.
Desde que o mundo é mundo, as pessoas se isolam e por vezes são forçadas a se encontrar com a própria imaginação, dia após dia, por resistência, teimosia ou simples desespero. O exemplo paradigmático é o Diário do ano da peste, de Daniel Defoe, não por acaso autor de Robinson Crusoé, o isolado mais famoso da literatura (que passa 28 anos em uma ilha deserta). O Diário é de 1722, mas retrata os efeitos da peste bubônica em Londres no ano de 1665, quando Defoe tinha apenas cinco anos de idade.
Podemos ainda pensar em Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre, livro amado por Machado de Assis e publicado em 1794: em prisão domiciliar por 42 dias, em Turim, por causa de um duelo proibido, Xavier de Maistre se vê confinado entre quatro paredes, tendo como única companhia sua cadela Rosine e um empregado. Decide escrever sua jornada em zigue-zague da cama para a porta, da porta para a poltrona, imaginando seu próprio paraíso. Outro conhecido aprisionado do século XVIII teve um impacto decisivo na literatura: Giacomo Casanova, preso em Veneza em 1756, autor da célebre e escandalosa História da minha vida.
Ilustração: Hallina Beltrão
Em 1830, na pequena cidade de Amherst, nasce a poeta Emily Dickinson, que vai transformar radicalmente a literatura dos espaços fechados. Dickinson escreveu mais de 1.800 poemas, mas apenas 10 deles foram publicados durante sua vida, vários deles editados para atender às regras da época. Ela passou seus 55 anos de vida morando na casa da família, sem se casar, e cada vez mais reclusa com o passar do tempo. Vivia em seu quarto, recebia visitas a contragosto, mas se comunicava imaginativamente com o mundo, com seus versos e com as centenas de cartas que enviou (inventivas, cheia de adjetivos inusuais e com uma pontuação peculiar, com travessões substituindo as vírgulas). A Guerra Civil ocupava a vizinhança e Dickinson imaginava seu paraíso poético, tomando embalagens de chocolate, pedaços de jornal e envelopes usados para a transcrição de seus poemas. Ela colocava seus poemas também nas cartas que enviava, por vezes completando o arranjo com uma flor seca (ela era famosa na região por seu herbário), um selo de três centavos e até um grilo morto. De 1858 a 1864, em seu quarto, Dickinson criou seus “fascículos”, poemas costurados à mão com linha vermelha e branca (que serão encontrados pela irmã Lavinia só depois de sua morte).
O TEMPO
O isolamento torna o tempo elástico e, ao mesmo tempo, repetitivo, comum. Os dias parecem todos iguais e, de alguma forma, dão a impressão de durar mais. Diante desse tempo elástico, alguém que se interesse por Emily Dickinson, por exemplo, pode visitar seus Arquivos Digitais (Emily Dickinson Archive) – mantidos pela universidade Harvard, mas que reúnem imagens de manuscritos e cartas de Dickinson espalhados por outras sete instituições de pesquisa dos Estados Unidos. Trata-se de um passeio virtualmente infinito pela caixa de recordações de uma das maiores vozes poéticas da tradição literária de todos os tempos. Você pode pular de carta em carta, de poema em poema, seguindo a ordem cronológica, acompanhando a vagarosa transformação da caligrafia da poeta (cada vez mais difícil de ler com o passar dos anos…). Ou você pode pular de acervo em acervo, ao sabor do acaso, encontrando às vezes – no meio de uma série de digitalizações da escrita – uma flor prensada, um pequeno recorte colado no cabeçalho (a imagem da lua, a cara de um presidente).
Com esse passeio pelos Arquivos, o isolamento do leitor fica sobreposto ao isolamento de Emily Dickinson, ainda que estejam separados por décadas, cada um em seu quarto. “Nós nascemos dentro do tempo ou é o tempo que nasce dentro de nós?”, pergunta Alan Burdick em seu livro Por que o tempo voa: uma investigação sobretudo científica, recentemente lançado no Brasil pela Todavia. “A resposta”, continua ele, “depende do que se entende por tempo, é claro, mas também de qual é o significado de ‘nós’ e quando esse nós tem início”. Quanto mais tempo passa isolado, você começa a perceber coisas que até então não havia observado – o crescimento do cabelo, a trajetória das formigas, a quantidade de piscadas do olho em um dia. Ou seja, esse “nós” de que fala Burdick começa a aumentar – o coletivo se torna uma categoria mais ampla (basta pensar em toda a ideia de que “a natureza está se recuperando”, que ocupou as redes sociais nos últimos tempos).
Burdick, por exemplo, amplia esse “nós” em direção às “cianobactérias”, que não são bactérias comuns “mas estão em toda parte”, constituindo “uma fração considerável da biomassa da Terra”, “fundamento da cadeia alimentar”. E não é só isso: as cianobactérias “estão entre as formas mais antigas de vida em nosso planeta de 4,5 bilhões de anos de idade”, tendo surgido “há pelo menos 2,8 bilhões de anos, talvez há 3,8 bilhões de anos, antes de a atmosfera terrestre conter oxigênio”. Não há espaço mais restrito que o da célula, da bactéria – e, ainda assim, estão por tudo tornando a vida possível. E não é só a noção do “nós” que se amplia nessa perspectiva, é também a própria noção do “tempo”. Que diferença faz o percurso limitado de uma vida humana diante da velhice do mundo e de suas cianobactérias?
O indivíduo isolado se esforça para relativizar a duração da própria vida e a validade dos próprios sofrimentos, mas só consegue sustentar a relativização até certo ponto. Somos invariavelmente arrastados de volta ao nosso corpo, às nossas sensações e sentidos. Como no caso da criança-poeta de Charles Simic, a imaginação do paraíso é sempre confrontada com a triste realidade do castigo no canto da sala.
De resto, estamos sempre operando a partir dessa “casa-prisão da linguagem”, como escreve Fredric Jameson em 1972 a partir de uma citação (maltraduzida) de Nietzsche. Ou como resume Roland Barthes pouco depois, em 7 de janeiro de 1977, em sua primeira fala no Collège de France, naquela que ficou conhecida como a Aula, quando diz que “a língua como performance de toda a linguagem não é nem reacionária nem progressista”, a língua é pura e simplesmente fascista, “porque o fascismo não consiste em impedir de dizer, mas em obrigar a dizer”. Somos “obrigados a dizer”, mesmo quando em silêncio, forçados a montar a estrutura do pensamento com palavras mesmo contra a vontade (discussões imaginárias, respostas que não nos ocorreram na hora devida, planos, projetos, arrependimentos).
O ESPAÇO
“Todo o estado de alma é uma paisagem”, escreve Fernando Pessoa em seu Cancioneiro. O isolamento dá uma nova dimensão a essa ideia, sugerindo que o humor característico de cada dia tem sua paisagem correspondente, em uma curiosa simbiose entre sensação e imaginação. Muitos anos antes da pandemia, em 2008, o artista visual Jon Rafman inaugurou um dispositivo de contemplação que mescla perfeitamente a mobilidade da imaginação com a imobilidade do corpo. O projeto de Rafman se intitula Nine eyes, em referência aos “nove olhos” que compõem as câmeras que o Google colocou sobre carros para fotografar toda a superfície do globo (salvo engano, hoje já são 15 olhos). O mesmo leitor que fatigou suas retinas nos Arquivos de Emily Dickinson pode agora expandir seus horizontes e percorrer as ruas de inúmeras cidades da Terra.
O Google Street View anunciou, em 2017, que já havia percorrido (e registrado em imagem) mais de 16 milhões de quilômetros do planeta. Em seu projeto, Rafman não tirou nenhuma das fotos, foram todas tiradas pelo Google. O que ele fez foi vasculhar incansavelmente (o que continua fazendo, já que seu projeto-arquivo está em constante atualização) as ruas do mundo, espécie de caminhante solitário diante da tela, usando o Google como janela para o planeta. Como toda ideia brilhante, o procedimento de Rafman impressiona pela simplicidade – abrir o Google Street View e capturar as cenas mais pitorescas (um ônibus queimado, um homem defecando na beira da estrada, uma criança plantando bananeira, uma tempestade de areia se aproximando, um balão, um casal deitado no asfalto, seis manequins em um jardim, quatro frades franciscanos caminhando na calçada, pinguins, cachorros, cavalos, macacos, cerejeiras em flor). Acompanhando a montagem de Rafman, temos a impressão de que também o espaço é elástico e de que a prótese do olhar proporcionada pelo Google substitui e aprimora a presença. É o que a ficção científica vem apresentando há anos, até o olhar da máquina substituir o olhar humano.
A quarentena, com seu radical cerceamento das liberdades, acrescentou uma surpreendente camada de sentido ao projeto de Rafman. Em entrevista, ele diz que tenta acompanhar em tempo real, pelo site, a movimentação dos carros do Google – dessa forma tem acesso às imagens “carregadas naquele momento”, com “menos chances de algo ter sido removido”. “Há também essa empolgação de ter sido o primeiro a olhar para essa imagem, já que não há um operador, é apenas um robô”, diz Rafman, e continua: “É empolgante saber que você pode ser a primeira pessoa a contemplar uma cena que aconteceu no passado. É quase como olhar para uma memória que ninguém realmente tinha. As fotografias estão tão conectadas à memória humana, mas são fotografias das memórias de ninguém”. Se toda fotografia tirada por um ser humano está ligada à memória humana (e à memória de um grupo, uma comunidade, um mínimo “nós” que seja), a fotografia tirada pelo robô circula sem necessidade de memória, em um tempo feito de puro presente e um espaço feito de pura expansão.
Com isso em mente, é impressionante encontrar uma citação do último trabalho do filósofo Franco Berardi, Asfixia (lançado no Brasil em 2020 pela Ubu Editora), que diz o seguinte: “As tendências neurototalitárias estão operando de fato na interação entre a cognição humana e os autômatos ligados à rede”, buscando um horizonte no qual “a tecnologia penetra o corpo orgânico e modela sua atividade cognitiva”. Berardi há anos reflete sobre as relações entre a subjetividade e a técnica, buscando sempre uma sorte de deriva poética que possa dar conta dos afetos e da dimensão disruptiva da experiência humana. É por isso que já na sequência da frase ele aponta que “o corpo excreta substâncias não assimiláveis sem cessar: o excesso de vida, de Eros, de inconsciente”, excessos que “estão causando disrupções e falhas estruturais”, pois “a indeterminação é inerente à esfera biossocial, ao passo que a tecnoautomação tem como base o determinismo matemático”. Para cada esforço matemático e robótico de organização do mundo (como os 16 milhões de quilômetros do Google Street View, por exemplo), existe um esforço análogo em direção ao “caos”, ou seja, em direção à diferença, à imaginação e à criatividade (como o de Rafman, por exemplo, cujo procedimento se espalha e pode contagiar a outros, gerando comentário, pensamento, literatura).
Mas até que ponto o contágio da diferença pode funcionar, especialmente quando vivemos sob uma pandemia que restringe violentamente o contato? Em uma seção de seu livro escrita em 2018 – Respiração: caos e poesia –, Berardi fala de “epidemias” e da crise da Aids. Com a falência oficial de Nova York em 1977, muitas empresas e investidores se deslocaram para outras cidades, deixando em seu rastro uma impressionante decadência urbana. “Um prefeito visionário chamado Ed Koch”, escreve Berardi, “abriu a cidade para artistas e para jovens aventureiros” e com “bolsas especiais e aluguéis baixos” facilitou a “renovação urbana”, capitaneada por “músicos, artistas e techies” que “transformaram a cidade em uma espécie de laboratório para futuros possíveis”. (Não é disso que também sofremos no Brasil hoje? Uma pobreza angustiante de futuros possíveis?)
A efervescência da cidade é interrompida pela crise da Aids: ela “colocou a autopercepção em jogo e dissolveu a comunidade do erótico e a amizade igualitária”; como “a epidemia engendrou o medo do contato físico e dissolveu a própria possibilidade de se imaginar a felicidade, as energias sociais migraram do espaço da conspiração (a respiração em conjunto) para o espaço da comunicação incorpórea”. Não é justamente isso que nos assusta hoje, na pandemia, a mera possibilidade de respirar em conjunto? O contato com o corpo do outro passa a ser percebido como um perigo, como algo a ser evitado, “e quando essa noção de perigo criou raízes no inconsciente social”, escreve Berardi, “a linguagem transmigrou da esfera conjuntiva para a conectiva”, instalando a tristeza “na alma social”.
Nosso horizonte é incerto e pouco estimulante. Com a desagregação da comunidade de corpos, a possibilidade de trocas significativas rapidamente se desfaz. Com a precarização generalizada do trabalho, nossa solidariedade social – historicamente precária – é ainda mais enfraquecida (além de pressionada pelas falácias do empreendedorismo, da meritocracia e do culto à competição). Podemos aproveitar nosso castigo no canto da sala para imaginar outra realidade, um paraíso precário que possa transformar o “nós” em uma categoria relevante para o futuro.
KELVIN FALCÃO KLEIN, professor de Literatura Comparada na Unirio, autor de Wilcock, ficção e arquivo (2018).
HALLINA BELTRÃO, designer e ilustradora, mestra em Design Gráfico Editorial pela Elisava (Barcelona).