Artigo

Boaventura e a ideia de outros mundos possíveis

Um pouco do pensamento do sociólogo português, com suas reflexões acerca de um futuro pós-pandemia

TEXTO ERICK MORRIS E JÚLIA BENZAQUEN
FOTOS MARCELO SOARES

02 de Setembro de 2020

Boaventura de Sousa Santos no Armazém do Campo, no centro do Recife, em dezembro de 2019

Boaventura de Sousa Santos no Armazém do Campo, no centro do Recife, em dezembro de 2019

FOTO MARCELO SOARES

[conteúdo na íntegra em nosso App | ed. 237 | setembro 2020]

A pandemia global do novo coronavírus tem provocado inúmeras reflexões sobre nossas sociedades e as relações da humanidade com a natureza. Dentre estas, destacamos primeiramente uma que mostra o poder desestabilizador desse vírus, que permitiu antever, mesmo que por pouco tempo, um mundo sem capitalismo. De uma hora para outra passamos a pensar o impensável, que podemos organizar a nossa existência a partir de outras bases, mais sustentáveis. No entanto, como afirmou o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, é mais fácil para as pessoas do século XXI imaginarem o fim do planeta do que o fim do capitalismo, por mais absurdo que isso possa parecer.

Estamos tão imersos nas métricas do consumo e da produção, em tantos níveis da nossa existência coletiva, que nos parece impossível romper com a lógica do sistema, mesmo que esta seja notadamente uma lógica de opressão. Ainda assim, por um instante, o vírus nos permitiu vislumbrar que os modos de vida no capitalismo não são imprescindíveis. É possível pensar cidades que não vivam a loucura dos engarrafamentos de automóveis que se deslocam nos mesmos horários para realizarem muitos trabalhos. É possível reduzir o consumo. É possível uma economia menos dependente do petróleo. É possível pensar a vida acima do lucro. Nada disso é autoevidente no nosso cotidiano frenético, mas o choque da quarentena, ou o distanciamento social, permitiu se sentir mais profundamente a necessidade de construção de relações mais fraternas e horizontais.

O fato de podermos ver essas fissuras no sistema não garante a sua transformação e/ou superação. Às vezes parece ser ao contrário, quando se percebem os efeitos desiguais causados pelo vírus num país tão marcado por desigualdades raciais, sociais e de gênero. O próprio Boaventura nos alerta para os riscos de uma intensificação de uma sociedade do controle, do avanço dos governos autoritários e da erosão dos espaços de participação social e de representação democrática. Nesse sentido, o Brasil, onde o vírus já matou mais de 100 mil pessoas, é um exemplo gritante do que significa essa disputa por como será o mundo pós-pandemia ou a nova normalidade. Pensamos que Boaventura nos ajuda a formular questões fortes sobre essa nova conjuntura e, por sua inserção no campo acadêmico progressista e junto aos movimentos sociais, a construir respostas igualmente fortes para esses enormes desafios. O que podemos e estamos dispostos a desaprender?

INTELECTUAL DE RETAGUARDA
Boaventura foi o primeiro filho de um trabalhador no prestigiado curso de Direito da Universidade de Coimbra, em um Portugal salazarista. Fez seu doutorado nos Estados Unidos, em Yale, onde decidiu trabalhar com Sociologia. Optou por fazer trabalho de campo no Brasil, pois, nessa altura, assumiu uma identidade marxista e queria colocar em prática as teorias críticas socialistas. Foi no Brasil, mais especificamente na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro dos anos 1970, que a ideia de justiça cognitiva surgiu como essencial para a ideia de justiça social. Os saberes dos moradores de Jacarezinho foram fulcrais para Boaventura perceber a diversidade de saberes que eram/são sistematicamente ocultados, marginalizados, invisibilizados. Conhecimentos que eram/são úteis não só pras/os moradoras/es de Jacarezinho, mas também para o pesquisador Boaventura, para ciência, para o mundo.

Na obra científica do autor, encontramos uma coerência ímpar. Boaventura de Sousa Santos é um intelectual de retaguarda, é um intelectual que vai conhecer a riqueza do mundo, que aprende junto com os movimentos sociais, ao invés de apontar os caminhos iluminados, e que nos presenteia traduzindo e potencializando tudo isso em seus textos e intervenções. O professor fala da realidade mundial com propriedade, isso porque conhece essa realidade, foi lá, conversou com humildade com ativistas dessas localidades. O livro As vozes do mundo, do projeto Reinventar a emancipação social, que passou por sete países distintos (África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, China, Moçambique e Portugal), é apenas um exemplo dentre outros também relevantes.

Para explicar a trajetória das suas produções acadêmicas, o próprio Boaventura afirma que sua obra está em um espiral (para evitar metáforas que se aproximem do progresso) de, pelo menos, três fases: a primeira, a do texto Um discurso sobre as ciências, é uma luta pelo pluralismo interno da ciência. A segunda fase é o pluralismo externo, a ciência e os outros conhecimentos. E ele considera que agora está na terceira fase, na qual “esses conhecimentos têm de ser postos numa interação criativa, que são as ecologias dos saberes e as artesanias das práticas, e isso só pode ocorrer em contextos de luta social” (Martins, Bruno Sena. Socialismo, democracia e epistemologias do Sul. Entrevista com Boaventura de Sousa Santos. Revista Crítica de Ciências Sociais, número especial, novembro 2018: 9‑54). 

RELAÇÃO COM AS LUTAS
Boaventura nos ensina e pratica que é insuportável a acomodação na nossa sociedade e é impensável a desistência de construção de “outros mundos possíveis”. Dessa forma, essa – que é uma bandeira do Movimento Zapatista mexicano e o lema do Fórum Social Mundial – se torna presente na obra e atuação do professor. Outros mundos são possíveis através de procedimentos para ampliar o presente, o que ele chama de sociologia das ausências, que visibiliza o que existe; e contração do futuro, a sociologia das emergências, que fortalece as experiências que vivenciam, cuidam e potencializam o futuro desejado no hoje.

Boaventura dá visibilidade às soluções no domínio da democracia, dos direitos humanos, das economias, das concepções de dignidade, concepções de saúde, epistemológicas. Todas elas, de uma forma ou de outra, possuem em seus princípios a ideia de ecologia dos saberes, outro conceito importante do autor. A ecologia dos saberes coloca em diálogo diferentes conhecimentos, a partir de um contexto concreto e com a finalidade de resolver problemas específicos. 

Assim, Santos visibiliza e potencializa experiências tão diversas quanto a educação popular, a economia solidária, a agroecologia. São experiências que possuem a incrível capacidade de combinar o que a ciência positivista hegemônica considera como antípodas (a ancestralidade com a inovação, o local com o universal, a teoria e a prática, o material com o transcendente, o científico e o popular). Provando-nos que soluções existem e normalmente estão distantes dos centros ou no Sul global, outro conceito vigoroso do pesquisador português que se refere a uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado.

O autor de um texto que tem como título Esquerdas do mundo, uni-vos! é uma pessoa que está nas lutas e demonstra o lado que está. E, nesse processo de resistência, o professor valoriza a racionalidade estético-expressiva, a arte, ou a mística para os movimentos sociais. Para o autor, são os artistas do Sul global que, melhor do que as Ciências Sociais, conseguem caracterizar o nosso tempo e pensar possibilidades criativas de superação. Importa dizer que a facilidade em formular metáforas potentes e profícuas para a leitura do mundo faz com que o professor elabore ciência, poesia e rap.


Na sua visita a Pernambuco, sociólogo esteve com
Robeyoncé Lima (ao fundo) e Jô Cavalcanti,
codeputadas do mandato coletivo Juntas

BOAVENTURA EM PERNAMBUCO
Na trajetória do professor Boaventura, importa sublinhar a sua passagem pelo Recife, no início dos anos 1980, quando produziu um trabalho que analisa os conflitos urbanos da cidade, o caso da comunidade do Skylab. Na sua passagem pela capital pernambucana, trabalhou na Universidade Federal de Pernambuco, na Fundação Joaquim Nabuco e teve contato com as lutas dos movimentos sociais, aproximando-se de Dom Helder Camara. A relação com o ex-arcebispo de Recife e Olinda é frequentemente ressaltada, com muito orgulho, nas suas falas.

Boaventura permaneceu em contato com Pernambuco, seja participando de eventos, colaborando em pesquisas e orientando estudantes do estado que passaram pelo Centro de Estudos Sociais, em Coimbra. Nos cursos universitários, não só em Pernambuco, mas no Brasil e na América Latina, a leitura de seus textos é obrigatória em diversas áreas de estudo: Ciências Sociais, Direito, História, Letras, Biologia etc.

Mesmo com a agenda cheia, Boaventura faz questão de que o seu tempo em um determinado lugar seja dividido entre academia e movimentos sociais. Dessa forma, sua recente passagem por Pernambuco, em dezembro de 2019, foi construída coletivamente por diversos movimentos sociais e instituições de pesquisa. Aqui pôde participar de distintas atividades acadêmicas e, nos dias 9 e 10 de dezembro, esteve no Centro de Formação Paulo Freire, no Assentamento Normandia do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Lá, aconteceu a primeira oficina em Pernambuco da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS).

A UPMS é um projeto criado e impulsionado entusiasticamente por Boaventura. Nasce da articulação de diferentes movimentos sociais e setores militantes da academia, no contexto dos primeiros anos do Fórum Social Mundial. É uma proposta intercultural de superação da dicotomia entre universidades e movimentos sociais e é parte de um movimento mais amplo de construção de educação popular, com uma larga trajetória no continente latino-americano, onde o nome de Paulo Freire é uma referência. Em Pernambuco, ganhou as cores dos movimentos e lutas que a compõem, desde a luta pela terra, a educação popular e a formação agroecológica, redes de mulheres e lutas indígenas e quilombolas, dentre outras.

A partir dos debates realizados e das características distintas dos coletivos, foi elaborada uma carta compromisso e convite à adesão em que, dentre outros pontos, ressaltou-se: “A necessidade de nossa unidade na luta contra o capitalismo, fascismo, patriarcalismo, imperialismo, LGBTIfobia, racismo, e a favor da causa indígena, quilombola e de povos e comunidades tradicionais, camponesa, da luta urbana e das trabalhadoras e trabalhadores do campo e da cidade, com o grande desafio de superar a fragmentação das lutas. Entendemos, assim, que alguns princípios nos conectam: busca por justiça social, democracia, emancipação, bem viver, indignação, necessidade de mudança, e um forte sentimento de ameaça que nos mostra a urgência de resistir em defesa da vida”. (Trecho da carta compromisso da UPMS-Pernambuco, disponível em www.universidadepopular.org).

O simbolismo da passagem de Boaventura em Pernambuco é muito condizente com sua obra, buscando uma articulação das universidades com os movimentos sociais, defesa do legado de Paulo Freire, construção de uma unidade das esquerdas antifascistas, mobilizando diferentes segmentos e grupos num debate e numa prática intensa de democratização da democracia. 

PANDEMIA E PANDEMÔNIOS
Ao caracterizar a pandemia do novo coronavírus, Boaventura afirma que não gosta da analogia dos nossos tempos com o tempo de guerra. Se fosse para pensar em guerra, seria um processo de autodefesa da natureza, pelo tanto que ela está sofrendo com as intervenções humanas. O autor aponta que o desrespeito à natureza e as desigualdades sociais têm sido uma constante e que a pandemia vem apenas agravar uma situação de crise a que a população mundial já estava sujeita. A escandalosa concentração de riqueza/extrema desigualdade social e a destruição da vida do planeta/iminente catástrofe ecológica são os fatores, segundo o autor, que nos levam à catástrofe pandêmica.

Boaventura vem enfatizando a forma pela qual a pandemia do novo coronavírus precisa ser entendida e analisada em conjunto com outros pandemônios da modernidade: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Ele afirma que o vírus não é tão democrático quanto parece. No seu livro, A cruel pedagogia do vírus, lançado em abril de 2020, ele demonstra como o novo coronavírus atinge mais duramente quem já está numa posição vulnerável na sociedade. No capítulo A sul da quarentena, o autor elenca quem são essas pessoas: as mulheres, as/os trabalhadoras/es informais, as/os sem-abrigos, as/os moradoras/es das periferias pobres das cidades, as/os imigrantes indocumentados, as pessoas com deficiências, as/os idosas/os. A lista não é exaustiva, porém nos dá exemplos de como a pandemia liquida aquelas que são consideradas “descartáveis” por uma lógica capitalista, colonial e patriarcal.

Em textos publicados em jornais importantes no mundo, o autor discorre também sobre as falhas do Estado em lidar com a pandemia. Na contemporaneidade, os Estados estão sem capacidade para responderem eficazmente à crise humanitária que se abateu sobre os seus cidadãos. A pandemia está mostrando, de maneira cruel, como o capitalismo neoliberal incapacitou o Estado para responder às emergências. Inclusive os Estados do Norte, aqueles considerados desenvolvidos, estão tendo problemas graves e o exemplo mais paradigmático trazido por Boaventura é o dos Estados Unidos. Segundo o autor, os EUA estão precisando lidar, pela primeira vez, com um “invasor” que está ganhando dentro do seu território.

A partir dessa conclusão sobre como países do Norte global estão se prejudicando tanto ou, em alguns casos, mais que países do Sul global, Boaventura faz uma reflexão sobre o tempo. A ilusão do “desenvolvimento”, ou dos países do Norte serem mais avançados que os do Sul, vai se provando falsa e o vírus vai demonstrando que somos todos contemporâneos. O que legitimou a suposta superioridade do Norte sobre o Sul foi que o Norte veio “antes”, “descobriu”, colonizou, “civilizou” os países do Sul. Então seriam responsáveis pelo “fardo do homem branco”, de resolver os problemas daqueles que foram “descobertos”.

O vírus demonstra o quanto esse argumento é falho e problemático. Também abala a suposta superioridade da humanidade em relação à natureza. A partir de uma cosmologia judaico-cristã, o ser humano é considerado superior à natureza por ser a imagem e semelhança de um Deus que é transcendente ao mundo material. E o ser humano seria superior por ter vindo depois da natureza (aqui o argumento de superioridade é o que vem depois, com a definição de Norte e Sul é justamente o contrário, o que vem antes). O vírus demonstra o quanto essa ideia também é errada. Somos natureza. Boaventura afirma que a natureza e a humanidade são contemporâneas e complementares.

É assim que o sociólogo argumenta que o vírus vai provocar um abalo tectônico, uma fratura abissal, no nosso modo de ver e sentir a sociedade, a quebra está numa hierarquia temporal entre o antes e o depois, e numa hierarquia natural entre o inferior e o superior. O novo coronavírus é nosso contemporâneo, por partilhar conosco as contradições do nosso tempo, por reforçar os passados que não passaram e nos obrigar a nos mobilizar por futuros que virão ou não.

A partir dessas ideias, pensamos o quanto hoje é difícil e, ao mesmo tempo, imperativo viver o presente. Quantos de nós estamos organizando nossos álbuns de fotos, nos apegando às nossas memórias, aos nossos passados para suportar o presente? As dificuldades de imaginar um futuro próximo, de fazer projetos, até mesmo de curto prazo, obrigam-nos a viver o presente. E é um presente em que o virtual se apodera e que passa rápido, pela sobrecarga de tarefas e pela dificuldade em fazer sentido para o passado e para o futuro. Dessa forma, o vírus é dolorosamente e profundamente nosso contemporâneo.

Diante disso, apesar de ser um intelectual de retaguarda, Boaventura não se exime a nos trazer lições e pistas sobre o que fazer. Nas suas falas, tem ressaltado a necessidade de nos solidarizarmos com os que mais precisam. O momento é de defender a vida das pessoas, aquelas que estão ao “Sul da quarentena” precisam de nós. É hora de estarmos juntos, mesmo que virtualmente, refletindo sobre caminhos a seguir. É hora de nos isolarmos fisicamente em prol do coletivo. As campanhas de solidariedade são essenciais, as doações importantíssimas, pois a fome tem pressa.

Em uma das vezes que o ouvimos, ele começou falando que as lives são para afirmar que estamos vivos e lutando. Ele diz que, no pós-pandemia, não poderemos voltar ao normal. O normal é o desrespeito à natureza, a desigualdade social profunda, todas as mazelas do capitalismo, colonialismo e patriarcado. As bandeiras de defesa do meio-ambiente, de reforma agrária, de reforma urbana, da agroecologia, da economia solidária e tantas outras que representam a possibilidade de outros mundos, agora, mais que nunca, fazem sentido e são urgentes.

Boaventura nos provoca a pensar o que mata mais: se a Covid-19 ou os pandemônios gerados pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado, como outras doenças, opressões diversas e, notadamente, o racismo brasileiro, tanto no seu caráter estrutural das desigualdades socioeconômicas, como na sua materialização mais explícita, no continuado genocídio das populações indígenas e da juventude negra das periferias das grandes cidades.


Auditório lotado para conferência do sociólogo no Centro de Ciências Sociais Aplicadas da UFPE

A invisibilidade dessas mortes é um atestado de que temos corpos matáveis. Num país que tem uma das polícias com maior letalidade do mundo, cujas balas tendem a acertar desproporcionalmente mais as pessoas de pele preta, é “normal” que um governador sobrevoe bairros periféricos de helicóptero com atiradores disparando contra o que seriam “bandidos”, como se nossa Constituição permitisse a pena de morte.

Também faz parte deste “normal” situações como as que causaram a morte trágica do menino Miguel Otávio, no Recife, em que uma mulher branca de uma família rica e latifundiária não considerou importante cuidar do filho negro de cinco anos da sua empregada doméstica, mesmo com ele sob sua responsabilidade, colocando-o diretamente em risco ao soltá-lo sozinho dentro de um elevador num edifício que era desconhecido para ele. O fato da mãe dele ter tido que ir trabalhar durante a quarentena, sem ter com quem deixar seu filho, para, dentre outras coisas, passear com o cão da patroa, desvela a nossa ferida colonial de modo visceral.

O discurso oficial sempre tentou construir uma imagem do Brasil não racista, a vanguarda da democracia racial, em que não são necessárias políticas afirmativas para superar as desigualdades. Isso se repetiu tanto, como um mantra, e recentemente atualizado, que muitos têm dificuldade de perceber seus próprios privilégios e mesmo de enxergar as atrocidades cometidas cotidianamente. Dessa forma, não é de espantar que a violência policial contra a população negra nos EUA gere mais repercussão e comoção do que a violência aqui perpetrada em proporções muito maiores. O que isso diz da nossa sociedade?

Boaventura está convencido que o modelo social que globalmente adotamos não tem futuro. Essa é a defesa dele e a mensagem que quer passar. No entanto, parece-nos que ele está bastante pessimista e consciente de que o “novo normal” pode ser uma versão ainda mais cruel do capitalismo, colonialismo e patriarcado.

Em um dos seus artigos, o sociólogo afirmou que muita gente não vai querer pensar em alternativas para um mundo mais livre de vírus. Vai querer o regresso ao que considera normal a todo o custo, por estar convencida de que qualquer mudança será para pior. No curto prazo, o mais provável é que, findo o distanciamento social, as pessoas queiram assegurar-se de que o mundo que conheceram, afinal, não desapareceu. Por outro lado, a pandemia e a quarentena estão revelando que há alternativas, que as sociedades se adaptam a novos modos de viver quando isso é necessário e sentido como correspondendo ao bem comum.

É dessa forma que Boaventura de Sousa Santos traz reflexões originais, articuladas com teorias de sua autoria já consolidadas. Mais uma vez: não há receitas, nem fórmulas mágicas. Precisamos construir ativamente no processo. E, como afirmou ele: temos medo, mas temos também a esperança. Ou, como escreveu no artigo O coronavírus, nosso contemporâneo, publicado no Jornal de Letras, em 6 maio: “À narrativa do medo haverá que contrapor a narrativa da esperança. A disputa entre as duas narrativas vai ser decisiva. Como for decidida, determinará se queremos ou não continuar a ter direito a um futuro melhor”. Dizer não à antiga normalidade deve ser o passo inicial para a construção desse ansiado futuro melhor.

ERICK MORRIS, doutorando no CES-Universidade de Coimbra e educador popular da Universidade Popular dos Movimentos Sociais em Pernambuco.

JÚLIA BENZAQUEN, professora no Departamento de Ciências Sociais da UFRPE e também na construção da Universidade Popular dos Movimentos Sociais em Pernambuco.

MARCELO SOARES, fotógrafo.

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