Recife,24 de maio de 2020: na edição dominical de um jornal pernambucano, um anúncio publicado fora das páginas dos classificados, mas dentro da lógica que rege a seção destinada, em tese, a quem quer comprar ou vender algo, apresentava a proposição do seu signatário. “Poesia sonora e o coronavírus: Proponho que todas as igrejas católicas do Recife e de Olinda toquem seus sinos ao mesmo tempo, durante cinco minutos, no domingo, dia 31/05, às 10 horas da manhã”, dizia o texto, convidando “todos os habitantes” das cidades-irmãs a, “simultaneamente”, programarem “seus relógios despertadores para o mesmo horário”.
“Também deverão participar da homenagem as ambulâncias e os carros de bombeiro e da polícia, que deverão acionar suas sirenes durante os cincos minutos”, prosseguia a conclamação. Não se tratava de enigma algum, e, sim, de um tributo a quem, nos meses de pandemia, era considerado “linha de frente” nas trincheiras. “Essa Poesia Sonora é uma Homenagem a todos os Profissionais de Saúde que arriscam suas vidas para salvar as pessoas do coronavírus”, assinava Paulo Bruscky.
Aos 71 anos, o artista pernambucano, cuja práxis visual trafega entre performance e videoarte, arte correio e intervenções urbanas, para além de rótulos ou tentativas de enquadramento, estava ali a divulgar mais uma ação sua no campo da “arte classificada”, como a define e como a vem manejando desde a década de 1970. Semanas depois, repetiria o feito, dessa vez propagandeando um serviço utópico, ainda mais na era da quarentena e do isolamento social: “Consertam-se relógios biológicos”, era o pregão de um outro anúncio de domingo, dessa vez já em junho.
“Mesmo em casa você perde um pouco a noção de tempo durante a pandemia: ‘Hoje é tal dia?’, a gente se pergunta. É uma experiência totalmente nova, inédita, para todo mundo”, raciocina esse filho de um cidadão da Bielo-Rússia que chegou ao Recife com uma trupe circense.
Provocado pela Continente a falar sobre processos criativos em meio a uma grave crise sanitária, Bruscky tirou, em uma noite de junho, uma hora do seu precioso bem, o tempo, para nos conduzir por sua recente produção artística e por uma reflexão sobre a contemporaneidade. “De repente, o mundo inteiro para por causa de um organismo primitivo, que vem de um período muito antigo, como uma peste. É algo que não se esperava para o dia de hoje. Mas tenho trabalhado muito”, afirma. O mistério da criação, afinal, é seu aliado na poética que junta a ironia e a criticidade política à observação do cotidiano, como se observa no depoimento a seguir.
Arte classificada convoca toques de sino e sirenes pelos profissionais de saúde
Cheguei a Paris no fim de janeiro e fiquei até o começo de março. Foram 40 dias na casa da minha filha Raíza. Trabalhei muito: saía para comprar material, para produzir muita colagem. A colagem como colagem mesmo. Inclusive, o título é Cola/Gens. Também fiz um trabalho de arte correio, que mandei de lá para a Itália, para alguns artistas com quem me correspondo. Meu último trabalho de lá foi sobre o coronavírus, alguma interferência que fiz nos jornais de lá. Em Paris, fiz uma performance na rua, Raíza filmou, e também fiz um trabalho com foto.
No comecinho de março, minha mulher e eu fomos para Lisboa, para passar uma semana. Continuei trabalhando, mas em uma quantidade menor. Mas cheguei a fazer uma performance... Foi exatamente quando estavam começando a fechar tudo. De lá, eu já acompanhava, pelos jornais, e também comprando os jornais do exterior, da Espanha e dos Estados Unidos, toda a questão da pandemia. O isolamento, a situação nova que estava sendo criada... Minha preocupação era com tudo, pois eu não esperava viver isso de uma hora para a outra. Aliás, ninguém esperava. Tenho 71 anos, já vivi muita coisa, mas essa era uma situação inédita. A nossa sorte era que a viagem já estava se encerrando, então voltamos e, como pegamos a coisa braba em Lisboa, ficamos de quarentena, no nosso apartamento no Pina. E quando tudo pegou mesmo aqui no Brasil, meu filho Yuri teve dificuldade de voltar de São Paulo e, quando chegou, ficou em um apart hotel para não se encontrar com a gente.
Além de trabalhar com vários meios, eu sempre gostei de acompanhar tecnologia, então leio muito sobre neurociência, sobre os avanços científicos e tudo mais, e de repente acontece isso: um vírus que já era conhecido, mas que pega todos os cientistas do mundo de surpresa. Sem previsão de nada, sem 100% de confirmação e aí todo mundo para. E fica em confinamento, na solidão. Posso dizer que a solidão sempre me acompanhou. Trabalhar sozinho faz parte de ser artista. Até digo que artista é feito urso: hiberna por um período e depois produz muito.
A virulência da arte é maior que a solidão do coronavírus, obra conceitual, junho de 2020
Durante essa pandemia, eu tenho trabalhado muito. Vou ao ateliê trabalhar, lá no centro, perto do Mercado da Boa Vista, saio de carro, de máscara, sem contato com ninguém. E trabalho sozinho, tem tudo lá e ainda trago muita coisa para casa. Tenho trabalhado muito em casa também, em obras que estou terminando, em outras que estou começando... Publiquei os classificados no Jornal do Commercio propondo essa ação de poesia sonora. Mas tem um nome para isso: arte classificada, que é algo que venho fazendo desde os anos 1970, aqui e em vários países.
ASSIM SE FAX ARTE A ideia dessa ação coletiva, da poesia sonora, era para as pessoas desopilarem, para participarem de algo cultural, de lazer e se distraírem um pouco. Queria também fazer uma homenagem ao pessoal da saúde. Acompanhei quando o ex-ministro da Saúde (Nelson) Teich disse que entrou em uma UTI, em São Paulo, e era uma coisa terrível, as pessoas estavam trabalhando sem poder ir para casa. Tenho um sobrinho que trabalha numa UTI e mandou a mulher para a casa da mãe e ficou sozinho em casa, estafado. Agora, não temos ministro e não temos governo. Você não ouve ninguém do governo falar da Covid-19, mas ouve falar da cloroquina e do que compraram nos EUA, numa submissão eterna e em gastos que nunca chegam a ser fiscalizados.
Então essa arte classificada saiu em blogs, teve uma recepção boa em outros estados, várias pessoas me mandaram e-mails dizendo que tinham feito, mesmo sem ser do Recife ou de Olinda, amigos, gente da família... Eu sabia que era uma coisa muito complicada nessa época, mas era exatamente para as pessoas desopilarem. Só isso para mim já seria gratificante. Porque o que estamos vendo são os profissionais da saúde se ocupando com a morte; nos hospitais, as pessoas escolhendo quem morre ou quem não morre, enquanto no governo você não vê essa preocupação com os outros.
Na série MascarAção, artista colocou máscaras em estátuas existentes no Centro do Recife
Antes desse anúncio, publiquei um com a palavra solidão e vou colocar outro que tem a ver com tudo isso (quando Bruscky falou à Continente, o anúncio ainda não havia sido publicado): “Consertam-se relógios biológicos”. Porque, mesmo aqui em casa, você perde um pouco a noção de tempo. “Hoje é tal dia?”, a gente se pergunta. É uma experiência totalmente nova, inédita, para todo mundo.
Já fiz muita arte classificada e já fui muito censurado, até. Censurado em Lisboa, censurado na Alemanha. No ano retrasado, quando estive na Alemanha, publiquei um anúncio que disseram que era mensagem cifrada, que poderia ser um ataque terrorista. O que era? Anunciei um gravador de cheiro. Foi publicado em alemão, o dono de galeria que botou, ele ligou para os classificados e não foi aceito. Mas o trabalho mesmo já era a viagem do Recife para Berlim. “O trajeto é minha obra” é uma frase minha de muito tempo já (1978), sempre trabalhei com tempo e espaço. A minha obra, na verdade, era sair daqui e chegar lá. E eles achavam que era mensagem cifrada.
EU FAÇO O QUE NÃO EXISTE Veja, no dia em que eu souber para que serve a arte, eu paro. A arte é tudo. Não tem uma utilidade específica, por isso eu acho que a ideia, a esperança da arte é justamente não ter um projeto específico. A arte induz as pessoas a uma reflexão importante, a um pensamento, a uma pergunta: o que é viver? O que é a vida? A arte é levar a essa reflexão e, no dia em que eu souber responder, eu paro.
Na arte classificada, já trabalhei também com frases como “Aluga-se apto” ou com outras frases sobre essa questão mais filosófica também. Não é só sobre a solidão… A arte transforma a vida das pessoas para levá-las a uma reflexão mais ampla sobre o que é essa vida. E leva a refletir sobre a convivência com os outros. Agora, no meio da pandemia, ao mesmo tempo que tem a tecnologia, e você se conecta com as pessoas, também vai se desligando do seu mundo.
McLuhan já dizia isso sobre a televisão, que, ao contrário do que se pensava, as pessoas iriam começar a ver e mal conversariam, elas iriam se aproximar. Lembrei isso, no jornalismo, pois estudei muito comunicação, semiótica e semiologia, e escrevi uma reflexão sobre o que o mundo nos trouxe diante de tanta catástrofe. McLuhan disse naquela época e se aplica agora: para se falar mais, se unir mais, se amar mais. Por causa do confinamento forçado, acho que as pessoas isoladas, e mais ainda aquelas que estão em grupos de risco, estão refletindo sobre a vida, o tempo e a função das coisas. Isso levou a uma aproximação, eu acho. O isolamento social também trouxe um conjunto de reaproximação entre as pessoas.
HOJE, A ARTE É ESTE COMUNICADO Nos anos 1970, tem um filme meu, quando fui filmando pela estrada, em que aparece um para-choque de caminhão escrito: “Não me acompanhe que não sou novela”. É mais ou menos assim a minha forma, o caminho da minha criação, um filme, um livro, uma ideia... Por exemplo, para a poesia sonora do coronavírus, eu ouvi os sinos, nesse período da pandemia, mas, ao mesmo tempo, já trabalho com som, com arquivos sonoros, desde os anos 1970. Um relógio é uma coisa que me fascina muito. Já propus uma coletiva com 100 celulares tocando, toques diferentes, ao mesmo tempo. Tenho trabalhado com essa questão da tecnologia no mundo há muito tempo.
A ideia, eu penso, pode até surgir dormindo. Tenho uns seis livros que são grandes bancos de ideias em que vou colando tudo, que nem um livro de ata. Um pedaço de guardanapo de bar é ideal, pois, se você não anotar, vai embora. Avião, para mim, é uma beleza, porque vou anotando tudo. E, aí, quanto mais anoto, mais essas agendas estão cheias. Criei meu próprio índice: anoto a performance, boto um ponto vermelho no início, e depois guardo tudo que vou fazer. É tanta anotação, que, se eu tivesse três vidas, não daria conta. Tanta coisa armazenada, que inventei uma frase: tudo que o homem pensar outros poderão realizar.
Nunca tive ansiedade com autoria, sim, abro mão, dependendo do que for, mas eu penso muito no trabalho, todos os dias, e não dá para realizar tudo que eu penso, então já acertei isso dentro de mim: outras pessoas poderão fazer. E há sempre o acaso. Os inventos acontecem, até por acaso, mas dentro da pesquisa. Sempre dentro de uma pesquisa. Já estudei muito os inventores, como Leonardo da Vinci e Nicolas Tesla, a criação, o processo, os livros, os fichários dele... Gosto de comparar, gosto de ver o que outras pessoas fizeram e fazem. Arte para mim é arte manual. E tudo que vejo sempre entra na minha obra. Na ditadura, eram as pessoas estendendo a mão, pedindo, com falta de moradia, falta de ocupação, falta de dinheiro.
A partir de folhas de pauta musical, Bruscky cria as obras Covid-19 e Partitura para o Suprematismo
Isso era nas décadas de 1960 e 1970, mas, na pandemia, os pobres seguem marginalizados. São sempre eles, numa fila imensa para receber uma miséria que estão querendo baixar para R$ 200. O que são R$ 200? Eles, os ricos, têm tudo, não sabem o custo de vida, por isso é que os pobres ficam nessa fila. Dá uma angústia ver o ser humano naquelas filas. É uma tristeza.
O MEU CÉREBRO DESENHA ASSIM Sempre produzi muito, sempre, mas fazia tempo que não produzia tanto. Tenho refletido muito e isso leva à criação. Normalmente, passo mais tempo no ateliê do que em casa. Não tenho ajudante, não gosto. Quando penso em uma coisa, tenho que levar até o fim. Gosto de executar, de botar a mão na massa para fazer minhas coisas. Sem delegar. Quando é uma coisa mais técnica, consulto um engenheiro ou um arquiteto; mas, para executar, sou eu mesmo que faço. Então, mesmo nesses dias mais longos, com o isolamento maior, estar sozinho não é um problema para mim. Agora, os bilionários estão querendo abrir tudo, o governo só pensa nos negócios, sem se preocupar com quem vai morrer ou não, com quem tem dinheiro para viver ou não. É impressionante como, no Brasil, nem a própria classe média existe mais.
Sem título, colagens, fevereiro de 2020
Mas eu sinto que as pessoas estão se revoltando contra Bolsonaro, contra Trump. E estou acompanhando tudo, emocionado. Sempre acompanhei tudo de Martin Luther King, estou adorando o que está acontecendo com os negros nos Estados Unidos, a revolta deles, que são extremamente politizados. Meu filho Yuri me contou que um negro estava sentado no meio-fio, lanchando, quando chegaram uns policiais e perguntaram o que ele estava fazendo. Ele respondeu “estou lanchando”, mas os policiais, que eram brancos, não quiseram saber e disseram que ele estava preso. Pois o negro se levantou, pegou a carteira do FBI e disse que quem seriam presos eram os outros.
Lá nos EUA, mataram uma moça, um rapaz, aqui no Brasil mataram o menino João Pedro e vieram os protestos. Então, quer dizer que quanto mais protestos, mais tudo isso – a violência, o racismo – vem à tona. A impressão que tenho é de que não vão mais conseguir calar os negros, nem os que lutam pela democracia. Os manifestos pela democracia estão tendo uma aderência muito grande. Aqui no Brasil você tem os jogadores de futebol, os atletas, os artistas. Se não fosse a pandemia, as ruas estariam cheias de gente pedindo pela democracia. Estão surgindo vários grupos simultaneamente, no Brasil e no mundo, e isso é muito importante, porque o momento é de ignorância. De perigo para a saúde, com a pandemia do novo coronavírus, e de perigo para a cultura.
***
“Nem se preocupe, pois sempre compro uma mala extra. Viajo com excesso de bagagem, com malas grandes, não foi um problema”, revela o homem que já expôs em Veneza, Havana e Paris, passou um ano em Nova York, foi persona non grata durante a ditadura militar de 1964 a 1985 e, em 2009, recebeu o título de Cavaleiro da Ordem do Mérito Cultural pelo mesmo governo brasileiro que, décadas antes, censurara suas obras. Ele aludia a uma encomenda enviada por sua amiga Cristiana Tejo, curadora de Paulo Bruscky – Arte correio, exposição montada em 2011 no Centro Cultural Correios, para o Recife. Seu altruísmo em transportar dois livros para alguém que nem conhecia pessoalmente é indicativo de uma alma generosa e da inquietude do espírito de quem compreende a relevância do deslocamento.
Seja no ato de transitar pelo centro da cidade, colocando máscaras nas estátuas e bustos que adornam as margens da Rua da Aurora ou os jardins do Teatro de Santa Isabel, na série MascarAção, ou seja no perambular pelas vielas do comércio em Lisboa, carregando a antológica placa com os dizeres “Eu vejo o que vocês não veem”, Paulo Bruscky ratifica, apesar e para além da pandemia, a força do afeto na sua arte. Ao afetar o seu entorno, permitir-se afetar pelo ordinário e pelo extraordinário e ser afetado pela sua própria ação, ele espelha o impacto que a sua presença é capaz de catalisar em qualquer suporte – um simples postal, nos classificados artísticos ou nas colagens.
“Para que serve a arte? No dia que souber, já disse, eu paro”, vaticina. Conquanto siga a pensar, anotar e produzir, e a traduzir com perspicácia e agudeza o muitas vezes caótico estado de coisas do mundo, há de prosseguir a torcida para que ele nunca obtenha a tal resposta.
O que nos espera?, colagem, 2020 Imagens: Paulo Bruscky/Divulgação
PAULO BRUSCKY, artista multimídia, inventor e poeta.