A trincheira ficava a dois quilômetros da cidade de Ganus, no Iraque. Local onde, no dia anterior, acontecera um intenso combate entre as forças curdas e o Estado Islâmico. Sob o sol inclemente, barracas, blindados e soldados estacionados buscavam garantir posição estratégica. De vez em quando, dava para ouvir alguns disparos sendo feitos. Eram tiros esporádicos, mais para avisar ao inimigo que o lugar continuava ocupado do que para necessariamente atingir alguém. Enfim, era só mais um dia comum, e até tedioso, para o soldado curdo encarregado de efetuar os tiros. Mas, por pouco tempo.
Vindos da cidade de Erbil, quatro fotógrafos acabavam de chegar à trincheira, mesmo depois dos avisos oficiais que diziam que o lugar ainda poderia ser perigoso. Eram dois brasileiros e dois espanhóis em busca da melhor imagem, da melhor história. Ao avistar os quatro ocidentais com câmeras a tiracolo, o soldado curdo percebe que ali está a sua grande chance de espantar o marasmo. Logo que avista as lentes apontadas para si, resolve abrir fogo a esmo. Um, dois, três, quatro, cinco, 10 disparos. Talvez mais. “É ação que vocês querem? Então, toma!”, pode ter pensado, enquanto esvaziava o cartucho.
Os fotógrafos correm, entrincheiram-se junto ao atirador e começam a fotografar. Cada um procura o melhor ângulo, a melhor luz. Tentam captar a explosão do momento, mesmo que seja uma explosão controlada, quase construída. Em meio ao calor daquela encenação heroica, Cris Veit, fotógrafa que estava no grupo, instintivamente se afasta da trincheira. Dá alguns passos para trás e, com apenas um clique, descortina os bastidores daquele ensaio improvisado. Na imagem capturada por ela, os três colegas se espremem atrás do soldado com suas câmeras, exibindo o momento exato da construção de narrativas. Sem o contexto certo, aquelas fotografias poderiam chegar aos olhos do público como imagens fortes de um intenso conflito que sequer aconteceu.
Marinheira de primeira viagem na fotografia, Cris resolveu se iniciar logo na fotografia de guerra. Antes, passara 12 anos como diretora de fotografia na National Geographic Brasil, editando alguns dos maiores fotógrafos do país. Foi parar no Iraque no fim de 2016 por uma decisão de última hora. “Eu tinha uns amigos fotógrafos indo pra lá, então resolvi ir junto”, contou à Continente. A intenção nunca foi de fazer fotos de batalhas, de gente sendo atingida por balas e estilhaços. O que ela queria era mostrar as pessoas por trás daquelas fotos estampadas em revistas, jornais e sites do mundo inteiro. Entender como aquelas imagens eram construídas e costuradas.
A foto em questão marcou uma transição importante na vida de Cris Veit. Aconteceu no momento em que ela deixava de ser quem ajudava profissionais a desenvolverem suas imagens, para procurar seu próprio caminho na fotografia. Foi assim que decidiu investigar o fazer fotográfico, mais especificamente o seu fator humano, olhando não apenas para o palco, mas também para o que existe por detrás dele.
A fotografia tirada do soldado curdo ilustra bem os bastidores de um front. Repleto de pessoas em busca do melhor espaço e da melhor história. “Os meus colegas produziram fotos incríveis daquele momento, porque eles estavam numa posição muito privilegiada. Muito perto da ação e com segurança”, relembra. “As imagens que os três produziram eram muito fortes e poderosas, mas elas não eram do calor do momento. Quando você está acompanhando o exército no front, você não consegue uma imagem tão limpa e tão precisa.” Não era uma mentira, mas era uma imagem ilustrativa da guerra.
“No fim das contas, eu consegui entender por que o fotojornalista de guerra escolhe esse trabalho tão arriscado”, avalia Cris, que agora está voltada para projetos mais reflexivos e conceituais. “É muito fascinante estar em uma zona tão complexa, onde muita coisa acontece ao mesmo tempo, presenciando o sofrimento das pessoas afetadas. Poder dar voz a elas, contar essas histórias, é uma experiência muito rica.”
Nas fotos de Cris Veit, bastidores da cobertura de conflitos. Na primeira imagem, profissionais procuram o melhor ângulo de uma trincheira; na segunda, a presença de mulheres
Existe um distanciamento entre as palavras e as coisas. Da mesma forma, há um distanciamento entre imagem e realidade. Distâncias que são impossíveis de serem vencidas, mas que podem ser encurtadas. Pondo em risco a própria segurança, o trabalho do fotógrafo de guerra é justamente o de criar pontes que levam os horrores da linha de frente em pontos distantes do planeta ao conforto e à segurança da casa do espectador. Serviço prestado à custa de muita coragem, paciência e, às vezes, até da própria vida.
Ano após ano, profissionais do mundo inteiro se dedicam a mostrar o que muitos querem ver, mas poucos têm coragem de presenciar. A vida que se esvai; o desespero de quem perde amigos e família entre destroços e escombros; a miséria de quem fica para esperar a sua vez de morrer. A maioria deles vai na raça mesmo, só com a cara e com a coragem. Bancando tudo do próprio bolso, na esperança de depois encontrar quem pague por imagens que retratam a humanidade em momentos dramáticos. Outros poucos vão com maiores garantias, dadas pelas agências de notícias pelas quais são contratados. Estes últimos geralmente carregam os melhores equipamentos, ficam hospedados nos melhores hotéis e conseguem facilidades que só o dinheiro pode comprar. Percursos diferentes para se chegar ao mesmo destino.
Entre os fotógrafos de conflitos armados, não falta diversidade. Pessoas de todos os cantos se deslocam para ver com as próprias lentes de que é feita a guerra. Muitos escolhem trocar as zonas de guerras não declaradas do país em que vivem por outras linhas de frente na África e no Oriente Médio. Os motivos também são diversos. Alguns vão pela adrenalina, outros porque sentem a necessidade de fazer denúncias ou de contar uma história que só pode ser encontrada sob fogo inimigo, com morteiros explodindo a poucos metros de distância e balas zunindo ao pé do ouvido.
“A guerra é nojenta, e o que ela nos tira, quando não nos tira a vida, nunca mais devolve”, escreveu Joel Silveira (no livro O inferno da guerra), que foi ver de perto as atrocidades da Segunda Guerra Mundial por ordem de Assis Chateaubriand. Não há nada de glamouroso na guerra, é preciso dizer. Apenas morte, destruição e injustiça. E é justamente isso que faz com que muitos desses profissionais queiram estar lá: para documentar e contar as histórias de quem sofre com ela; para mostrar àqueles que, por política, religião ou dinheiro ligados a interesses que não são os seus, precisam fugir o tempo todo e temer pela própria vida e pela vida das pessoas que ama, 24 horas por dia.
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O fotojornalismo deve muito ao fotojornalismo de guerra. Foi com ele que toda a história da documentação visual de eventos extraordinários se aprimorou. Primeiro, vieram as imagens feitas no pesado daguerreótipo, dispositivo criado pelo francês Louis Daguerre, em 1839. Em geral, eram retratos de soldados e generais posando em acampamentos militares. Não muito tempo depois, sob o olhar de Roger Fenton, a Guerra da Crimeia (1853-1856) foi registrada para a coroa britânica, que queria saber o que de fato se passava por ali. Fenton foi responsável por levar ao público comum os detalhes da guerra, por meio do Illustrated London News.
Nos Estados Unidos, Mathew Brady fotografou a Guerra Civil Americana (1861-1865) para a Harper’s Weekly. Naquela altura, o principal interesse era fazer retratos dos soldados que partiam para os campos de batalha, sem saber se iriam ou não retornar para suas famílias. Dessa forma, um retrato serviria de lembrança para os entes queridos. Mas os interesses de Brady iam além. Ele queria conhecer verdadeiros campos de batalha. Com a permissão do então presidente Lincoln, e com a ajuda de uma equipe de mais de 20 pessoas, registrou momentos e lugares com a tecnologia que tinha a seu alcance.
Longe de ser atividade estabelecida, a fotografia de conflitos armados era exercida em grande parte por curiosos e amadores. Graças às revoluções técnicas e tecnológicas, muitas pessoas passaram a tirar fotografias por conta própria, sem precisar de todo o aparato necessário à captura de imagens no século XIX. Durante a Primeira Guerra Mundial, era comum soldados dos dois lados (os aliados e a os Impérios Centrais) irem para o front armados não apenas com fuzis, mas também com câmeras fotográficas. Naquela época, os equipamentos fotográficos tiveram uma grande melhoria de qualidade, principalmente depois das inovações trazidas pela Kodak, que no começo do século XX trouxe para o mercado a Vest Pocket Kodak (ou VPK), conhecida depois como “a câmera dos soldados”, por conta do seu formato compacto e facilidade de uso.
Naquele conflito, devido à impossibilidade de fotógrafos profissionais irem para a linha de frente, a imprensa de alguns países pressionou as forças militares para que resolvessem a situação. A solução encontrada foi a nomeação de fotógrafos oficiais. A partir daí, houve um grande número de registros, com diferentes pontos de vista da mesma história. Um enorme quebra-cabeças que surpreende os estudiosos que tentam montá-lo, como é o caso de Bodo von Dewitz, ex-curador do Museu Ludwig, na Alemanha, e de Hilary Roberts, curadora de fotografia do Imperial War Museum, em Londres, que se dedicam a reconstruir a história e o contexto da Primeira Guerra Mundial através desses registros. “Quando se olha para a tecnologia que os fotógrafos de hoje dispõem, acho aquilo uma conquista notável. Eu realmente me pergunto se quem está cobrindo os conflitos na Síria e em todo o mundo hoje pudesse voltar 100 anos e levar seus equipamentos atuais, e com eles documentar a Primeira Guerra Mundial, se eles poderiam fazer melhor”, comentou Roberts, em entrevista ao The New York Times, em 2014.
Do ponto de vista da fotografia, a Segunda Guerra Mundial foi propulsora de incrementos em equipamentos e técnicas, possibilitando que as imagens se tornassem relatos mais realistas e dinâmicos dos acontecimentos. Anos antes, ainda na década de 1920, o surgimento das câmeras alemãs Ermanox e Leica causaram alvoroço por conta de suas lentes de abertura ampla, que requeriam pouco tempo de exposição à luz para captura de imagens, não sendo mais necessário, por exemplo, que modelos ficassem fazendo pose por muito tempo. Isso oferecia muito mais naturalidade e agilidade na captação.
No mesmo período, grandes revistas passaram a investir mais e mais no uso de imagens para ilustrar suas páginas, a exemplo de duas grandes publicações alemãs: a Münchner Illustrierte Presse e a Berliner Illustrirte Zeitung, revistas que tinham a fotografia como principal temática e que influenciaram o nascimento de outras publicações, não só na Europa, como também nos Estados Unidos, a exemplo da Vu, da Look, e da famigerada Life, que tinha entre seus correspondentes Margaret Bourke-White, primeira mulher a ter permissão para trabalhar em zonas de combate durante a guerra.
Durante a Segunda Guerra Mundial, surgem, no Ocidente, profissionais cujas imagens são clássicos deste gênero que se convencionou nomear fotografia de guerra. Além de Margaret Bourke-White, nomes como David Seymour, Joe Rosenthal, Charles Kerlee, Henry Cartier-Bresson, Edward Steichen, e aquele que seria o maior dentre todos nesta categoria: Robert Capa.
A aura de excelência circunda a memória do húngaro-americano Capa (1913-1954), batizado Endre Ernő Friedmann e que atuou nos maiores conflitos armados do século XX: Guerra Civil Espanhola, Guerra da Indochina, Segunda Guerra Mundial e em territórios árabes. É dele a icônica e ainda hoje chocante fotografia tirada em 1936 de um soldado espanhol empunhando um fuzil enquanto vai ao chão, após ser alvejado por uma bala inimiga durante a batalha por Cerro Muriano, cidade a 20 km de Córdoba. A imagem é considerada um marco do fotojornalismo, pois captura o momento preciso de um soldado que dizem ter morrido antes mesmo de chegar ao chão. Foi um segundo decisivo, impossível de ser registrado com tamanha clareza apenas pelo olho humano, e que foi imortalizado pela Leica de Capa.
A perfeição da imagem foi tamanha, que, tempos depois, houve uma onda de questionamentos sobre sua autenticidade, iniciada em 1975, pelo jornalista Phillip Knightley no livro The first casualty, no qual colocou o relato de um repórter chamado O.D. Gallagher, que afirmava ter dividido um quarto de hotel com Capa, onde teria ouvido da boca do próprio autor que a imagem havia sido posada. Pouco tempo depois, mais vozes se uniram ao coro dos céticos, entre eles os italianos Piero Berengo Gardin e Roberto Leydi, e o historiador espanhol Ricardo de la Cierva, que, ainda na década de 1970, publicaram artigos que questionam veracidade da cena. Questionamentos que eram rebatidos pelo biógrafo de Capa, Richard Whelan.
Robert Capa é um dos nomes incontornáveis da cobertura da
Segunda Guerra Mundial
Até hoje a discussão perdura. Em 2009, José Manuel Susperregui Echeveste, professor da Universidade do País Basco, mexeu novamente no vespeiro, ao publicar Sombras de la fotografía, livro que contou com a colaboração de historiadores de Córdoba para determinar o local exato da fotografia do soldado baleado. Em sua conclusão, Susperregui defende que a fotografia foi “posada” e que a paisagem era de um local chamado Espejo e não próximo a Cerro Muriano, como havia dito Capa. E as polêmicas não param por aí. Outras fotos de sua autoria, e que foram posteriormente questionadas, incluem aquelas tiradas no chamado Dia D, em junho de 1944, quando soldados aliados invadiram a Normandia pela Praia de Omaha.
Apesar dessas discussões sobre a veracidade e autenticidade de algumas de suas obras, é plausível dizer que todo fotógrafo de conflito sonhou um dia em ser Robert Capa. Seja pelo sucesso, pelo dinheiro ou, simplesmente, pela aventura. Em 1947, junto com os amigos Henri Cartier-Bresson, David Seymour, George Rodger e William Vandivert, criou a Magnum Photos, que logo se tornaria a mais respeitada agência de fotografia do mundo. Sua influência atravessou gerações, mesmo após sua trágica morte na Indochina, em 1954, quando pisou em uma mina terrestre.
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Embora sem tradição na cobertura de guerras declaradas, o Brasil hoje conta com um time de profissionais de primeira linha no segmento. Entre eles, o carioca Felipe Dana e o paraense Gabriel Chaim. Mesmo relativamente jovens, os dois já viveram experiências importantes nesse tipo de cobertura. Dana trabalha para a Associated Press e registrou diversas crises ao redor do mundo, enquanto Chaim atua como fotógrafo e cinegrafista freelancer, distribuindo seu material para grandes veículos do mundo, incluindo CNN, Der Spiegel e Globo News. Reconhecido pela qualidade narrativa de suas imagens e pela sua coragem, Chaim é um dos mais bem-sucedidos profissionais hoje em atividade.
Os fotógrafos brasileiros não tinham histórico relevante de participação em coberturas de guerras não relacionadas ao Brasil. Mas a presença de profissionais daqui ganhou relevância em conflitos mundiais a partir dos anos 2000, com os trabalhos de Mauricio Lima – primeiro brasileiro a ganhar um Pulitzer –, Juca Varella, Alice Martins e André Vieira.
O fotógrafo Mathew Brady fez a cobertura da Guerra Civil Americana (1861-1865) para a revista Harper’s Weekly
Em abril de 2001, Vieira morava em Nova York e tinha ido para o Afeganistão trabalhar em um projeto pessoal com o qual estava pouco entusiasmado: registrar uma possível tomada de todo o país pelo Talibã. “Na verdade, o Afeganistão era o projeto com o qual eu estava menos envolvido, incluí na viagem apenas porque uma amiga, que era produtora da TV Globo, tinha estado lá recentemente e me deu vários contatos”, relembra. No fim das contas, a experiência valeu a pena. “Foi como cair noutro planeta”, diz. “Viajei por quase todo o norte do país, que na época tinha sido completamente isolado do mundo por causa da destruição pelo Talibã dos Budas gigantes de Bamiyan e do tratamento que davam às mulheres.”
Depois de três meses, André voltou para Nova York e se deparou com uma dura realidade, ao tentar vender seu trabalho para os editores que conhecia. “Fui super bem-recebido pela maioria, com alguns passei horas conversando, todos gostaram muito do trabalho, mas não era um assunto que estivesse na pauta de ninguém.” A situação estava difícil e o dinheiro andava curto, mas não havia muito o que fazer, a não ser lamentar o dinheiro investido, que, àquela altura, já era dado como perdido. Foi quando aconteceu o fatídico atentado de 11 de setembro, virando o mundo de ponta-cabeça.
Completamente quebrado, com cartões de crédito estourados e sem dinheiro para pagar o próximo aluguel, André se sentia amargurado por não ter fotografado nada de relevante no período do atentado e sentia que tinha perdido uma grande chance. Mas ele não esperava por uma guinada tão repentina. “Quando ficou claro que o ataque tinha sido comandado do Afeganistão, de repente, todo mundo queria o meu trabalho, pois quase ninguém tinha fotos recentes de lá.” Ele viu a chance, assim, de se redimir daquele que ele acreditava ter sido seu grande fracasso como fotógrafo e jornalista.
Com o dinheiro da venda das fotos, e com os contatos que tinha feito durante a primeira viagem, resolveu voltar para o Afeganistão, por rotas que pouca gente da imprensa internacional tinha conhecimento. Enquanto a maioria corria para a fronteira do Paquistão, André foi direto para o norte, pelo Tajiquistão, terreno que conhecia bem. Não deu outra, foi um dos primeiros a entrar, já que o Paquistão se recusava a abrir suas fronteiras.
“Cheguei num país totalmente mudado, um ambiente completamente diferente. Mas, por causa da minha experiência anterior e dos contatos que tinha feito, tive a sorte de conseguir trabalhar a maior parte do tempo sozinho, em lugares sem nenhum outro jornalista. Foi isso, na verdade, que me permitiu trabalhar, pois quase não gastei dinheiro (e nem tinha pra gastar), enquanto que, onde estava o resto da imprensa, nota de 100 dólares era troco miúdo.”
Esse é um outro problema da cobertura de guerra. Ela custa caro. Principalmente o acesso. “Quase sempre você precisa ter um tradutor/produtor que vai conseguir lhe levar até o front, lhe colocar em contato com os generais de um exército ou os comandantes de uma força rebelde”, explica o jornalista Yan Boechat. “Esse cara é chamado de fixer. O valor dele hoje, em qualquer parte do mundo, varia entre US$ 300 a US$ 600 por dia. Quando o assunto está quente demais, esse valor pode ir a US$ 800, a diária. Então, para quem é frila, é muito difícil. Muitas vezes, você precisa colocar sua segurança em risco pra conseguir um fixer mais barato, ficar num hotel mais simples e menos seguro. Não é fácil.” Uma das alternativas que fotógrafos, e também jornalistas, utilizam para driblar a falta de recursos é dividirem os custos de moradia e de guias.
Boechat não se considera um fotógrafo de guerra. Prefere ver a si mesmo como um jornalista que fotografa. As fotografias funcionam para compor suas narrativas. Começou como repórter de assuntos policiais, depois economia e política, mas sempre com a câmera nas mãos. Depois de um tempo, passou a fotografar as próprias matérias e o procedimento foi dando certo. Inspirado por Cartier-Bresson, sempre gostou de contar histórias oferecidas pelas ruas. Para ele, é importante entender as guerras que se quer cobrir, conhecer sua história e seu contexto. Seu interesse por zonas deflagradas é antigo. “Eu sempre quis cobrir conflitos, desde os tempos da faculdade. Eu ainda não era muito experiente da primeira vez que fui cobrir um deles. Tinha saído da faculdade há uns cinco anos”, dimensiona.
Quando André Vieira esteve no Afeganistão pela primeira vez, em 2001, o país estava isolado após ser tomado pelos talibãs
Para se dar bem na profissão de fotógrafo de guerra, não basta ter vasto conhecimento técnico. Outras competências são exigidas, não necessariamente ligadas à atividade-fim. Como ter paciência, por exemplo. É preciso entender que, ao fazer esse tipo de cobertura, serão horas e mais horas esperando em checkpoints, postos instalados próximas às áreas de confrontos, e por liberações e documentos. Outra necessidade é saber lidar com as frustrações e o fracasso.
Com histórias bastante diferentes, Yan e André dividem uma frustração em comum: os dois tentaram entrar no Iraque, em 2003, para acompanhar as atividades das tropas norte-americanas durante a invasão ao país. “Quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, eu juntei minhas economias e tentei fazer a cobertura como frila”, rememora Yan. “Na época, eu era repórter de economia e tinha decidido parar um ano para melhorar meu inglês e viajar. Então, tentei entrar no Iraque, mas não consegui, e acabei indo para o Afeganistão. Foi uma ótima experiência, mas financeiramente foi uma tragédia.”
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“O problema da fotografia de guerra é que não tem como ser feita a distância. Você precisa estar perto”, disse Chris Hondros, fotógrafo estadunidense que cobriu alguns dos mais violentos embates das décadas de 1990 e 2000. “Se as fotos não estão boas o suficiente, é porque você não está perto o suficiente”, teria sido o conselho de Capa aos amigos fotógrafos. O fato é que não dá para se manter distante e ficar atrás dos muros e das paredes dos hotéis. É preciso estômago e coragem para se aproximar e sentir de perto o horror de ouvir um morteiro se aproximar. Só assim é possível ter a veracidade necessária para contar a história da maneira correta. E é justamente esse o maior perigo. Não apenas o de morrer, como acabou acontecendo com Tim Hetherington e o próprio Hondros (ambos mortos na Líbia, em 2011), mas o de ficar para sempre marcado.
O fotógrafo Marcio Pimenta teve seu primeiro contato com o fogo cruzado no Rio de Janeiro, quando cobria os conflitos armados no Complexo do Alemão, dois meses antes das Olimpíadas 2016 do Rio. “Relacionamos conflito a guerras em seu modo clássico, mas ali e em outros espaços sociais do Rio de Janeiro, há um confronto civil que fingimos não acontecer, mas que, para a população dos morros – com tanta gente boa –, esse é o cenário cotidiano: grupos portando armas pesadas e tiroteios a qualquer hora do dia ou da noite”, pontua Marcio, que também não se considera um fotógrafo de guerra.
Em 2017, depois de passar por um treinamento de cobertura de conflito na Inglaterra, ele logo seguiu para o Iraque e para o Curdistão Iraquiano, onde teve a oportunidade de registrar a vida nos arredores e dentro da cidade de Mossul. Além disso, conheceu o povo Yazidi, etnia marginalizada por conta das suas crenças. Tocado pela história daquele povo perseguido, Marcio resolveu mostrar a cerimônia de reintegração das mulheres Yazidi que haviam sido resgatadas das mãos do Estado Islâmico depois de servirem como escravas sexuais. Um momento muito especial e único. Porém, a experiência de viver sob constante tensão e testemunhar cenas e histórias tão fortes acaba tendo o seu preço.
“Ao contrário do que muita gente pensa, o maior impacto não é quando você chega a uma zona de conflito, é quando você sai dela. É aí que começam os pesadelos”, garante Marcio. “Quando se está lá, o instinto de sobrevivência lhe mantém em alerta e você não tem muito tempo para pensar. Então, em um momento, você volta para casa e aí uma forte onda de pesadelos e pensamentos lhe atingem como um porrete. Eu passei semanas tendo esses pesadelos.”
Por conta do alto preço a pagar pelo direito de registrar o sofrimento alheio, André Vieira decidiu que era hora de desviar definitivamente dos caminhos dos morteiros e das bombas. Com o tempo, ele foi se sentindo um impostor, alguém que ia a lugares com os quais não tinha verdadeiro e profundo envolvimento. “Quem sou eu pra fazer isso, se não vivo e conheço bem aquela realidade?”, questionava a si mesmo. Da última viagem ao Afeganistão retornou com saldo negativo: “Voltei completamente destruído, com oito quilos a menos, mentalmente esgotado, com PTSD [Post-Traumatic Stress Disorder] (o que só fui perceber muito depois), todo mordido de pulgas e com dinheiro suficiente apenas para pagar parte das dívidas e viver por uns dois, três meses”. Era a gota d’água.
Yan Boechat cobriu a Batalha de Mossul, no Iraque (2016-2017), produzindo textos e fotos
O custo da guerra para quem quer vê-la de perto pode ser muito alto. Mais alto do que a maioria de nós está disposto a pagar. Dinheiro, saúde, sanidade, família. Hoje, morando em Portugal, André fotografa paisagens e pessoas, sempre na busca por contar histórias interessantes e que não comprometam sua sanidade a cada clique. “Cobrir conflitos, estar em situações tensas, cobra um enorme preço físico e mental, sobretudo mental, o que acaba atrapalhando o cotidiano fora dele. Não dá pra simplesmente desligar uma chave e voltar a viver uma vida normal.” Perguntado se voltaria a cobrir guerras, a resposta é direta: “Hoje, não é algo que me interessa, sequer me interesso em ver esse tipo de cobertura”.
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Ao nos depararmos com as fotografias de guerra estampadas em páginas de jornais, sites e revistas, é comum termos a sensação de estarmos olhando para algo impactante, mas também belo. Algo que nos enche os olhos e que nos tira o fôlego, não apenas pela força da ação retratada, mas também pelas cores e pela composição da cena. Algumas chegam a parecer pinturas. Tudo é tão bonito, que até esquecemos do que está de fato acontecendo ali. Quando isso ocorre, fica a impressão de que o que estamos vendo não retrata o que é a guerra de verdade, mas, sim, uma guerra higienizada, polida e lustrada.
Desconfiado dessa estetização, o escritor David Shields resolveu passar em revista uma década inteira das fotografias de conflitos publicadas nas capas do The New York Times. A conclusão a que chegou, publicada no livro War is beautiful (Powerhouse Books, 2015), foi a de que o processo de edição de fotografia do periódico apelava visualmente para conceitos heroicos e bonitos para que, dessa forma, pudesse manipular a opinião pública, que passaria a ver a guerra como algo não tão hediondo quanto realmente é. “O intuito daquelas fotografias era o mesmo que o da Ilíada: a preservação do poder”, apontava Shields.
No ensaio The Great War photographs: constructing myths of History and Photojournalism, Michael Griffin expõe como a cobertura de guerra também serve para transmitir ideias: “A fotografia de guerra, resumida como o ideal da prática do fotojornalismo, é de particular importância por providenciar um campo de teste para a reputação fotojornalística e também por, ultimamente, suprir a necessidade por símbolos de patriotismo, morte e sacrifício”.
Em 2017, Marcio Pimenta fotografou conflitos no Iraque
Indo na contramão dos padrões estéticos, existem aqueles que se opõem ao uso de artifícios que resultem numa maquiagem que amenize ou distorça a crueza da realidade da guerra. Fotógrafos que buscam exibir a realidade em seus detalhes mais sórdidos, sem glamour, sem filtro. Nessa linha, figuram o tcheco Antonín Kratochvíl, o brasileiro André Liohn (vencedor da Medalha de Ouro Robert Capa no ano de 2012) e o francês Gilles Peress, fotógrafo visceral e de características fortes, de quem Yan Boechat é grande admirador.
“Essa é uma discussão ampla, complexa, em que quase sempre acabo concordando com argumentos dos dois lados”, afirma Yan. “Mas, no final, fico do lado do Peress. Acho que há uma higienização da guerra, uma estética para que aquele horror se torne mais palatável. A guerra é feia. As armas fazem estragos incríveis no corpo humano. Rasgam, cortam, fazem buracos, amputam. E as pessoas nas guerras se tornam selvagens, fazem coisas com os corpos de seus inimigos que não são bonitas. Eu, pessoalmente, acho que a guerra deveria ser mostrada como ela é. Mas essa não é a opinião consensual”, pondera.
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Com a crise que atingiu os veículos impressos na primeira década do século XXI e que perdura até os dias atuais, o espaço para aqueles que querem publicar fotografias de conflito e fotos documentais é cada vez mais escasso. Isso, somado à fragilidade do ego, acaba por gerar alguns conflitos que não passam despercebidos.
Único brasileiro a cobrir a Guerra da Bósnia (uma das mais atrozes da modernidade), em 1993, Fernando Costa Netto fotografou as ruas de Sarajevo para a revista Trip. Lá, experimentou fortes emoções. Até hoje ele conta lembrar o momento em que foi caminhando para o lado contrário do que deveria ir e acabou indo em direção dos atiradores inimigos. “Depois, eu ouvi um pessoal gritando das janelas, mandando eu voltar”, recorda.
Atualmente, ele acredita que o fotojornalismo de guerra virou uma espécie de mercado. E, como todo mercado, incita competitividade e sentimentos pouco nobres. Fernando é idealizador da Mostra SP de Fotografia e um dos sócios-fundadores da DOC Galeria, em São Paulo, espaço que traz em seu DNA o fotojornalismo documental e de conflito. Durante a exposição Na linha de frente, da qual foi curador, realizada no Museu da Fotografia, em Fortaleza, Costa Netto pôde perceber certo clima de animosidade. A exposição, que aconteceu em 2017, juntava trabalhos de fotógrafos brasileiros experientes na cobertura de conflitos como Yan Boechat, André Liohn, João Castellano, Gabriel Chaim, Felipe Dana e Mauricio Lima.
“Ali percebi que a ‘classe’, se é que se pode chamar assim, não era muito unida. Tem muita rixa e muito ego envolvido”, assegura Costa Netto. Opinião que é compartilhada por André Vieira: “No Afeganistão, tive muito pouco contato com outros fotógrafos, apenas em Dushanbe, no Tajiquistão, por onde entrei e saí. E foi uma experiência bem traumática conhecer meus ‘coleguinhas’ em ação. Tirando raras exceções, ganhei um certo horror à classe”, declara.
Já Marcio Pimenta, durante sua incursão no Iraque, não parece ter sentido nada de estranho no ambiente e diz que foi muito bem-recebido pelos colegas. “Há muito companheirismo entre os colegas. Compartilhamos informações e dividimos os custos de cobertura em algumas ocasiões. Encontrei apoio para as minhas dúvidas e inquietudes. É extremamente cara uma cobertura de guerra. Então, nos bares e nas redes sociais, em especial os jornalistas freelancers como eu e a maioria que estava por lá, combinávamos logísticas e interesses mútuos para viabilizar a cobertura de pautas. E, claro, pela segurança, principalmente.”
Cris Veit diz que também não chegou a presenciar nenhum momento de tensão entre fotógrafos enquanto esteve no Iraque. “O que eu vi lá foi o contrário disso. Percebi muita solidariedade e camaradagem entre os profissionais”, aponta. Ela lembra com carinho o período em que ficou na companhia dos colegas do mundo inteiro dividindo a rotina do jornalismo. No entanto, não descarta a existência de rixas e picuinhas no meio. “Devido à crise da mídia impressa, do espaço de publicação, é um ambiente extremamente competitivo. Então, é um lugar que mexe muito com o ego das pessoas e que gera inveja e ciúme”, avalia.
Por ser visto como um modo de fazer dinheiro, o mesmo mercado acaba atraindo pessoas inexperientes, sem nenhum tipo treinamento e sem a menor noção de como se comportar em situações de conflito. Essas presenças acabam por colocar a vida delas, e a de outras, em risco. Apenas mais um dos inúmeros percalços na vida de um fotógrafo de guerra.
André Vieira esteve várias vezes no Afeganistão. Hoje, mora em Portugal e não faz mais cobertura de conflitos
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“A guerra é um sofrimento íntimo demais. E tão infinito quanto a vida humana”, escreveu Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015. Talvez a guerra faça parte da natureza humana. Talvez ela esteja entranhada na nossa essência e nunca se separe da gente.
“Existe uma máxima na teoria realista das relações internacionais que diz que a paz é um intervalo entre guerras”, coloca Marcio Pimenta. “Acho que é exatamente isso. Então, para mim, a guerra é quando o homem ultrapassa todos os limites da estupidez, porque não há mais diálogo. Há apenas intolerância. E, quando se cansam, encontram a paz. Até que voltem a ser estúpidos outra vez.” André Vieira vai na mesma direção: “Guerra, pra mim, é o completo fracasso de todas as formas de relação humana, algo que perpetua problemas, ao invés de resolvê-los, e um enorme desperdício de tempo, recursos e vidas”.
É muito provável que, enquanto houver humanidade, haverá guerra. Da mesma forma, enquanto existir guerra, existirá gente disposta a arriscar o próprio pescoço para mostrar ao mundo a dor e a esperança que brotam dos escombros.
JOCÊ RODRIGUES, jornalista, colabora com publicações culturais brasileiras.