Frases, muitas vezes, resumem tudo. Às vezes, uma vida, um tempo da história, um ciclo, um dia.
Talvez seja por isso minha fixação por elas. Há muitos anos, anoto frases que os amigos dizem e creio, vivamente, que as pessoas deveriam ter mais cuidado com o que falam. Há muitos poetas anônimos no cotidiano, e pessoas que falam barbaridades achando que estão sendo apenas sinceras.
Como é difícil escapar da Covid-19, mesmo numa crônica, geralmente voltada às coisas mais poéticas e delicadas (que são a minha praia), compartilho três frases que atravessaram meu retiro/quarentena, aqui em Olinda, numa pequena casinha na Travessa de São Francisco, ao lado de Aura, minha companheira, e da gatinha Isabelitta.
“SAMA, NANÁ MORREU AGORA HÁ POUCO.” Naná, meu grande amigo-irmão, um gorducho lindo que era uma liderança espiritual e afetiva do Poço da Panela, estava internado (sem direito a visitas, por conta da pandemia), com muitos problemas de saúde. Amigo de duas décadas, desde que voltei de São Paulo e fui morar no Poço. “Montanha”, como eu gostava de chamá-lo, já tinha passado uma temporada perigosa no Hospital da Restauração, e escapou. Desta vez, eu temia realmente o pior.
O telefonema foi de Gerrá, também velho amigo do Poço, às 14h14 do dia 3 de abril. Não sei exatamente o motivo, mas os números me remeteram ao Santa Cruz, fundado em 1914, uma das maiores paixões de Naná. Tenho, junto com os amigos do Poço, milhares de horas e milhagens a bordo de sua eterna Kombi, a caminho do Arruda, estádio do Santa, além dos Aflitos e Ilha do Retiro.
Consegui escrever pouca coisa no meu diário.
“Hoje à tarde, morreu Naná, meu adorável gordinho, irmão querido. É uma das pessoas mais belas que conheci na vida. Foi do coração. Um coração grande demais. Vai em paz, irmão, cheio desse amor que deu e recebeu.”
Lembro que, nas milhares de horas que passamos juntos, ele contou a história de um grave acidente que sofreu, há muitos anos. Ficou entre a vida e a morte, depois encarou uns seis meses internado na Restauração.
“Depois dessa, meu irmão, eu vivo todo dia como se fosse o último.”
De fato, viveu.
O enterro foi no dia seguinte, em Camaragibe, onde nasceu. Era exatamente o dia em que comemoraria 53 anos. Não fui, por causa da pandemia, que já se alastrava, mas todo dia me lembro dele, com um sorriso largo e olhos de criança.
No enterro, o começo e o fim se encontravam.
“OI, SAMARONE, VAMOS COMEÇAR A RODAR O ZÉ EM JULHO.” Foi um telefonema do cineasta mineiro Rafael Conde, informando que iria começar a filmagem do longa-metragem Zé, baseado no meu livro Zé – José Carlos Novaes da Mata-Machado, reportagem biográfica (Mazza, 1998).
O Rafael tinha comprado os direitos de adaptação do livro em 2003, renovou mais duas vezes, e me mandou, há dois anos, o roteiro. Li uma mesma história contada em cenas e diálogos, e senti que ela, de tantos anos atrás, continuava viva.
O Zé, como era conhecido, foi militante da Ação Popular, chegou a ser vice-presidente da UNE, foi preso em 1968, em Ibiúna (SP), e viveu na clandestinidade na resistência à ditadura. Foi morto sob tortura, no DOI-CODI de Pernambuco, em outubro de 1973.
Conseguir filmar essa história, nos dias de hoje, é uma espécie de permanência da memória.
O Rafael me contou os detalhes sobre o set de filmagem, algumas pendências finais, mas o fato é que tinha conseguido o financiamento que faltava.
Lembrei as pesquisas iniciais, ainda estudante de Jornalismo, as dezenas de entrevistas, o encontro com os familiares do Zé, em Belo Horizonte, e o lançamento do livro em São Paulo, em 1998, com muitos amigos, com direito a uma pequena encenação, sob a direção da eterna amiga Selma Nunes.
O anúncio do filme abriu uma mandala para que eu retomasse um velho projeto: reescrever o Zé com os muitos documentos obtidos pela Comissão Estadual da Verdade Dom Helder Camara, de Pernambuco. Já refiz várias entrevistas, pela internet, e os familiares dele estão me ajudando, com muitas memórias que ainda não tinham brotado daquele tempo brutal.
Num dos muitos textos que tenho recebido, uma das irmãs do Zé escreveu algo que mostra como é ter um irmão perseguido por uma ditadura:
“Eram tempos estranhos, nebulosos, vivíamos, em relação à situação do Zé, temerosos de que algo acontecesse. Como se já antecipássemos a sua prisão e morte”.
“SEU PAI VEIO AQUI, MEU FILHO.” Saí de casa em 1987, aos 18 anos, e minha família permaneceu em Fortaleza, apesar de termos as raízes no Crato (Ermira, minha mãe) e em Aurora (José Vicente, meu pai). Ermira e José Vicente tiveram cinco filhos: Paulo Henrique, Antônio José, Samarone, Mônica e Patrícia.
Depois de muitos anos casados, meus pais se separaram, meu pai casou novamente, teve mais dois filhos (Gabriel e Eduardo). Minha mãe seguiu sua vida, mas algo ficou atravessado, entre eles, com o passado arranhando a porta sem conseguir descansar.
No vendaval da pandemia, meu pai teve diversos problemas, e os exames apontaram um tumor no cérebro, bem agressivo, para seus 77 anos. Gabriel e Eduardo são médicos, em Fortaleza, e acompanharam tudo, partilhando as notícias. A cirurgia também foi marcada. Meu pai seria deslocado do Crato para Fortaleza.
Por conta do tumor, meu pai ficou grande parte do tempo oscilando, com retornos ao passado, perda da capacidade de reconhecimento das pessoas muito próximas, lampejos breves no tempo presente, tudo muito confuso.
Na véspera da cirurgia, ele avisou ao Ga briel e ao Eduardo que gostaria de ver minha mãe.
Ninguém esperava por aquilo, até pela confusão mental.
Ele foi lá e, durante um breve tempo, ficou totalmente presente. Agradeceu por tudo, pelos filhos, que ela cuidou tão bem, e beijou suas mãos, com rara delicadeza.
Foi um ato de lucidez profunda, esse abaixar a cabeça em direção às mãos de sua ex-companheira, onde tantas coisas começaram e terminaram.
À noite, minha mãe ligou. Estava emocionada. Numa longa e delicada conversa, disse que também beijou a cabeça dele e desejou tudo de bom, que ele ficasse em paz, que daria tudo certo. E que agora sentiu um profundo alívio.
Meu pai fez a cirurgia, e está se recuperando bem.